Lembro-me que estava uma excelente noite de Verão. O dia tinha sido muito quente, embora já estivéssemos em setembro. Tinha-me sentado nas escadas da entrada da estação do metropolitano de Chelas junto ao ISEL. Olhei para o relógio do telemóvel que ainda não tinha sido capaz de vender, pois era muito bom e tinha sido oferecido. Era quase meia noite.

Começo assim esta crónica porque me recordo que, desde que vivia nas ruas, era a primeira noite que não estava com o Zé. Tínhamo-nos desentendido nessa manhã e ele disse que ia “fazer-se à vida” sozinho. Eu não disse nada, voltando-lhe as costas também. Penso que estávamos a precisar ambos do nosso próprio espaço. As coisas não corriam bem desde que tínhamos saído da Gare do Oriente quase há um mês.

Corriam os meses de Verão, os chamados meses de férias. Nas ruas de Lisboa, descontando os turistas, existe menos gente e o movimento é menor a todos os níveis. Para uma pessoa comum, isso não é um problema, mas para um sem-abrigo significa menos gente nos hipermercados, nas estações, nos centros comerciais. Significa menos trânsito, com os parques de estacionamento vazios e as ruas com menos carros para estacionar. Significa menos dinheiro.

Tínhamos ido no dia anterior à Segurança Social, com grandes reservas por parte do Zé, pois ele dizia que a Segurança Social e a Santa Casa não ajudavam ninguém. O período de pagamento do meu Rendimento Social de Inserção (RSI) tinha chegado ao fim e eu já não o recebia há três meses. O último que recebera ainda não estava na condição de sem-abrigo. Quis, por isso, ir tentar fazer a renovação, mas teria de falar com um assistente social.

Ficou agendada uma entrevista para sensivelmente um mês mais tarde, pois teriam de fazer uma reavaliação da minha situação social. Reavaliação? Eu disse que não tinha casa e dormia na rua. E a resposta foi que era precisamente por isso que tinha de ser feita uma reavaliação da minha situação e ser-me atribuído um assistente social. Fiz a marcação, ficando a aguardar resposta pelo correio ou por SMS. Disse-lhes que era melhor ser por SMS, pois para ter acesso a correio é preciso ter casa.

“A sensação de fome depois de estar um dia ou mais sem comer, além do mal estar físico, é acompanhada por uma angústia silenciosa, revoltada. Com dor. Porque é óbvio que não há comida à espera em nenhum lado e a fome vai continuar”

À saída, o Zé, talvez percebendo alguma coisa na minha cara, perguntou-me com a sua habitual ironia bem disposta: “Então, já trazes o rendimento mínimo ou ’tá tudo de férias e mandaram-te foder?”

Onde estaria ele agora? O dia tinha-me corrido muito mal. Tinha tido uma forte dor de cabeça e não ganhei quase dinheiro nenhum. A rua onde costumava arrumar carros esteve praticamente sem movimento de manhã e, a certa altura, no início da tarde, senti-me mal disposto com o calor e com a minha cabeça a latejar com dores.

Deitei-me a descansar num banco público por debaixo de uma varanda. Já não tinha qualquer problema em deitar-me em bancos públicos e de jardim. O banco estava à sombra e não fazia ali tanto calor. Acabei por adormecer.

Quando acordei, já era noite. Não tinha comido nada durante todo o dia e perdi o carro de apoio com alimentos que costumava ir a Chelas. No dia anterior, tinha comido pouco também e penso que as dores de cabeça eram resultantes disso. Sentia-me muito fraco.

Dirigi-me, então, para a entrada do metropolitano para tentar ganhar algum dinheiro a pedir, mas havia muito pouca gente e foi complicado conseguir algumas moedas. Até que acabei por me sentar nas escadas.

