Farta de estar em casa, comprei uma bicicleta. Assim que a vi chegar, fiquei irritada: vinha numa embalagem de cartão. Não me deu nenhum ataque de ecologismo agudo, foi mesmo por ter percebido que teria de a montar, e não no bom sentido.

Lá segui com o envelope de veículo pelas escadas, sofri um ataque de asma, bebi um copo de água e preparei-me para a montagem. Ou seja, pedi a um amigo que cá viesse e nessa mesma noite senti-me a ver o mundo. Já não viajo há tanto tempo que Odivelas vista de Carnide me pareceu um Inverno em Nova Iorque. Ofegante, cheguei ao céu pelo Empire State Building e eis aquela chapada de luzes ao fundo, vida à volta, gente a correr, histórias contadas, dores nas articulações, sede à entrada da garganta.

Entusiasmada com esta que me pareceu a última bolacha do pacote, assim que cheguei a casa, depois de um banho com pétalas de rosa, creme hidratante de vinha activa, bombons e velas de morango – ou um duche rápido com o gel de banho mais barato –, fui para a farra com uma amiga, que é como quem diz que lhe enviei uma mensagem no Whatsapp.

Eu contente como um puto: “Já tenho a bicicleta!”. E ela: “Vais experimentá-la amanhã?” Disse-lhe que tinha acabado de curtir Carnide e Telheiras on the wheels e, em vez de um “Engata bem?”, ouvi um “E não tens medo?”

Medo de quê, dos pedais?

Não. Aparentemente, no cérebro imberbe da Matilde, há muitos violadores à solta, todos olham para mim e querem um pedaço e a pobre donzela não se sabe defender. Irritou-me logo, mandei-lhe um GIF estúpido e fiz ghosting, bloqueando-a em todas as redes sociais e deixando um aviso nos correios para que não me pudesse enviar postais na Páscoa.

A sério, juro que há dias em que me apetece mudar de amigos, mas não tenho dinheiro para pagar gente melhor. Medo? Como se eu não fosse pro do contra-ataque. À mínima ameaça, gabo-me logo: “Olha que eu faço musculação e pratico artes marciais.” O pessoal fica maluco, impressiono qualquer um. Claro que ninguém precisa de saber que cargas pesadas me provocam hérnias, que só meto as luvas para espancar sacos de areia ou que toda a gente me bate nas aulas de jiu jitsu, e se a Catarina Carvalho divulgar isto no jornal juro que lhe meto um processo em cima.

Hercúlea como ninguém mais, quis procurar Lisboa, fosse dia, noite ou horário de trabalho. Os pneus queriam girar, eu queria mexer. O sol às vezes queimava, a massa adiposa também. Viam-me pedalar de calções curtos e tudo o que era homem reparava, tudo o que era macho me apitava.

E eu ouvia-os, apesar dos phones, com a paixão a estalar, a raiva pela minha indiferença, por nem sequer olhar para eles: “Sai da frente, ó palerma!”

Comecei a aviar bairro atrás de bairro, a ver mais paisagem do que os skyscrapers e arcos-íris e duendes bebés que vejo do 3º esquerdo, a conhecer desconhecidos e inventar-lhes um passado. Aqui entre nós, sou linguista computacional, a minha vida nem à minha mãe interessa e nem a minha namorada faz puto ideia do que faço. Às vezes, ainda pergunta e eu, com a eloquência que a seduziu desde o início, lá lhe digo que “Oh, são umas cenas e tal”. Quando ouço uma história, tenho inveja, quero ir atrás. O mais triste disto tudo é que a história nem precisa de ser boa.

E sendo esta cidade uma cidade, também tem histórias de floresta, e eu quis então ir a Monsanto, ver Lisboa lá de cima, que foi o que aconteceu com o meu amigo Tomás Pedro. Parece nome de beto, mas soa-me sempre a apóstolo. Careca como um monge, quando vem jantar cá a casa, dá-me vontade de lhe dar uma tosta com camembert e de lhe dizer “Tomai todos e comei”, apesar de ele ser apenas um. O miúdo inspira-me tanto que um dia o recebi de djelabba.

Ora, o Tomás Pedro, antes de me trair — ele, que tanto advogava esta zona, dia e noite, à amante, à fanático, antes de eu ter vindo para cá morar com uma dívida ao banco que talvez venha a durar mais do que eu —, morava a oito minutos a pé da minha casa. Esses tempos eram loucos, noites loucas, memórias loucas, eu, ele, um chazinho, conversas sobre os verbos que seleccionam o conjuntivo em português, a viver a juventude em cheio como só nós os dois sabíamos. Às vezes, ele voltava para casa já depois das dez da noite.

Entretanto, foi morar para a outra ponta da cidade e eu cá me entretenho a tentar fintar a solidão, mas antes disso era vê-lo a bambolear aquelas pernas de deus grego em caminhadas por Monsanto. Quem o visse no meio das plantas tinha vontade de dizer “Não sabia que as flores andavam”, mas aqueles quadríceps de Schwarzenegger eram mais parecidos com troncos de pinheiros.

