– A menina é nova.

– Não sou assim tão nova.

– É pois. Mais cinco anos e não estava aqui a falar comigo.

– Porque é que diz isso?

– Porque ganhamos cegueira com os anos.

– Que cegueira é essa?

– A cegueira que nos tira dos olhos pessoas como eu.

– Não percebo.

– Gente como eu, menina.

– E a alegria?

– A alegria é como a vista.

– Também se perde com os anos?

– A menina já está a aprender.

Acordou cedo e ocupou-se com o labor de arrumar a casa. Dois sacos de plástico. Uma lata. Duas sapatilhas sem par atadas pelos cordões. As árvores de ramagens servem de arrumo às mantas enroladas que o cobriram durante a noite. A luz passa cortante através das coralinas, ou dos chorões, ou dos metrosideros da Praça da Alegria. Não encontrei consenso de opiniões entre os moradores sobre a designação das árvores que tombam ao sol, numa cascata de folhas, varrendo com sons o sono dos sem-abrigo. Outros contornos de mantas continuam imóveis sobre os bancos do jardim.

– Já viu que não há plural para sem-abrigo na língua portuguesa. Dizem que é a mesma palavra, mas estão enganados, menina. O plural de sem-abrigo é ‘aquela gentalha que não quer trabalhar’.

O repuxo, num lamentar lento, ajuda a prolongar o repouso das mantas. À porta do café, fazem-se apostas sobre há quanto tempo a água ali jorra. Atestam-lhe a velhice, mas não a frescura. Ninguém se debruça sobre o ‘lavatório dos mendigos’.

Os livros garantem que, em 1882, se fez um amplo socalco circular, num terreiro junto ao Passeio Público, com cerca de meio hectare e um lago de repuxo ao centro, guardado por árvores altas. Os arruamentos enxotaram a Feira da Ladra, que ocupava o espaço desde o início do século XVII, a paredes-meias com a plumagem da aristocracia no seu vai e vem de Avenida. 

Uma cabeça surge junto à porta de inox do café, vermelha nas têmporas por estar a buzinar há um quarto de hora e o ‘sacana’ que lhe trancou o carro não ter dado ar de sua graça. O burburinho aumenta. Vejo que o dono do Opel Corsa se encolhe no banco de pé alto, junto ao balcão, mas um pouco de coragem o encaminha à frente do outro, entre insultos e indignações. É cedo e o copo de vinho fica a meio.

Ali, são poucos os que não têm uma costela de Presidente de Junta. Hierarquizam prioridades. O estacionamento. A segurança. A falta de rega do jardim. Aquela gentalha que não quer trabalhar. Os polícias que pasmam. Os turistas que seguem caminho sem abrir a carteira.

A praça lembra as oscilações da história com o busto de Alfredo Keil ali posto depois de 1910 por republicanos convictos. O compositor, indignado com o ultimato inglês de 1890, atirou-se ao piano e compôs uma espécie de marcha militar onde vibrava toda a sua raiva. Depois, dirigiu-se a casa do poeta Henrique Lopes de Mendonça, que morava num quarto andar, galgou as escadas e pediu-lhe uma letra que desse voz à revolta que se gritava nas ruas. Trabalharam juntos alguns dias e nasceu ‘A Portuguesa’.

É, pelo menos, o que reza no guia de Lisboa que um turista folheia à porta da Residencial Alegria. A primeira edição do que viria a ser o hino de Portugal foi paga pelos próprios autores. Teve uma tiragem de 12.000 exemplares que esgotou em pouco tempo. A partir de então nas ruas, nos cafés, nos clubes, nos teatros cantava-se a toda a hora “Heróis do mar, nobre povo…” e, apesar do mito português, nunca marchámos contra bretões. Foram sempre os canhões os nossos alvos.

– Até lhe canto o hino, menina. Que eu sou português, não sou jogador da bola. Eles só mexem a boca quando é para cantar. Mas para eles, há sempre dinheiro.