Estava esfomeado. Tirei as moedas do bolso e contei-as. Tinha pouco mais de três euros. O que iria comprar para comer àquela hora? Os hipermercados já estavam fechados. O dinheiro que tinha daria para comprar algum pão. Mas nada a fazer…

Levantei-me e comecei lentamente a descer a Rua Dr. Augusto de Castro, em direção ao sítio onde eu e o Zé tínhamos as coisas e onde dormíamos agora, nas traseiras de um edifício vazio a aguardar obras, no fim da avenida. O que me incomodava era a fome. O vazio no estômago era enorme, impedindo-me de ficar sereno.

A fome não é calma. A fome revolta… A sensação de fome depois de estar um dia ou mais sem comer, além do mal estar físico, é acompanhada por uma angústia silenciosa, revoltada. Com dor. Porque é óbvio que não há comida à espera em nenhum lado e a fome vai continuar.

Nesta vida não poderia descurar nada, teria sempre de estar a horas e próximo dos carros da alimentação, senão o resultado estava à vista.

“O que é preciso para que uma pessoa procure comida num caixote de lixo? Basta viver sem nada. Basta viver no nada. E nesse nada, está a fome. É nesse nada que perdemos a vergonha de mexer no lixo.”

Eu passava os dias a querer afastar-me daquilo de que não podia fugir. Todos os dias pensava que o seguinte seria melhor. Mas o que acontecia era precisamente o contrário. Enquanto descia a avenida, comecei a parar junto aos contentores do lixo. Sim, contentores do lixo. Quantas vezes no meu passado eu vi pessoas a procurar comida nos contentores? Todos nós vemos isso. E tinha dificuldade em entender como uma pessoa chega ao ponto de comer de um caixote do lixo.

A resposta que damos a nós próprios é surreal. É daquelas coisas que só acontecem aos outros, aos pobres e aos miseráveis. E olhamos com aquele olhar de pena, por vezes acusatório, incomodados com a situação. E até queremos ajudar. Damos uma esmola. Uma moeda ou duas. E isso o que resolve?

Eu entendi esse olhar nas ruas enquanto pedia esmola. O olhar e a atitude que eu tive para com outros no passado e agora era eu alvo dele. E aprendi uma coisa: a maioria das pessoas que me davam uma moeda não o fazia para me ajudar. Faziam-no para se sentirem bem com elas próprias.

Afinal, o que é preciso para que uma pessoa procure comida num caixote de lixo? Basta ter fome e não ter comida. E não ter dinheiro para a comprar, não ter onde a ir buscar e saber que a fome vai continuar. Basta viver sem nada. Basta viver no nada. E nesse nada, está a fome. Nesse nada precisamos de comer para parar com a fome. E é nesse nada que perdemos a vergonha de mexer no lixo. Nesse lixo pode ficar a dignidade, mas pode estar comida para matar a fome.

“Tive muita vergonha a primeira vez que tive de mexer num contentor de lixo público. A vergonha passa, dando lugar à raiva.”

Eu tive muita vergonha da primeira vez que tive de mexer num contentor de lixo público, eventualmente com alguém a olhar. Mas a vergonha passa. Não só de procurar comida no lixo, mas de ter que fazer outras coisas diariamente para sobreviver. A vergonha passa, dando lugar à raiva. Raiva essa que diz à dignidade perdida que a partir de agora vale tudo, pois já não há nada a perder.

E assim descia eu a avenida procurando comida, esfomeado. Até nesse capítulo aquela noite corria mal. Não conseguia encontrar nada. Estava já quase a chegar ao local onde dormíamos. E a fome era imensa. Sento-me, derrotado, na entrada de uma porta.

Questionei-me se o Zé não teria deixado alguma coisa para comer na mala dele junto ao colchão, mas era improvável… E também se já teria chegado ou porventura se voltaria. Tínhamos tido uma troca de palavras bastante desagradável, mas eu pensava que não era o suficiente para acabarmos com a nossa amizade. E incomodava-me o facto de estar sozinho. Não que tivesse medo, mas tinha-me habituado à companhia dele.

Tinha sido apenas uma discussão estúpida, devido ao cansaço óbvio da nossa condição. Troca de frustrações e partilha de palavras feias, como ouvi uma vez outro sem-abrigo dizer em relação a uma discussão do mesmo género. Eu penso que se aplica bem às relações entre os sem-abrigo aquele ditado popular: “onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão.”