Um dia, lá estava ele a subir o monte à Maomé, carequinha como um buda. Um carro parou-lhe ao lado e o gajo lá de dentro mandou-lhe um “Olha, sabes onde se pratica dogging em Monsanto?”. Ele nem sabia o que era dogging, mas disse-lhe “Isso não sei, mas tens ali um parede de escalada”. Quando me contou isto, eu achei que dogging seria a prática de violar cães, o que nada abona em meu favor. Aparentemente, tenho uma mente mais suja do que qualquer tara. O sujeito do carro continuou viagem e parou mais adiante, fazendo a mesma pergunta a mais um transeunte incauto, e aqui o Tomás Pedro perdeu o fio à narrativa, não soube se o seu igual saberia onde, afinal, se poderia observar humanos a copular humanos a partir da viatura.

Mas o desconcerto ficou lá: afinal, havia gente estranha em Monsanto. Eu já devia adivinhar, já que, em 2000, o meu pai não me deixou ver o filme homónimo. “Tem muitos palavrões”, dizia o minhoto. Não tendo sido levantada a proibição, nunca vi o filme, e só há pouco descobri que a Monsanto de que fala nem sequer é esta.

Enfim, inspirada pela ideia de que havia vida no mato, pus-me a caminho. Não fui procurar casais, ainda que tenha noção de que só me faria bem ver como é que os outros fazem. Podia ser que, pelo menos, aprendesse alguma coisa. Mas nada disso, eram oito da noite e eu fiz-me atleta montanha acima. Dali a dois quilómetros, já julgava que Benfica, Sporting e Porto competiriam por mim, que talvez o Manchester United pudesse fazer uma oferta por estas pernas que galopavam em cima dos pedais.

Foi uma boa noite, fez-me lembrar aquela vez em que sonhei que o Ronaldo não estava a jogar nada. Portugal estava em desespero, ele frustrado. O treinador, sem outra hipótese, substituiu-o por mim. Claro, assim que entrei, marquei um golo. Aquilo foi tão constrangedor para ele que ninguém festejou, o estádio emudeceu e eu até duvidei que o golo tivesse sido válido. Tinha-o marcado com a mão, num momento de glória que a Federação Portuguesa de Futebol onírica ainda hoje recorda como la mano de Pedrosa. Vencemos o jogo, fui símbolo nacional, já ninguém se lembrava do Eusébio. No fim, como agradecimento, os membros do governo deram-me um rissol.

Deslizei montanha abaixo, o vento bateu-me na cara, relaxei os músculos todos e comprovei o ditado: a descer, todos os pneus ajudam. Já passava da meia-noite quando cheguei a casa, e eis-me então na farra do WhatsApp de novo, desta vez com a Andreia Filipa: “Pá, dei alta volta agora por Monsanto.” E ela logo, sem perceber que eu era o Armstrong: “Agora? E não tiveste medo?”

Lá vinha a treta dos violadores de novo. Claro que tive vontade de a mandar dar uma curva. Se a primeira me irritou, a segunda escarafunchou a ferida com pimenta. E só não bloqueei esta porque, continuando tão implacável, daqui a pouco só me resta a vizinha da frente, que ainda por cima me odeia, porque, desde que o teletrabalho começou, tem de me ouvir a cantar Aznavour e Tony Carreira a tarde toda.

Bati na mesa, parti uma caneca, inspirei fundo, fui adulta. Disse-lhe: “Não. Se alguém se meter comigo, eu não sou uma idiota que não se sabe defender.” E ela impávida: “Sim, mas à noite não há luz na estrada, ainda te atropelam.”

Meti a raivinha entre as pernas e fui dizer ao Tomás Pedro, quase como quem não levou uma lambada: “Descer Monsanto à noite é um espectáculo.” E ele, que conhece os segredos à floresta: “Ya. Fiz ontem a pé e vi um rato.”

Agora quem nunca lá mais mete os pés sou eu. Violadores ainda aguento, mas tenho muito medo de ratos.


Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.

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7 Comentários

  1. Pobres ratos… Sempre os eternos injustiçados!
    Sugestão para a Ana Pedrosa: pedale furiosamente por Monsanto e… dê cumprimentos a todos os esquilos com que se cruze! São uns gajos fixes, os esquilos! São assim como o Tico e o Teco, mas com mais dignidade.
    Quando estiver familiarizada com os simpáticos felpudos, vai começar a reparar que os ratos são aaaa… uma espécie de esquilo sem cauda! Com a agravante de serem vítimas de toda a espécie de visões estereotipadas e discriminatórias! (e aqui espero estar a deixa-la com um brutal peso na consciência…).
    Perca o medo de ratos!
    Veja-se a pedalar por Monsanto e, tal como uma mamã ganso é seguida pela sua prole, a Ana Pedrosa, na sua bicla Ikea, a ser seguida por uma entusiasta fila de ratos, ratinhos e ratões, como uma flautista de Hamelin dos tempos modernos. Não precisa da flauta (não quero que largue o guiador!). Limite-se a cantar as tais cantigas do Tony Carreira! A rataria a correr atrás de si está garantida!

  2. Se tiver ratos atra’s de mim, pode ter a certeza de que pedalarei furiosamente por Monsanto. Talvez ate’ aguente a volta ‘a Europa sem paragens.

  3. Não há assim tantos ratos no Monsanto, pois as cobras comem-nos todos.

  4. Adorei a narrativa!… E eu também abomino ratos (e baratas)!

  5. É pá…tive fora deste planeta por demasiado tempo… Como só vi isto agora?! Muito bom!!!

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