Não foi um destino traçado. Na família de Paulo Marques, 47 anos, ninguém dava aos elétricos mais importância do que aquela que tinham para a vida na cidade: transportar cidadãos de pontas a pontas. E embora os pais lhe contem que os primeiros passos que deu na vida foi à espera de um elétrico em Santos, nem esse sincronismo que hoje reconhece faria adivinhar o que ele viria a ser: um colecionador de elétricos. Mas porque um colecionador de elétricos tem lugar num jornal? É que Paulo não coleciona miniaturas de elétricos, mas verdadeiros elétricos, funcionais, aqueles que vemos a percorrer os carris da cidade – quanto mais antigos melhor.

É na ponta de uma ruela escondida atrás da fachada alta do Teatro D. Maria II que Paulo passa os seus dias, a servir refeições no restaurante que herdou do pai e do avô, O Marques. Normalmente, a turistas, a lisboetas e, muitas vezes, a artistas e equipas de produção que param ali no teatro – ou no Coliseu, ali ao lado. A noite não é de espetáculo, a cidade está parada com a pandemia e, por isso, às 15 horas de um dia de semana já começa a preparar o fecho do espaço. Encolhe o toldo onde tem inscrito o nome do restaurante e aguarda para ver os últimos clientes sair.

Não é difícil perceber a paixão de Paulo, logo à entrada. Por cima das nossas cabeças, está afixada uma peça larga e pesada de fácil reconhecimento: é o letreiro de um elétrico, em que o destino da viagem se desenlaça de um rolo num pano preto com letras cravadas a branco. Este é dos antigos – agora, os letreiros são impressos em chapas de plástico – e foi uma oferta da Carris. Embutidos no chão de pedra , debaixo dos nossos pés, estão uns quatro metros de carril. No final desse carril, a imagem impressa, na parede, de um elétrico com destino ao Rossio.

À esquerda e à direita, uma televisão suspensa de cada lado passa, normalmente, vídeos com imagens antigas de passeios de elétrico na cidade. “Quando coloco aqui esses vídeos, é uma aceitação louca das pessoas [clientes] mais antigas, que dizem: ‘Quando era miúdo, também andava na pendura, o pica vinha bater-me com o alicate [de picar o bilhete] nas mãos para sair’. As pessoas recordam e regressam no tempo.” 

Paulo guarda instrumentos utilizados antigamente pelos conhecidos “picas”, como o “alicate” que picotava o bilhete dos utilizadores de elétricos. Foto: Álvaro Filho

Portanto, esta é paixão anunciada por Paulo, nesta que é a sua segunda casa. Ele não sabe explicar em que momento a ganhou. “É desde criança”, não tem dúvidas. Nascido na freguesia de São Jorge de Arroios – atualmente, apenas designada Arroios – e criado em Santos-o-Velho, o ruído enferrujado, o tilintar da campainha e o amarelo do elétrico são  presença cativa na sua memória visual e auditiva.

“O meu transporte foi sempre esse.” Como para a maioria dos lisboetas na altura, quer para aqueles que viviam no centro da cidade quer para aqueles que viviam “na periferia”.

Paulo trocava o conforto do banco, o entusiasmo do lugar à janela ou mesmo a adrenalina de ir “na pendura” para ir, sempre, “ao lado do guarda-freio”.

Desde o tempo em que elétricos faziam crescer Lisboa

Os bairros mais periféricos cresceram e foram trazidos para dentro de Lisboa por conta do elétrico, diz Paulo Marques. “O bairro de Benfica cresceu com o elétrico, o Lumiar, o Areeiro também. Todas estas zonas cresceram porque houve um transporte que expandiu Lisboa, não se limitou ao centro. Se virmos fotografias dos anos 30 de Carnide, era uma aldeiazinha lá na ponta e toda aquela estrada da Luz eram azinhagas e quintas. O elétrico potencializou a construção e edificação, aumentou a cidade, foi um colonizador.”

A frota, na altura de 400 elétricos, estava também longe de se assemelhar à atual: “Ao serviço público, devem andar à volta de 35, neste momento”. Só o bairro de Santos-o-Velho, onde viveu, junto ao rio, era atravessado por cinco carreiras – a 19, a 25, a 26, a 29 e a 30.

Da escola para casa, em viagem para qualquer lado da cidade, era de elétrico que Paulo ia. E sempre posicionado num lugar pouco comum. Trocava o conforto do banco, o entusiasmo do lugar à janela ou mesmo a adrenalina de ir “na pendura” para ir, sempre, “ao lado do guarda-freio”. “Gostava de o ver manobrar, de tentar entender todos os órgãos de condução que eles tinham, era uma paixão”, confessa.

Ainda hoje, apesar das comodidades serem diferentes, Paulo faz questão de andar de elétrico quando é possível. “Muitas vezes por saudosismo.” Admite que se trata de uma saudade comum a tantos lisboetas da sua geração e mais antigos, mas garante que não há paixão por elétricos como a sua. E, aos 23 anos, decidiu comprar o seu próprio elétrico.