“O Zé não estava lá e o local tinha sido completamente remexido, quase vandalizado. Todas as nossas roupas ou o que restava delas estavam espalhadas pelo chão retiradas das malas. O pequeno armário que tínhamos estava partido com os utensílios de cozinha espalhados também pelo chão e os colchões estavam fora do sítio.”

Levantei-me e dirigi-me para o nosso sítio. O dia terminara e eu estava com a secreta esperança de que o Zé já lá estivesse e que tivesse comida com ele. Eu já nada podia fazer. Nem sabia como iria adormecer com a fome que tinha. Tínhamos feito o “nosso canto” nas traseiras do edifício, por baixo de um taipal da construtora. Tínhamos a informação de que as obras não iriam começar tão cedo e ali estávamos relativamente bem, com os nossos pertences fora da vista da via pública. E eu já tinha arranjado um colchão velho num ecoponto ali perto.

Quando estou a contornar o edifício, retiro o telemóvel do bolso para ver as horas. Eram quase duas da manhã e quando cheguei finalmente ao “canto” fiquei preso ao chão estarrecido com o que deparei. O Zé não estava lá e o local tinha sido completamente remexido, quase vandalizado. Todas as nossas roupas ou o que restava delas estavam espalhadas pelo chão retiradas das malas. O pequeno armário que tínhamos estava partido, com os utensílios de cozinha espalhados também pelo chão e os colchões estavam fora do sítio.

Fiquei a olhar para aquele cenário sem saber o que pensar e nesse momento ouço uma voz por trás de mim dizendo calmamente “boa noite”. Viro-me rapidamente e vejo um homem caminhando na minha direção sem perceber de onde tinha vindo. Não estava mal vestido nem era com certeza um sem-abrigo, mas pela forma como ele disse “boa noite” apercebi-me imediatamente do perigo. Aquele local estava deserto. Ele continuou: “posso ver uma coisa no teu telemóvel?”

Não respondi, pois depressa percebi que ia ser agredido. Sem ter tempo de fazer o que quer que fosse, ele dá-me uma violenta cabeçada. Caí de costas no chão, magoando os cotovelos no cimento ao aparar a queda por instinto. Fiquei tonto, incapaz de reagir. Ao tentar levantar-me, ele colocou o seu pé no meu peito mantendo-me violentamente pregado ao chão. Olhou-me nos olhos e disse: “Pianinho, ó cota. Dá cá o telemóvel e o dinheiro.” Fiquei imóvel.

A cabeçada tinha sido violenta, caí mal e ele mantinha todo o seu peso sobre mim com o pé no meu peito, magoando-me. Ele não teria mais de trinta anos e era enorme. Mas num acesso de raiva, agarrei-lhe a perna com as duas mãos para tentar fazê-lo cair. Ele depressa se livrou da minha investida, afastando-se uns metros com ligeireza. Virei-me rapidamente de barriga para baixo para me levantar. E ao tentar fazê-lo, levo um violento pontapé no estômago e outro no peito.

Fiquei no chão derrotado, paralisado com dores. Disse-lhe amargamente e com as lágrimas nos olhos: “Não tenho dinheiro, leva a merda do telemóvel e deixa-me em paz.”

Ele baixou-se rapidamente e tirou o telemóvel do meu bolso. De seguida, não sei de onde, sacou de uma faca apontando-a em direção do meu rosto. Eu repeti que não tinha dinheiro e ele começou a fazer-me uma revista minuciosa. Revistou-me a carteira e os bolsos encontrando as poucas moedas que eu tinha. Olhou para elas com desdém, atirou-as para cima de mim e afastou-se dizendo “boa noite” de novo.

Não pude deixar de reagir e dei por mim a dizer-lhe para ele ter vergonha na cara pois eu tinha idade para ser pai dele. Ele olhou para mim e disse com a mesma calma: “Tens idade pra ser meu pai, mas não és.” E foi-se embora.

