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Lisboa não é cidade de grandes avenidas, grandes praças. É, antes, uma “cidade monumental nas suas vistas”, “uma espécie de miradouro de miradouros.” Quem nos visita apercebe-se disso muitas vezes antes de nós. E essa é uma realidade “que nos coloca, a nós, lisboetas, uma carga acrescida de responsabilidade”, diz João Ceregeiro, vice-presidente da Associação Portuguesa de Arquitetos Paisagistas (APAP).

Lisboa foi construída a pensar e a olhar para o rio. Há séculos que assim é. Com uma “construção ligada às colinas e aos vales”, a expansão da cidade foi sendo empreendida “de uma forma escalonada, em que o degrau inferior tem quase uma ordem relativa ao degrau superior, como se fosse um anfiteatro natural de exposição”. Esta forma de construir é notada, em especial, nos “vales fechados, nestes talvegues”, que literalmente significa caminho feito pelo vale, e isso “fez com que a cidade ao longo destes séculos viesse a reproduzir na sua construção a forma natural do relevo”.

Ou seja, é uma cidade “que é escultura do próprio ato telúrico da formação do terreno original. É isso que cria uma animação e uma relação sem limites”, desenhada entre as pessoas e a paisagem. “A cada momento, se cruzarmos as ruas, as escadas, as avenidas, as varandas, os jardins de cumeadas, as igrejas que estão com árvores no extremo das colinas, vamos ter a perceção de que existe uma infinidade de momentos aos quais juntamos a luz, a evolução do dia, os escoamentos sobre o rio, todo este imbricado de relações coloca uma riqueza urbana, paisagística, arquitetónica, que faz com que Lisboa se possa orgulhar de dizer por que é que atrai. Quando olhamos para a cidade, olhamos para a verdade da orografia”, explica o arquiteto.

O “radiador de Alcântara” que já não deixa ver o rio

Nas reuniões que com os moradores a câmara ia dizendo “que não seria tapada a vista”, mas as obras as obras avançavam, o edifício do novo hospital da CUF “ia subindo um piso de cada vez, até ao ponto de estar como está neste momento”. Hoje, terminadas as obras e mal digerido o resultado final, o que sobra é “um pedacinho poucochinho sobre o rio”. O relato é de Isabel Rodrigues, de 52 anos, moradora “há 30 e tal [anos]” nas Necessidades e há uma década no pronto a comer Paparoka, na Rua das Necessidades, ao lado do Palácio e do miradouro que deixou de olhar para o rio. Quando era criança, era no jardim que ia brincar com os amigos.

A sua relação com o rio, a partir do Miradouro do Largo das Necessidades, “é um bocadinho tudo”, confessa. Este é um lugar que lhe é “particularmente querido”.

Com o fim das obras e a consumação da obstrução da vista, o miradouro deixou de ser local de festa, por exemplo, na noite passagem de ano. Para ali iam muitas pessoas ver o fogo de artifício, conta Conceição Gonçalves, proprietária do pronto a comer. Com 21 dos seus 47 anos passados naquele estabelecimento, recorda que dali se “conseguia ver os barcos”. “Quando apitavam”, iam até ao miradouro, vê-los sair da cidade.

Isabel Rodrigues (à esquerda) e Conceição Gonçalves (à direita) assistiram à perda da vista sobre o rio no Largo das Necessidades. Foto: Frederico Raposo

Agora os moradores da zona chamam ao hospital “o radiador de Alcântara”, talvez pelas tiras verticais da fachada e sobretudo por ser o empecilho que hoje os separa a todos do rio. Para projetos futuros que coloquem em risco as vistas da cidade sobre o rio, pedem uma ampla discussão antes da concretização, para que não se repita o cenário que agora vivem diariamente.

A construção do Hospital CUF Tejo foi caso recente de polémica e o assunto está em tribunal. O terreno em que o hospital foi construído, na Avenida 24 de Julho, era propriedade municipal até 2015, altura em que foram adquiridos por uma empresa ligada ao grupo José de Mello, detentor dos hospitais CUF.

Miradouro do Largo das Necessidades já com o edifício da CUF em frente. Foto: Frederico Raposo

Em dezembro de 2018, o então vereador com o pelouro do urbanismo, Manuel Salgado, assegurava ao jornal O Corvo que o fim das obras daquela unidade de saúde privada traria consigo uma mudança “significativa” do seu impacto.

A realidade não o confirmou, e a perda da vista é “total”. Isto apesar de terem sido apresentados os estudos de impacto visual requeridos pelo PDM, e que foram mesmo aprovados em reunião de câmara. No fim, a vista sobre o rio perdeu-se. Em entrevista ao jornal Expresso, em 2019, o ex vereador considerou ter existido “claramente um desvio nos próprios desenhos que foram apresentados à câmara”.

Como são protegidas as vistas de Lisboa?

