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O que vai ser da minha vida agora? O que vai acontecer? O que vou fazer? Onde vou dormir? O que vou comer? Eram estes os meus pensamentos sentado no banco do comboio em direção a Lisboa. Regressava à minha cidade com uma mala e uma mochila com a minha roupa essencial, um cobertor, duas toalhas, alguns objetos pessoais e pouco mais. Foi o que achei necessário e também não podia trazer mais. Tinha algumas moedas na carteira, dois ou três cigarros e um telemóvel sem saldo.
Era isto apenas o que tinha, o que restou da minha vida.
Sempre fui um homem de coragem e com pensamentos positivos. Mas agora estava com medo. No entanto pensava que seria em Lisboa que encontraria solução para a situação em que me encontrava. Afinal era nas ruas de Lisboa que a vida dos sem abrigo era uma realidade, pelo que conhecia através da comunicação social e pelo que eu próprio observei ao longo dos anos.
Olhava para o Parque das Nações com um nó na garganta, cheio de boas memórias e recordações da minha vida e do meu passado naquele local.
Cheguei à Gare do Oriente por volta das 8 horas da manhã. Enquanto descia as escadas rolantes da estação lembro-me de pensar como a minha situação era surreal. Olhava para o Parque das Nações com um nó na garganta, cheio de boas memórias e recordações da minha vida e do meu passado naquele local. Agora sentia uma angústia terrível e tinha uma sensação de impotência.
Não tinha a quem recorrer. Amigos? Os poucos que já tinha fui perdendo-os à medida em que a minha situação se agravava. E também, confesso, fui escondendo de alguns o desenrolar da minha vida no último ano. Simplesmente por vergonha. Tentei pedir ajuda ligando a um ou outro, mas a respostas do outro lado eram “a minha vida também está difícil”, “desculpa”, “lamento”, “estou a ficar sem rede, liga mais tarde”…
À saída da estação, gastei as minhas últimas moedas num café e numa garrafa de água e sentei-me em cima da mala junto às paragens dos autocarros, sem saber o que fazer. Acendi o meu último cigarro.
Lembro-me dessa manhã quente de Julho como se fosse hoje.
Pouco há a dizer sobre esse dia, pois pouco ou nada fiz. Deambulei pelo Parque das Nações, durante todo o dia carregando a mala e com a mochila às costas como que esperando alguma coisa, uma saída ou solução. Tinha começado a observar aqueles que pediam moedas a quem passava, provavelmente a maioria sem abrigo, nas entradas da estação e do metropolitano.
Eu devia ter o aspeto de um fulano qualquer vindo da província e sem saber o que fazer. Era um alvo fácil.
Por vezes pediam-me a mim e olhavam de lado para a minha mala. E era melhor eu ter cuidado, pois realizei que deveria ter o aspeto de um fulano qualquer vindo da província ou algo do género, recém chegado a Lisboa e sem saber o que fazer. Era um alvo fácil, pensei eu.
Cheguei à conclusão que seria melhor começar a integrar-me ali de qualquer forma. Afinal quem era eu a mais do que eles? Lembrei-me de começar a pedir também, nem que fosse para comprar alguma coisa para comer, mas quem iria dar dinheiro a um homem com uma mala de viagem, mochila e ainda com relativo bom aspeto?
Além disso eu precisava era de um sítio para dormir. Estava a começar a ficar cansado, com fome e a entrar em desespero, pois já se avizinhava o princípio da noite. Um homem pediu-me um cigarro. Olhei para ele. Não me inspirou confiança nenhuma. Tinha mais ou menos a minha idade, mas tinha um aspeto pesado com as feições rudes. Tinha as calças de ganga velhas e usadas e a t-shirt estava suada. O cabelo estava sujo e a barba estava grande e desalinhada.