Pai de oito, resgatados de vários pontos do país (e mundo)

Puxamos de uma cadeira, sentamo-nos à mesa, porque a conversa avizinha-se longa, entre nomes de modelos, datas e técnicas de restauro. “Sempre quis, um dia, comprar um elétrico”. A oportunidade surgiria quando Paulo tinha 23 anos, em 1996, e a Carris decidiu  renovar a sua frota, com maquinaria que contava já 90 anos de existência.

“Tivemos a felicidade de manter o sistema, que estava para ser cortado nos anos 70, tanto em Lisboa como no Porto. Com o 25 de Abril, suspendeu-se essa situação e prolongou-se a vida útil destes ‘carros’”, conta. Entraram dez novos elétricos. E “por cada dez destes que entravam, saíam quatro dos antigos”. Nas contas finais, ficaram de fora 42 elétricos, que a Carris tratou de colocar à venda a pessoas privadas que mostrassem interesse.

O preço “era simpático”, o sonho de adquirir um continuava vivo, por isso, no frio dezembro de 1996, investiu na compra, em parceria com um amigo. Por 100 mil escudos, cem contos, na altura, “à volta de 585 euros, se fosse agora”.

É num terreno no Carregado que o colecionador reúne os seus elétricos, para ali mesmo os restaurar. Foto: Álvaro Filho

Paulo ia com um modelo específico na mira, o elétrico 615. Era aquela série a que mais gostava. Porquê? Porque sabia o que o esperava em termos de longevidade da máquina: “Eu conhecia muito bem os carros ao nível de restauro. Eles faziam intervenções pontuais e aquele tinha sido intervencionado há pouco tempo, por isso, a nível de carroçaria, estava excelente”. Pagou o dobro do preço só pelo transporte.

Esse primeiro elétrico que comprou colocou-o num terreno em Sintra, com o apoio da autarquia. Entretanto, lembra-se que tem familiares na Quinta do Conde, na margem sul, com espaço para albergar um elétrico – cerca de 600 metros quadrados. “Depois… foi um, veio o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto.” O resto da conta já a sabe de cor: chegou ao oitavo.

Mais tarde, na Grande Lisboa deixou de haver espaço para albergar tantos elétricos. Por isso, as personagens principais desta história estão agora a cerca de 40 quilómetros de distância, serenamente resguardadas num terreno com 10 000 metros quadrados que adquirido por Paulo comprou em 2014, no Carregado. “Mesmo assim ainda é pequeno.”

Lá, montou uns curtos metros de carril, o suficiente para “um chega à frente e chega atrás” com a maquinaria. Porque só neste local estaria habilitado a conduzir um elétrico. Ali estão atualmente 11 elétricos lisboetas – destes, apenas oito são seus.

Resgatou um elétrico de Inglaterra, “que tinha sido vendido para lá em 1997”. Foto: Álvaro Filho

Como um pai está para um filho, Paulo quis rastrear os passos de cada elétrico vendido pela Carris, na esperança de os conseguir comprar um dia, quando deixados ao abandono. Com pontos marcados no mapa, um dia, resolveu rumar de norte a sul do país, acompanhado por Pedro Barreto, um engenheiro da autarquia, percorrendo mais de 600 quilómetros para encontrar 22 destes elétricos. “Tínhamos conhecimento, porque tanto eu como ele éramos muito amigos de pessoas que trabalhavam no Arco do Cego [na área da Carris] e quando os carros saíam nós perguntávamos: ‘E, então, para onde é que vai?’. Registávamos a zona, íamos lá”.

A morada mais a Norte foi em Aveiro. Em Vila de Rei, adquiriu um de seis elétricos que tinham sido vendidos a uma pessoa em 1997. “O segundo… esperei por ele 20 anos”. Deixou um cartão ao dono, caso mudasse de ideias e a persistência valeu-lhe a compra há dois anos, em 2018. Aquele era especial, diz. “Pertencia a uma série de elétricos que vieram para Lisboa em 1907, é um carro que está muito próximo do original, mecanicamente estava muito completo – que é o que me interessa -, embora faltassem alguns bancos. Mas não é problema, porque eu comprei muitas peças à Carris.”

A coleção foi crescendo. Paulo comprou inclusive o 326, um elétrico de 1906 e o mais antigo de que dispõe, ao Jardim Zoológico de Lisboa, estando a degradar-se naquelas instalações. Foi também, mais tarde, resgatar um elétrico a Inglaterra, “que tinha sido vendido para lá em 1997”. Com o apoio de mais três amigos, transportou-o do Black Country Living Museum para o restaurar no seu terreno, em Portugal.

Há, no terreno onde guarda os seus elétricos, alguns metros de carril, para que possa andar com eles. Foto: Álvaro Filho

Cuidar, para um dia devolver

Paulo Marques viu a miséria e a destruição em que muitos elétricos comprados no final do século passado foram mantidos ao longo destes anos. Como amante da máquina – ou ‘carro’, como tantas vezes lhe chama -, lamenta. O que pode levar alguém que comprou  um pedaço de história da cidade a abandoná-lo? Porque, para Paulo, é isso mesmo: um pouco de Lisboa que ali persiste, no amarelo já gasto, na madeira queimada e no volante lesionado. É que “o elétrico faz um inverno, faz outro verão, faz outro inverno… se não houver qualquer intervenção, acaba por se deteriorar, porque o elemento principal do elétrico é a madeira”, lembra.