Irónica é a opção de se colocar – numa praça cujo nome é Alegria – o busto do autor da marcha fúnebre. Keil eternizou-se por causa desta última composição e não pelos acordes de ‘A Portuguesa’.  

Ruas, travessas, calçadas, becos, histórias, que serpenteiam encosta abaixo, vazam na praça. Entre bancos, assiste-se à pornografia da mente. Homens crescidos e andrajosos partilham conversas com a própria sombra e confundem – sem grandes critérios de notabilidade – as mulheres que passam com os traços da rainha Dona Amélia. As crianças ocupam a relva com jogos de bola, habituadas à loucura alheia não lhe dão atenção, e os turistas empoleiram-se nas árvores para fotografias de perfil.

Como cartão-de-visita, todos contam que na Residencial Alegria esteve hospedado, durante uma semana, aquele que era então o quarto homem mais rico do mundo – Ingvard Kamprad, fundador da IKEA – e olhando para o prédio amarelo e arranjado, o conforto das flores roxas nos beirais das varandas, percebemos-lhe a escolha. Conquista só ao nível das refeições no Cais Remo, onde umas ervilhas com ovos, pão, café e digestivo não ultrapassam os dez euros. Prova de que, por ali, a oferta satisfaz todas as carteiras.

Uma mulher atravessa a estrada e não se daria por ela se não trouxesse um olhar perdido e o nervoso nas pontas dos dedos. Abranda antes de entrar na Clínica dos Arcos, uma versão aportuguesada da clínica ‘Los Arcos’, que soube responder à aprovação da Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez em Portugal. Lá dentro, alguns minutos de espera nos bancos alinhados, o som cacofónico da televisão, e uma mistura de sentimentos.

– Lá vai ela, menina. São mais as que chegam sozinhas do que as outras.

O entardecer renova os protagonistas da praça. O Chafariz da Mãe de Água, ao cimo da rua do Conde, servia os lisboetas através do aqueduto, trazendo água desde Caneças. Depois, numa transformação menos espectacular que a contada na perícope bíblica sobre as bodas de Canaã, deixou de jorrar água e passou vender vinho. Mas também essa fonte secou.

Agora, as escadas alojam outros que perderam o teto. No número 58, o movimento já compensa as portas abertas. As mesas centrais do mais famoso cabaret de Lisboa estão ocupadas, uma banda meio-famosa e meio-polémica emparelha os instrumentos. Os candelabros de lágrimas fazem finca-pé em lembrar que já se respirou luxo naquele espaço. Em tempos idos, quando Tony de Matos e Raul Solnado se estrearam com o espetáculo ‘Sol da Meia-Noite’ e duas orquestras, alternadamente, davam acordes ao baile entre as 22h e as 5h da manhã. Ficaram os veludos e as rendas, o ambiente sombrio, os vermelhos, os bancos de pé alto e a clandestina sensualidade. O músico Manuel João Vieira augurava que ali se viveria um ambiente de filme e, apesar de David Lynch e de Federico Fellini nunca terem bebido copos ao balcão, as teias da ‘Corrupção’ no futebol foram recriadas entre as mesas do Maxime sob a realização de João Botelho.

Um pouco mais acima, na cave do número 39, o Hot Club mantém o mesmo ar de clube de jazz de Brooklyn. O som dos concertos é abafado pelas paredes e pelas pessoas, que preenchem a escada até à porta e adensam o ar. É, porém, a alegria decadente do Parque Mayer que melhor representa este lugar ensimesmado.  

Como acontece com tantas mulheres batizadas Esperança ou Augusta, que nem sempre podem estar à altura do peso do nome, também a Praça da Alegria tem os seus lusco-fuscos de festividade, encobertos ou embezerrados pelas agruras da vida.

– Menina, nesta praça até as árvores choram, fará as pessoas.

– E não é assim em todo o lado?

– Também tem razão.   


Filipa Martins

É escritora. No seu primeiro romance, descreve a plumagem do Passeio Público e, no segundo, as saudades dos que partiram do Cais das Colunas. Os cafés de Lisboa são escritórios convenientes e o rio o repouso dos olhos.

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