Disse-lhe que não tinha tabaco nem dinheiro. E ele disse-me que já sabia que eu não tinha dinheiro, mas que poderia ter um cigarro. Perguntei-lhe como sabia que eu não tinha dinheiro. Ele olhou para mim com uma expressão lógica e vazia e respondeu: “Se você tivesse dinheiro, não andava aí de um lado para o outro com as malas às costas o dia todo. Tenha cuidado.” E virou-me as costas tão depressa como me abordou.
Percebi então que ele teria estado a observar-me o dia todo. E olhei em volta… apreensivo. Estava junto à entrada do Centro Comercial. Cansado, muito cansado… Olhei para a porta do Centro observando as pessoas a entrar e a sair. Pensei então que deveria começar a procurar um sítio para dormir. Mas onde?
Entretanto outro homem pediu-me dinheiro. Olhei para ele. Tinha, lá está, aspeto de sem abrigo. Decidi contar-lhe a minha situação em breves palavras. Ele começou a ouvir-me. Mas interrompia-me constantemente, olhando para mim de alto a baixo e para a mala, perguntando-me ansiosamente se tinha alguma coisa de valor para vender. Claro que não tinha. Eu estava a pedir ajuda!
Não consegui acabar de lhe relatar a minha situação pois ele depressa me virou costas dizendo secamente: “faz-te à vida!” Fiquei com aquelas palavras na minha cabeça enquanto o via afastar-se. Faz-te à vida… Eu nem sequer sabia onde iria passar a noite.
Estava cansado. Esfomeado. Não tinha comido nada o dia inteiro. Precisava de um banho. Nunca tinha sentido angústia por precisar de um banho.
Estava cansado. Esfomeado. Não tinha comido nada o dia inteiro. Sentia-me desconfortável. O dia tinha estado quente. Precisava de um banho. De um banho… Nunca tinha sentido angústia por precisar de um banho. Senti também um desconforto intestinal. Dirigi-me lentamente para dos sanitários da estação. Entrei num dos cubículos e fechei a porta. Pousei a mala e a mochila num canto onde me parecia não haver poças de urina. Sentei-me na sanita olhando para a porta mesmo à minha frente cheia de inscrições, graffitis e com um aspeto sujo assim como todo o cubículo. Ao meu lado reparei que o papel higiénico tinha acabado.
Fixei os meus olhos de novo na porta e chorei. Chorei como nunca tinha chorado na minha vida, sentado na sanita de uma casa de banho pública.
À saída, fui abordado por um segurança da estação. Perguntou-me se estava com algum problema, pois disse que já tinha reparado em mim desde há horas atrás e que eu lhe parecia perdido.
Sem hesitar, nervosamente contei-lhe tudo em linhas gerais, na esperança que pudesse obter ajuda. Mas ele simplesmente lamentou a minha situação, dizendo que eu não poderia ficar dentro da Gare e aconselhou-me a tentar pedir ajuda lá fora ao restante pessoal. Restante pessoal? Mas quem é o restante pessoal, perguntei eu. Ele respondeu apontando na direção do Parque: “O pessoal que não tem onde dormir.” Novamente lamentou a minha situação e desejou-me boa noite.
Já passava da uma da madrugada e estava já tudo a fechar. Dirigi-me então para um dos jardins. Olhei para os bancos. Lembro-me que escolhi um por baixo de uma árvore, pois pareceu-me mais acolhedor.
Finalmente saí da estação, pensando que não queria conhecer mais “pessoal” como os meus interlocutores anteriores. Já passava da uma da madrugada e estava já tudo a fechar. Dirigi-me então para um dos jardins do Parque por trás do Centro Comercial. Não se via ninguém por ali. Olhei para os bancos. Lembro-me que escolhi um por baixo de uma árvore, pois pareceu-me mais acolhedor.
Pensei que estava a ver um banco de jardim pela primeira vez com uma perspetiva diferente. A perspetiva é diferente quando entramos num parque ou jardim à procura de sítio para dormir. Tirei o cobertor da mala e coloquei-a num dos lados do banco como se fosse uma almofada. Deitei-me e tapei-me com a mochila junto ao corpo. Lembro-me de olhar para o céu pois estava uma bonita noite de Verão, com o céu estrelado, sentindo o desconforto das ripas do banco nas minhas costas.