Lisboa, a cidade das vistas monumentais, é apreendida a partir de dezenas de pontos. E o Plano Diretor Municipal (PDM) identifica, no seu Sistema de Vistas, 85 destes pontos. São “panorâmicas e enfiamentos de vistas que (…) proporcionam a fruição das paisagens e ambientes urbanos da cidade” e permitem o estabelecimento das relações visuais da cidade, com o rio, os vales, as zonas baixas e as encostas.

Os círculos marcam o sistema de vistas protegidas da cidade. Nem todas são para o rio. Fonte: CML

Ou seja, estes são os pontos de vista protegida na cidade. A partir daqui, dos miradouros, dos topos das escadarias, dos pontos mais elevados dos jardins, lisboetas e visitantes apreendem a intangível e querida luz de Lisboa, as suas colinas e tudo o que a faz ela própria.

Mas as vistas também se dão a partir de baixo, do ponto de observação de tudo isto que é maioritariamente na zona ribeirinha. Também por isso, o PDM chama a esta faixa o “subsistema da frente ribeirinha”.

É a identificação de todos estes pontos e perímetros estratégicos da cidade que compõe o Sistema de Vistas da cidade. É esta a regulamentação responsável pela “salvaguarda e valorização” das vistas do município.

Acontece que a paisagem da cidade é “um legado sensível, muito frágil, e sobre o qual devemos estar muito atentos”, como diz João Ceregeiro. Porque ter parte dessa vista é algo precioso, os atropelos podem ser – e têm sido – uma tentação.

E nem sempre o Sistema de Vistas vale à cidade e “qualquer precedente mal implantado pode destruir uma realidade que se preservou durante séculos”. Há exemplos recentes, uns de ameaça apenas, outros de concretização.

Os próprios cidadãos, organizados, devem intervir. Quaisquer alterações ao tecido urbano que conflituam com as vistas devem ser “acompanhadas pelos próprios cidadãos”, porque, diz, as vistas “são de todos”.

Quais são as regras do PDM

O Plano Diretor Municipal de 1994, através do Plano Verde de Lisboa, coordenado por Gonçalo Ribeiro Telles, foi o primeiro a apresentar um Sistema de Vistas. Na altura, identificaram-se 42 pontos dominantes, nas cumeadas.

O PDM de 2012 já identifica 85 pontos, cada um com o seu respetivo campo de visão a respeitar. Refira-se que são só vistas públicas, ou seja, nenhuma construção privada tem uma vista protegida. São só pontos de fruição de vistas comuns. Alguns deles são os miradouros comuns, que todos visitamos, e sobretudo os turistas.

Sempre que surge intenção de construir nestes enfiamentos visuais, nos vales ou na frente ribeirinha, a proteção das vistas do PDM exige a apresentação de estudos de impacto visual e estudos de panorâmicas urbanas. Segundo o documento, todas as obras são “obrigatoriamente” acompanhadas de representações tridimensionais que expliquem como vão ficar as vistas.

Ou seja, de imagens que simulam e permitem antever o impacto da construção e dos volumes propostos. O objetivo é simples: garantir que as vistas não são obstruídas. Mas nem sempre tem sido alcançado.

O loteamento da Câmara Municipal de Lisboa para a construção de edifícios de Renda Acessível no Restelo levantou dúvidas sobre o impacto visual a partir do miradouro do Parque Recreativo dos Moinhos de Santana, no Restelo, um dos pontos identificados no Sistema de Vistas da cidade. Fonte: Junta de Freguesia de Belém

A Câmara Municipal de Lisboa explica que “não existe uma norma técnica que estabelece os requisitos a que devem obedecer estes estudos de impacto visual”. Ou seja, é ao projetista que cabe apresentar estas representações visuais do potencial impacto e é a este que, segundo o município, cabe “assegurar que a representação que faz dos seus projetos inseridos no contexto urbano corresponde à melhor representação possível de acordo com a técnica e tecnologia disponível em cada momento”.

As simulações de impacto visual que constam dos pedidos de licenciamento são acompanhadas pela entrega de um “termo de responsabilidade que atesta que as informações escritas e desenhadas correspondem à verdade e cumprem normas legais e regulamentares aplicáveis”, diz o município. Ainda que, nem sempre, as representações tenham correspondência real.

“Falta [um] regulamento base sobre mecanismos e técnicas” para a realização destas representações visuais, diz João Ceregeiro. Segundo o arquiteto paisagista, “não há um conjunto de técnicas regulamentadas” e a própria objetividade das imagens fornecidas pelos promotores de novas edificações pode estar em causa. Pode haver lugar a “alguma modelação” e o resultado final pode ser “tendencioso”, a “forçar para que uma realidade seja vista de forma minimizante para o promotor”.

Em matéria de proteção de vistas, o PDM de Lisboa “tem-se revelado avant garde”, admite João Ceregeiro. “Está à frente” de outros. Mas também há espaço para evolução. Há que identificar mais vistas: a cidade tem “um sem número de pontos interessantes”. Para isso, falta “entrar numa escala mais próxima” e identificar, por exemplo, as vistas de “patamares de escadas públicas”. É preciso “entrar dentro da cidade”, ir para além dos pontos dominantes atualmente identificados pelo Sistema de Vistas.

