Foto: Líbia Florentino

Como jogador, ele defendeu a seleção de Portugal, atuou em Inglaterra e Alemanha, dividiu o balneário com Deco e Maniche, foi treinado por Jorge Jesus e chegou a parar Cristiano Ronaldo no relvado. Hugo Costa planeava seguir carreira como técnico, mas nem um defesa experiente como ele conseguiu evitar os dribles do destino e o homem que sonhava dirigir uma equipa agora paga as contas conduzindo um Uber.

“Faço com tanto gosto como fazia no futebol”, garante Hugo, as mãos firmes no volante do Fiat Tipo que conduz por Lisboa. O antigo defesa que deu os primeiros passos nos escalões inferiores do Benfica desvia-se dos obstáculos da via com a destreza de um avançado. A carreira de futebolista sofreu com solavancos, mas a sua condução não tem altos e baixos.

A viagem-entrevista começou no Bairro Alto, num daqueles lances fortuitos em que a bola sobra para você na área, com a baliza livre, já sem o guarda-redes. O jornalista, assim como o jogador, precisa de ter sorte e, às vezes, uma boa história acaba por bater-lhe à porta. Ou, no caso, a abrir-lhe a porta de um carro. E, novamente como o bom avançado, basta estar atento para não desperdiçar o golo.

“Álvaro, não é?”, perguntou, seguindo o protocolo das corridas via aplicação. Respondi afirmativamente e o sotaque brasileiro foi o pontapé de saída de uma entrevista que só terminaria em Alvalade, com uma sessão fotográfica ao pé da minha casa. “Pois, joguei com um conterrâneo vosso lá na Alemanha”, diz Hugo, sem deixar a bola cair, enquanto lentamente contornava a praça Camões.

O futuro defesa-central Hugo Costa nasceu em Santarém, há 48 anos, filho de Vicente Costa, então avançado do Tramagal Sport União. Chegaria a Lisboa pouco tempo depois, acompanhando o pai, que trocara de clube, para o Sintrense. Aos nove anos, era o filho quem repetia os passos paternos e adentrava no relvado, nas divisões de base do Benfica. Uma década depois, em 1990, assinava como sub-19 do clube da Luz.

Seleção, Jesus e Cristiano Ronaldo

Era o início de uma carreira que se encerraria duas décadas depois, no Pinhalnovense. Entre o primeiro remate no Benfica e o último, em Pinhal Novo, Hugo Costa defendeu ainda o Gil Vicente, Beira-Mar, Estrela Amadora, Alverca, Vitória de Setúbal e União de Leiria, uma digressão por emblemas portugueses intercalada por turnés internacionais no Stoke City (Inglaterra), RW Oberhausen (Alemanha) e Atromitos (Chipre).

O périplo futebolístico conta ainda com cinco dezenas de internacionalizações nas seleções de Portugal, com participação no Europeu sub 16 (1990) e sub 18 (192), e no Mundial sub 20 (1993). Em 20 anos, foi treinado por nomes como o atual selecionador português, Fernando Santos, no início da carreira profissional no Estrela Amadora, e pelo atual técnico da Roma, Paulo Fonseca, já no apagar dos refletores, no Pinhalnovense.

Hugo, no comando do carro, enquanto espera a oportunidade para voltar a dirigir uma equipa. Foto: Líbia Florentino

“Logo se via que Ronaldo era irreverente. Dei-lhe, assim mesmo, um bom amasso.”

Foi ainda jogador de Jorge Jesus, não uma, mas duas vezes, a segunda no União de Leiria. Na primeira, pelo Vitória de Setúbal, chegou a ter pela frente Cristiano Ronaldo, a dar os primeiros dribles pelo Sporting. “Logo se via que era irreverente”, lembra Hugo, em relação ao futuro melhor do mundo. Naquela noite, entretanto, era apenas um adversário como outro qualquer. “Dei-lhe, assim mesmo, um bom amasso”, confessa.

Hugo não se recorda do resultado do jogo, mas o Google tem memória. O Vitória de Setúbal venceu o Sporting por 4-3, em Alvalade, não só com Cristiano Ronaldo como titular, mas também com Ricardo Quaresma e Paulo Bento no onze inicial leonino.

Dos relvados para o TVDE

O Fiat Tipo descia em direção ao Marquês e a inevitável pergunta finalmente surgiu, incómoda como uma contusão no tornozelo: e, apesar de tudo, não conseguiu ganhar um bom dinheiro?

“Não é bem assim, o futebol não é a vida de sonhos que se vê nas revistas”, responde Hugo, enquanto acelera para vencer o declive na Fontes Pereira de Melo. O universo que orbita uma bola, das cifras astronómicas e a promessa de se tornar um astro, está a anos-luz da realidade, do salário nada estratosférico e da carreira que passa como um cometa. Quando o candidato a estrela se dá conta, já é uma estrela cadente.