Deitei-me de lado e fechei os olhos. Mas não conseguia dormir. Estava cheio de fome e não conseguia manter uma posição confortável no banco. Senti-me só. Como nunca me sentira na vida. Sentia-me amargurado e derrotado. Sentia medo. Chorei de novo. Abri os olhos olhando o céu que estava lindíssimo e lembro-me de pensar: amanhã é outro dia. Fechei de novo os olhos e adormeci.

Jorge Costa
Morreu aos 55 anos em abril de 2022. Nasceu em Lisboa, cidade onde sempre viveu. Na Mensagem, partilhou a sua experiência da vivência nas ruas, sem teto para viver e para dormir. Foi sem abrigo durante 8 meses, até maio do ano passado. Escreveu sobre esta “difícil experiência, indigna e quase desumana”. Publicou um livro póstumo, Diário de Um Sem Abrigo, na Oficina do Livro.
Um relato simples e duro. É notável a sua coragem. Tudo de bom para si, Jorge.
Obrigado.
Leio com toda a atenção o seu relato. Mesmo sabendo tanta coisa sobre cada situação, sobre cada um, cada uma… ler na primeira voz constitui uma experiência emocional intensa e lembra-nos quanto ainda estamos aquém das soluções adequadas a cada pessoa. Muito se tem feito nesta matéria mas o tempo entre a chegada à rua e o seu abandono para um outro ciclo é algo que nos deve chocar… é, tambem, algo que deve interpelar todas as vontades para que estas situações deixem de existir. É nisso que todos nos devemos focar. Um abraço Jorge.
Teresa, é precisamente e apenas o tempo da chegada à rua e o seu abandono, como dizes, que eu quero focar nestas crónicas. Não é o porquê de uma pessoa chegar à condição de sem abrigo nem as suas soluções que eu pretendo relatar aqui. Isso compete a outras pessoas. Pretendo sim partilhar com as pessoas o que é viver e sobreviver nestas condições. Eu gosto sempre de lembrar que se eu estou a escrever estas crónicas é porque fui “sacado” a tempo. Embora me tenha parecido uma vida, foram apenas oito meses que vivi nas ruas. Existem pessoas que estiveram lá anos. E muitas ainda estão. E essas pessoas já estão completamente desestruturadas. Não conseguiriam partilhar nada, quanto mais escrever. Já não conseguem. Grato pelo teu comentário.
Li atentamente tudo o que escreveu..
Num português correto, sem erros e bem descrevendo a sua chegada a esta Cidade.
Espero que neste momento em que escrevo o meu comentário a sua vida já tenha mudado para melhor.
Escreva, escreva sempre, gostaria de o ler um dia…
Muito bem Jorge
Vim parar a esta notícia por acaso e fiquei presa ao seu relato. A questão dos sem abrigo é algo que me choca e mexe comigo porque acho que é o estado mais degradante na condição de ser humano, não ter um teto, dormir na rua… Ninguém devia passar por esta situação. Fiquei contente por ler que já não vive na rua e que tenha começado a reverter essa situação. É algo onde o nosso Estado tem que trabalhar, não podem haver pessoas a dormir ao relento, sem o conforto sequer de uma refeição… A Comunidade Vida e Paz é uma instituição que apoio sempre que posso e mais houvessem como eles. Tudo de bom para si.
Sim, felizmente já tenho casa e vou continuar a escrever esta crónica aqui mensalmente. Grato pelo seu comentário.
Conheço os carros de apoio aos sem abrigo da Comunidade Vida e Paz. Foram muitas as vezes que me forneceram uma refeição quando eu estava nas ruas. Quanto às situação dos sem abrigo, eu e muitos mais estamos neste momento inseridos no programa Casas Primeiro, programa este que nos disponibilizou uma casa. Mas o que eu quero partilhar nestas crónicas é a experiência pessoal da vivência e sobrevivência nas ruas, situação esta que penso que nenhum ser humano deveria ser sujeito, independentemente de quem seja ou qual seja o seu processo de vida.
