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Muito se diz e escreve sobre a natureza mais perniciosa das redes sociais de como as guerras e os exageros discursivos são a regra. E com razão: a coberto do anonimato e por detrás de muitos “perfis falsos” muito se escreve e demasiado se diz. Mas como tudo: nunca nada é totalmente mau nem totalmente bom. E se há coisas que as redes sociais e, em particular o Facebook, fazem bem é “crowdsourcing”: se temos uma dúvida sobre algo em particular, da melhor forma de afastar os pombos da varanda, até ao melhor local para reparar um computador.

Esta campanha em particular começou com uma curiosidade. O que fazem duas lápides do século XVII na Igreja São João de Deus, construída em 1953, na Praça de Londres?
Todos estes casos acima descritos são casos reais e recentes. No último fiz uma experiência interessante: sou licenciado em História e a epigrafia é uma das minhas paixões pelo que tenho os conhecimentos básicos e as técnicas para procurar descortinar a razão por detrás da presença destas lápides numa capela mortuária da Praça de Londres. Mas preferi fazer uma “experiência social” e colocar em alguns grupos dedicados ao património e à História de Lisboa a pergunta de o que estavam aqui a fazer estas duas lápides do século XVII: Fórum CidadaniaLx, Lisboa Antiga e o grupo onde estou mais ativo e que se situa na mesma freguesia, os Vizinhos do Areeiro.
Bastaram apenas alguns minutos para começar a receber as respostas e pistas que depois cruzei, confirmei e compilei aqui – e no texto abaixo. A “sabedoria das multidões”, a curiosidade e compromisso pelo conhecimento da Cidade, levaram alguns dos membros destes grupos a seguirem as pistas e a identificarem a razão desta estranha “anomalia” no Areeiro e a descobrir assim a explicação de um dos “mistérios” da minha freguesia.

Então vamos à história: numa das cinco capelas do Centro Funerário São João de Deus da Igreja São João de Deus, construída em 1953 no local onde funcionava antes uma antiga vacaria, encontramos duas lápides funerárias de meados do Século XVII. A presença é inusitada porque, embora neste local da freguesia do Areeiro por volta desta época devessem existir algumas quintas e explorações agrícolas (algumas das quais sobreviveram em nomes de ruas), não há outros indícios da presença humana. De facto, em toda a freguesia o testemunho mais antigo é o monumento das “Pazes de Alvalade” (com primeira referência de 1760, alegadamente, mas improvavelmente, de 1323) ao qual se segue um portão de uma antiga quinta no Campo Pequeno com a data “1865”.
Estas duas lápides, de 1645 e 1650 poderão ser assim os dois mais antigos testemunhos históricos no Areeiro.