Dúvidas no Restelo e na Fundação Champalimaud

Recentemente, foram os volumes e as alturas propostas pela própria autarquia para o programa Renda Acessível no Alto do Restelo, a levantar dúvidas sobre o impacto visual, partindo de um dos pontos de vistas privilegiadas da cidade – o topo do Parque Recreativo dos Moinhos de Santana – um dos que está protegido.

Junto aos dois moinhos do parque, vê-se, agora, a foz do Tejo e o oceano. A proposta para a construção de torres com 15 pisos levantou a dúvida: estará esta paisagem, identificada pelo Sistema de Vistas da cidade, em causa? Apesar de a autarquia garantir “compatibilização” entre a altura dos edifícios e a vista, a própria simulação do município aponta para algum impacto.

A partir do Parque Recreativo dos Moinhos de Santana avista-se o rio e o mar. Foto: CML

É na zona ribeirinha que hoje mais são desafiadas as orientações impostas pelo próprio PDM: na zona baixa do Restelo, ergue-se a expansão da Fundação Champalimaud, onde será criado um “centro hospitalar e de investigação para o estudo e tratamento oncológico relacionado com o cancro do pâncreas”, refere o município.

Para João Ceregeiro, o novo edifício da fundação vem transformar aquilo que era a estrada marginal, a Avenida da Índia, numa via interior. “O que era uma relação com o rio” deixou de o ser, aponta. “São estes aspetos que têm de ser pensados”, diz, referindo-se àquilo que apelida de “sistemas de vistas internos ou interiores da cidade”. O arquiteto questiona se o projeto agora em construção “não está dentro daquilo que o PDM e o Sistema de Vistas preveem”.

À luz do 18º artigo do PDM, a construção nova dentro do perímetro do subsistema da frente ribeirinha, onde se encontram os edifícios do novo hospital CUF e da Fundação Champalimaud, deverá alinhar-se “perpendicularmente ao rio”, devendo ser respeitado, lê-se, o “alinhamento dos arruamentos com enfiamento visual sobre o rio”.

Significa, na prática, permitir a continuidade das vistas para o rio. Para além disto, novos edifícios “não podem constituir frentes contínuas de dimensão superior a 50 metros”.

Ao fundo, a obra de expansão da Fundação Champalimaud, na freguesia de Belém. Foto: Frederico Raposo

A exceção, acontece nos casos em que a autarquia venha a considerar que se revestem de “excecional importância para a cidade”, como veio a acontecer com a Fundação Champalimaud. Neste caso, prevê o documento orientador do urbanismo, deve ser “promovido debate público antes de proferida a decisão”.

A 11 de abril de 2019, o regime de “interesse excecional”, obrigatório para a expansão da Fundação, foi aprovado em reunião de câmara com apenas uma abstenção, do Bloco de Esquerda, e com nenhum voto contra. Durante o período de debate público que se seguiu, de 21 de maio de 2019 a 11 de junho do mesmo ano, a Câmara Municipal de Lisboa afirma não terem surgido “quaisquer reclamações, observações ou sugestões”.

Luta pelas vistas na zona da Torre da Portugália

O recente processo de contestação da torre da Portugália numa zona de vistas privilegiadas sobre a cidade, a partir do miradouro da Penha de França, envolveu centenas de pessoas. O chamado quarteirão da Portugália encontra-se no ângulo de visão que parte do miradouro e está identificado no Sistema de Vistas. Segundo João Ceregeiro, que integrou o movimento Stop Torre Portugália, que, em 2019, entregou a petição na Assembleia Municipal de Lisboa, a concretização dos volumes então propostos “destruía o equilíbrio do vale de Arroios/Martim Moniz”.

A proteção das vistas, não tem necessariamente a ver com edifícios em altura. Importa muito a sua localização relativa, e o lugar onde estão implantados. “Há uma série de cidades que afirmam o seu poder económico pela emergência destes edifícios. Lisboa ainda tem outros espaços para o fazer”, diz o arquiteto. No fim, o desfecho foi “feliz”. A torre não avançou.

Quarteirão da Portugália, na Avenida Almirante Reis. Foto Carlos SIlva/CML

No passado dia 15 de abril foi aprovado em reunião de câmara da emissão de um novo pedido de informação prévia, subscrito pelo vereador do urbanismo Ricardo Veludo. A nova proposta não contempla a construção da torre e limita a altura dos novos edifícios a cerca de 23 metros. O modelo de quarteirão da Avenida Almirante Reis manter-se-á nesta nova proposta e a altura das fachadas propostas estará alinhada com a já existente. A proposta teve os votos favoráveis de PS e PSD, a abstenção de CDS-PP e os votos contra de BE e PCP.

Estes movimentos de cidadãos mostram como há “mais atenção” por parte das pessoas da cidade, “uma sensibilidade maior sobre o valor do espaço exterior, o valor de um passeio, o valor de uma vista, do ar puro e daquilo que é o convívio das pessoas”. Por seu lado, a gestão das cidades contempla também mais debate.


Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

frederico.raposo@amensagem.pt


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