Quando não está ao comando do restaurante na Baixa, Paulo está no Carregado a tratar dos seus oito elétricos. “Tem de haver preocupação”, arrisca-se a dizer até “carinho”.

Junta-se ele o seu amigo Pedro Mendes e o filho de 14 anos, o Henrique, que nos escuta atentamente na mesa atrás. Henrique nem se lembra do primeiro dia em que se apaixonou, também ele, por elétricos, mas mostra ter herdado a paixão inteira que o pai carrega. Depois de ter aprendido a dar os primeiros passos em solo fértil, já sabia conduzir um elétrico e sabe do que precisam para que sejam preservados por vários anos. Tanto, que a este tema não quer ficar indiferente, por isso, puxa uma cadeira e, de repente, está ao nosso lado a acenar durante a conversa.

O processo de restauro é um teste à paciência . “Vamos desmontando, nas calmas, preparando o material. São coisas que levam algum tempo”, conta Paulo. Vão ao esqueleto do elétrico e aparam cada órgão desmembrado. “Ao fim ao cabo, é um puzzle de madeira.” E se a peça com o encaixe perfeito já perdeu a validade, troca-se por uma nova.

Recorda o 61, no qual investiu até peças originais das quais a Carris dispunha. Um elétrico de cancela – e não porta automática -, com bancos de palha e a campainha com o toque antigo. Ficamos a saber também que cada elétrico tem o seu toque de campainha. Todos são diferentes, garante Paulo.

O trabalho de restauro é feito a várias mãos. Paulo Marques (à esquerda) conta com outros dois amigos, apaixonados também por este meio de transporte. Foto: Álvaro Filho

Membros de volta ao corpo, é hora de tratar da pele, a madeira – o elemento principal do elétrico. Cada um deles deve levar “cerca de cinco camadas de proteção, para haver muitos anos sem preocupação”. Entretanto, os retoques: em cinco anos, se estiver abrigado, dentro de dois ou três, se estiver ao relento. Por último, dá-se cor (cor de avelã) ao ‘carro’. Tudo para que o elétrico possa voltar à sua vida original.

Paulo conta que, atualmente, um elétrico pode durar até 25 anos. No entanto, em tempos, a esperança média de vida rondou os 60 anos de serviço.

“A Carris teve um plano de manutenção das viaturas fabuloso, como há poucos no mundo. Quando saíram os elétricos antigos de circulação, aqueles que eu adquiri, a idade média era 60 anos. Para um veículo que anda todos os dias a transportar passageiros intensamente, tem de ser um nível de manutenção muito bom, muito exigente, para uma viatura, tendo esta longevidade. Estamos a falar de mecânica primitiva e de uma viatura que passa por diversos condutores. Nós já não temos isto e não temos autocarros e comboios com tantos anos de serviço”, lembra.

“Nunca foi meu interesse ter isto para guardar, para ver. Acho que o mais interessante é termos alguma coisa que possamos devolver, porque isto é cultura.”

PAULO MARQUES, COLECIONADOR

Os tempos são outros e sobre isso não se abre discussão. Embora Paulo Marques tenha, em si, a vontade de devolver à população, um dia, a memória daquilo que os elétricos fizeram por esta cidade. Guarda em mente duas opções.

A primeira passaria por estabelecer ele próprio um museu privado, onde incluiria, além dos elétricos adquiridos, um espaço sobre a história deste meio de transporte, através do espólio fotográfico e de peças que reuniu ao longo dos anos. Disponibilizaria, neste mesmo espaço, um pequeno circuito, de 100 ou 200 metros, para que as pessoas possam percorrê-los dentro do elétrico e “sentir o que era”.

Já “o projeto que mais ambicionaria seria uma parceria com uma câmara ou um privado que quisesse pôr isto a funcionar, num pequeno circuito turístico de três ou quatro quilómetros”. 

Desde o dia em que sonhou, pela primeira vez, conduzir um elétrico, enquanto se posicionava ao lado do guarda-freio a caminho da escola, e da primeira vez em que comprou finalmente um elétrico, Paulo Marques sonhava ainda mais com o dia em que pudesse devolver a memória à cidade. “Nunca foi meu interesse ter isto para guardar, para ver. Acho que o mais interessante é termos alguma coisa que possamos devolver, porque isto é cultura.”

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Catarina Reis

Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.

catarina.reis@amensagem.pt

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7 Comentários

  1. Muito diferente e rica em cultura, esta coleção. Interessante.

  2. Tenho na alma a Carris ttabalhei lá como desenhador projetista na Divisão de Linha era eu que elaborava os traçados de linha primeiro em tela depois na parte informática

  3. Parabéns pela coleção Paulo!
    Esta foi uma boa postagem!
    Mais uma vez parabéns!

  4. Onde fica no Carregado? Adorava visitar. É uma das minhas paixões, os eléctricos

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