O que fazem duas lápides de meados do século XVII numa Igreja de meados do século XX?Até meados do século XX era comum fazer enterramentos dentro das Igrejas ou nos seus adros, de acordo com a classe social, sendo os mais abastados encontrados junto ao altar-mor e os mais pobres junto à entrada ou no átrio. Com o liberalismo, por iniciativa de Fonseca de Magalhães, em 1835, e por razões de saúde pública, isto foi proibido, obrigando à construção de cemitérios públicos em todo o país. Entre estes encontra-se, por exemplo, o não muito distante cemitério do Alto de São João. Assim sendo, sabemos logo que é impossível que estas duas lápides estejam, de facto, acompanhadas dos tumulados e que não são da época desta igreja, construída em 1953.
As duas placas, em epigrafia típica do século XVII e com alguns pormenores epigráficos comuns, mas curiosos, são as seguintes:
“Sepvultvra de Avgostinho franco de mesqvita faleceo a 19 de ianeiro de 1645”
e
“Sepvulvra de Donna Anna da cvnha faleceo a 18 de setembro de 1650”
Observam-se aqui alguns detalhes como o uso de V como U e V, algo que mesmo sem as datas permitira datar as lápides e que testemunham aquele foi, provavelmente, um dos últimos usos deste caracter U/V nesta função dupla. De recordar que, em Roma, “NVMERVS” tinha o U latino lido como vogal e o V de “VITA” lido como uma semivogal.
Mas foi precisamente na Península Ibérica, perto do termo da presença romana, que começou a divergência que haveria de dar no “VIDA” (V) do Português e no castelhano “BÍDA” (B/V). O uso misto U/V começou a separar-se no século XV para resolver o problema da grafia de palavras como “Vultur” (abutre) e “vulpes” (raposa) que eram escritas como “VVLTVR” e ‘VVLPES’ e foi assim que nasceu o V e o U. Esta separação, contudo, demorou muito tempo a ser aceite e só no fim do século XVII é que a diferença gráfica entre U e V entrou na moda, sendo muito rara por volta de 1690.
Igualmente curioso é o uso de “cunhas” (ou nos casos em que havia mais espaço de duas) para preencher espaço vazio e distribuir mais o texto pelo espaço disponível na lápide num “horror ao vazio” típico deste tipo de inscrições. A forma da cunha é também compreensível (desde a escrita suméria) porque é aquela que é mais fácil e rapidamente é feita com o mesmo cinzel que se usa para grafar os restantes caracteres. Este separador é comum nas inscrições em pedra embora hoje tenha caído em desuso. Na época romana usavam-se por vezes folhas de hera para esta função e nas estelas pré-romanas do Sul de Portugal (em Escrita Cónia) nenhum separador era usado.
Nestas duas lápides observa-se ainda a aglutinação de caracteres em que “DE”, “DO”, “NH”, “NN” (num efeito gráfico muito elegante) e “TE” surgem fundidos para poupar espaço na lápide sem redução do corpo de letra.
A fraseologia usada (com fórmulas idênticas em ambas as lápides e, exatamente, os mesmos tipos de letras) indica que foi feita pelo mesmo pedreiro e, provavelmente, para a mesma família (apesar de os nomes dos tumulados não indicarem essa relação).
Quanto ao conteúdo e identidade dos tumulados, não fiz qualquer investigação além da morfológica e coloquei à prova a “internet”, usando o “crowdsourcing cidadão”: coloquei a foto das duas lápides no Facebook e pedi ajuda aos cibernautas.
Eis o que assim foi possível descortinar sobre o “mistério” da presença destas duas lápides de meados do Século XVII na Igreja moderna da Praça de Londres (Areeiro):
1. No Arquivo Nacional da Torre do Tombo existe uma referência ao primeiro tumulado: “TESTAMENTO DE AGOSTINHO FRANCO DE MESQUITA, QUE NOMEIA POR TESTAMENTEIRO, SUA MULHER D. ANA DA CUNHA, AMBOS O FIZERAM À CAPELA-MOR DO SOCORRO PARA A QUAL APLICARAM UM JURO, DE QUE SÃO ADMINISTRADORES OS IRMÃOS DA MESA DA MISERICÓRDIA”.
Ou seja, ficamos a saber que as duas inscrições são tão semelhantes e estão, aqui, juntas porque são marido e mulher e já deveriam estar lado a lado no local original de colocação das lápides. Esta referência explica também porque estavam as duas lápides numa igreja já que se tratavam das sepulturas dos mecenas da Capela Mor ou Capela de Nossa Senhora da Saúde, também denominada “Capela de São Sebastião” ou “Capela de São Sebastião da Mouraria” da antiga igreja do Socorro.
2. Segundo outro documento no Arquivo o tumulado “Agostinho Franco de Mesquita” foi o proprietário e, provavelmente, habitante de algumas casas atrás da Igreja de São Domingos. Como a Igreja do Socorro não se encontrava muito longe é muito provável que fosse esta a igreja que frequentava juntamente com a sua família.
3. Os nossos “investigadores sociais” descobriram ainda que as duas lápides vieram da antiga Igreja de Nossa Senhora do Socorro (construída em 1596 e demolida em 1949), cujo recheio (incluindo estas lápides) veio para a Igreja São João de Deus, construída com o produto da venda do terreno à CML para fazer o Martim Moniz nos anos 1940 razão pela qual o nome original da estação de metropolitano do Martim Moniz era “Socorro”.
Alguns dos investigadores que ajudaram (muito) a esclarecer este “mistério” foram:
António Gonçalves da Silva
Carlos Boavida
Obrigado e Bem Hajam por terem participado nesta “experiência social” que demonstrou, mais uma vez, a sabedoria que existe nas redes sociais.
*administrador da Associação Vizinhos em Lisboa e dinamiza a página dos Vizinhos do Areeiro no Facebook.
Investigação muito interessante!
Muitos parabéns pelo empenho e pela forma como conseguiu obter tanta informação sobre as duas lápides que, apesar de toda a evolução histórica, foram bem preservadas e que acabaram por ser colocadas num lugar digamos condigno.
Muito obrigado
Até há muito pouco tempo parte da Av Almirante Reis pertencia à freguesia do Socorro. Daí o nome da estação do metro
Belíssima história, a relembrar o bom poder das redes sociais e do trabalho de equipa.
Por vezes olhamos para as coisas e ficamos na mesma : sem perceber ” patavina”. Obrigado pela vossa informação.
Muitos Parabéns ! Bom trabalho ! Confesso que cheguei a pensar tratar-se de lápides “falsas”. Aibda bem são verdadeiras e estáo em local adequado perpetuando a memória do casal sepultado na Igreja do Socorro, infelizmente sacrificada às imposições da urbanização.
M uito interessante I .Como vivo na Avenida Sacacura Cabral , gostava de fazer parte deste grupo ” Vizinhos do Areeiro ” , porque é a minha freguesia . Muito obrigada ! Maria do Rosário Mendonça Faceboook
Da mesma proveniência existe na igreja uma pedra de armas (brasão) dos tumulados.