Sem treinar uma equipa desde 2018, há dois anos decidiu reforçar o orçamento como motorista. Foto: Líbia Florentino

Um inquérito sobre Literacia Financeira, realizado em 2019 com mais de 400 jogadores portugueses das primeira e segunda divisões, ilustra bem esse cosmos. Na amostra dos entrevistados, 28,5% disseram receber mais de 2.5 mil euros por mês, enquanto 26,4% indicaram rendimentos entre 1 mil e 2,5 mil euros. Para 13,9%, os salários rondam os 500 e 1 mil euros. Há ainda 1,7% deles que suam a camisola para não receber nada.

“O futebol não é a vida dos sonhos das revistas.” Quando o candidato a estrela se dá conta, já é uma estrela cadente.

“As coisas têm que ir para a frente e sou um homem de compromissos. Só tinha o décimo-segundo ano, não tinha licenciatura”, justifica-se Hugo, seguro, prudente, o carro parado à espera do sinal verde na rotunda de Saldanha. Enquanto também aguarda por um sinal verde para retomar a carreira de treinador, desde 2019 completa o orçamento como motorista a partir de plataformas eletrónicas.

“As coisas têm que ir para a frente e sou um homem de compromissos. Só tinha o décimo-segundo ano, não tinha licenciatura.”

E o que será mais difícil, dirigir uma equipa ou um Uber? Hugo acha piada à pergunta e sorri um sorriso alvo, de comercial de televisão. “Há um certo paralelismo”, filosofa, pondo o carro novamente a andar. “Mas como treinador, não basta apenas a boa vontade.” O Fiat Tipo novamente para, numa passadeira na Av. da República. Um peão agradece com a cabeça.  “Gerir pessoas é mais complexo, exige uma sintonia, um bom espírito de grupo”, completa.

Certificado com nível II de técnico, Hugo treinou o Fabril de Barreiros, o AD Oeiras e o Aljustrelense. Foto: Líbia Florentino

A carreira de treinador começou três anos após Hugo se reformar como atleta. Já com o certificado nível II de técnico, comandou, entre 2014 e 2017, ora no Campeonato de Portugal ora nos distritais, o Fabril do Barreiro, o AD Oeiras e o Sport Clube Mineiro Aljustrelense. Nesse último, Hugo percebeu que o “Mineiro” na alcunha não era por acaso, uma vivência que lhe disse muito sobre a complexidades em “gerir pessoas”.

“Havia lá no plantel seis, sete jogadores que trabalhavam na mina durante o dia. E o trabalho na mina sabes como é, não é fácil”, conta. Pelo para-brisa, à frente avista-se o Campo Pequeno, mas os olhos do motorista estão lá atrás, no passado. Hugo conta que os jogadores chegavam para os treinos à noite, após o expediente, exauridos. “Não havia como pedir para que eles corressem, que dessem o máximo”, resume

“Havia lá no plantel seis, sete jogadores que trabalhavam na mina. Não havia como pedir para que eles corressem mais.”

A experiência à Germinal com os atletas mineiros foi fulcral na decisão do antigo jogador em abrir outras frentes, para além do trabalho como técnico. Afinal, como numa partida, às vezes é preciso antecipar-se à jogada. Esta visão de jogo permite-lhe também revisitar os próprios passos como jogador. Para ele, a participação no Mundial sub 20 acabou por determinar o rumo da sua carreira.

Em 1993, Portugal chegou à competição como campeão das últimas duas edições, em 1989 e 91. Desta vez, porém, não passou da fase de grupos, numa campanha pífia, com três derrotas nas três partidas disputadas e a última colocação no grupo. “Foi uma geração esfrangalhada”, resume Hugo. “Se fosse diferente, talvez tivesse tido uma oportunidade no Benfica, e não, sido emprestado”, especula.

Ao olhar pelo retrovisor, Hugo acha que a fraca campanha de Portugal no Mundial Sub 20 foi determinante. Foto: Líbia Florentino

O carro mergulha no túnel e, quando emerge do outro lado, Hugo parece não mais disposto a olhar pelo retrovisor. O Fiat Tipo margeia o Jardim Mário Soares e dobra na avenida da Igreja. Em poucos segundos, chega ao destino. Enquanto se prepara para a sessão improvisada de fotos, pergunto sobre uma boa recordação.

“Os tempos no Alverca, quando subimos para a Primeira Liga”, elege, sorrindo para a objetiva, sentado no capô do carro, com uma bola de futebol na mão. A promoção de divisão pelo FC Alverca, na companhia de Deco e Maniche, foi o mais perto que chegou de erguer um troféu. Pelo menos, até agora.

O telemóvel fixo no tabliê do carro trina um apito, sinal de que mais uma partida como motorista está para começar. Hugo devolve a bola, senta ao volante e liga o motor. Em tom de pedido, sugere que capriche no texto. Sabe que o imponderável faz parte do jogo e que a próxima chamada, não para dirigir o seu Fiat Tipo, mas um clube, pode estar nas mãos de quem esteja a ler estas linhas.

Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt

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