Obrigada Jorge por mais esta partilha.
Desculpa se como sociedade permitimos que tivesses passado por tudo isto sem uma solução imediata. Desculpa sermos enquanto sociedade excessivamente complexos, burocráticos e preconceituosos.
Sabes Jorge, falta-nos tempo, falta-nos foco, mas falta-nos sobretudo a vontade genuína de queremos e exigirmos o fim de todas estas situações.
E quando queremos MESMO conseguimos tanta coisa, em cooperação e com força de vontade! Jorge, tu até conseguiste sobreviver 8 meses numa situação profundamente indigna e vulnerável. Fico tão triste.
Porque se conseguimos tudo, o bem também está ao nosso alcance!
Continuo enquanto cidadã ao dispor da minha cidade, do meu país e do mundo para juntos fazermos acontecer as mudanças que apregoamos sonhar vir a ter.
Força Jorge e muito obrigada por estares a partilhar connosco de forma exímia e transparente o lado A da pobreza, exclusão social e vulnerabilidade humana.
Obrigado pelo teu comentário Susana. Mas sabes, eu não sei se alguém tem de pedir desculpa ou não. Aliás não é o meu objetivo com as minhas crónicas que nos peçam desculpa. O meu objetivo é que as pessoas saibam e conheçam como vivem os sem abrigo. E ajudem, se puderem. Ajudem, sem se sentirem culpadas, porque nós também temos as nossas culpas. Também errámos! Por isso chegámos ao ponto onde chegámos. Mas não é isso que está em causa, na minha opinião. O que está em causa é que quem quer que seja e seja qual o seu processo de vida, ninguém deveria viver nas ruas. Porque é mau para toda a gente. Mau e indigno para quem lá está, mas também é mau e embaraçoso para a sociedade e vergonhoso para quem nos governa! Devemos todos dar as mãos e resolver este problema, este flagelo social! E o meu bem haja para quem nos está a ajudar neste momento.
Devemos dar as mãos! Concordo. 🙂
Boa tarde, Jorge
primeiro que tudo, a minha gratidão por estas declarações cruas do verdadeiro mundo em que todos vivemos mas muitos desviam o olhar e o pensamento, desacreditando da existência desta realidade de TODOS nós. Sim, todos, porque estamos inseridos numa sociedade na qual, infelizmente, o lema é “Somos o que temos”.
Vim a conhecer os seus relatos recentemente e tentei arranjar forma de entrar em contacto consigo mas não encontro nenhum email que o permita. Assim, faço-o por aqui. Já tive a oportunidade de “acompanhar” alguns sem abrigos e ajudá-los dentro das minhas possibilidades, fornecendo alguns materiais de conforto e comida, perto da minha zona de residência, sempre que posso. Passo todos os dias pela Estação do Oriente, provavelmente já me cruzei com o Jorge, tal como com tantos outros. Infelizmente nunca tive a possibilidade de ajudar da forma que almejo, os sem abrigos que frequentam esta zona, e gostava muito. Sei de várias instituições/associações/grupos que se prestam a isso, mas penso que talvez me possa indicar quais os grupos mais ativos nessa zona. Agradecia muito.
Muitas pessoas não têm a noção de que têm a capacidade de ajudar mais do que aquilo que pensam. Acredito muito que devemos ser uns para os outros. Desejo-lhe muita luz na sua vida. E continue a escrever, sempre.
Obrigada pela sua atenção,
Margarida L.
Infelizmente tive uma situação parecida com 19 anos num país desconhecido…são momentos difíceis em que nos sentimos no fundo do abismo.a unica diferença é que não fiquei 8 meses na rua…nem quero imaginar a sua angústia. Espero que nunca mais passemos por isso!um abraço