Eu fiquei imóvel no chão de cimento. A olhar para o céu. Tinha o corpo dorido e estava tonto ainda. Mas a maior dor era cá dentro. Senti-me só. Perdido. Lembro-me que fiquei deitado no chão, fitando o céu e questionando-me se estaria lá Deus a olhar para mim. Não sabia. Queria chorar, mas não conseguia. Senti que estava morto. Não fisicamente.

Sentia uma coisa inexplicável que estaria algures morta dentro de mim. Fiquei assim muito tempo no chão. Não sei precisar o tempo que foi, talvez uma hora. Mas finalmente algo aconteceu. Porque comecei a chorar. Consegui chorar. E levantei-me do chão a pensar: “Amanhã é outro dia”.

Leia aqui as anteriores crónicas de Jorge Costa


Jorge Costa

Jorge Costa

Morreu aos 55 anos em abril de 2022. Nasceu em Lisboa, cidade onde sempre viveu. Na Mensagem, partilhou a sua experiência da vivência nas ruas, sem teto para viver e para dormir. Foi sem abrigo durante 8 meses, até maio do ano passado. Escreveu sobre esta “difícil experiência, indigna e quase desumana”. Publicou um livro póstumo, Diário de Um Sem Abrigo, na Oficina do Livro.

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19 Comentários

  1. Uma vez mais Obrigado pela coragem de partilhar momentos tão dramáticos .

  2. Lágrimas de um Homem que, para além da sua situação, é capaz de pensar que “Amanhã é outro dia”. Parabéens!

  3. Uau… Que texto… Parabéns!!!
    A vida pode ser terrível.
    Ainda estou envolvida nas suas palavras…

  4. Francisco, não havia escolha. O melhor dia era sempre o de amanhã. Grato pelo comentário.

  5. Jorge, muito obrigada pela partilha de uma vida tão dolorosa e infelizmente tão vivida por muitos.
    Agora tudo irá correr melhor…

  6. Caro Jorge Costa, obrigada pelo testemunho. A parte dedicada ao caixote do lixo é de uma lucidez e sensibilidade sem limites. Mas que sei eu de lucidez, perante o que passou? Aguardo as suas próximas crónicas. Espero que esteja bem.

  7. Uma experiência terrível que espero tenha tido um fim e que possa sobreviver e continuar a viver. Obrigada pela partilha

  8. Difícil descrever como este testemunho é importante.
    Obrigado pela sua coragem.
    Espero que esteja bem, Jorge.

  9. Emocionado, espantado mas com grande admiração pela sua força e coragem. Um abraço forte e muitas felicidades num futuro que será certamente mais risonho

  10. Parabéns pela coragem nesta partilha e pela clareza das suas palavras.

  11. Obrigado pela partilha tocante e desejo-lhe as maiores felicidades Jorge.

  12. Obrigado pelas palavras.
    Vivi 10 anos nas ruas e reconheci todas as situações que descreve. A vergonha, o medo, a fome por estupidez.
    É muito difícil recomeçar sem as ajudas certas. Graças a Deus consegui sair e desejo-lhe o mesmo sucesso.
    Muito obrigado

  13. Que história incrível, muito bem escrita. Obrigada pela partilha.
    Que tudo corra bem na sua vida.

  14. Obrigada pela partilha e muito feliz que algo de bom está a acontecer. É complicado ter fé no amanhã quando não se sabe nem sequer se vai haver comida. Muita fé.

  15. Mundo ingrato!!! Não sei dizer quem é o culpado. É um bom exemplo de mundo cão e sinto-me culpado em não distribuir o que consegui economizar com meu trabalho!!!! DEUS NOS AJUDE …..

  16. Fico tão revoltada. Mas tão revoltada, carregada de raiva!! Tenho vontade de coisas inimagináveis para muitos.
    Como é possível que o mundo te há chegado a isto?!

  17. Que a força e a coragem nunca o abandonem.
    E, que em breve consiga o seu lugar ao sol.

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