O chalet do Jardim da Estrela, cuja demolição está no centro de uma das mais recentes polémicas lisboetas, tem uma história antiga, na cidade e no país: foi o primeiro jardim escola português, feito em 1882. O edifício de madeira, fundações e tudo, foi abaixo no fim de semana passado, as imagens dos buldozers espalharam-se e houve choque nos grupos de Facebook. Uma semana de pingue pongue de equívocos e denúncias mostram, entre outras coisas, como os lisboetas estão cada vez mais atentos à sua cidade e ao que aqui se passa. E querem saber mais.

Aliás, na primeira chamada de atenção para o que se iria fazer ali, em 2018, dois anos depois do fecho da escola, quando o blogue Cidadania Lx, de defesa do património, questionou a CML, do que era feito daquele local, dizendo que era “inaceitável e incompreensível esta situação que se arrasta há demasiado tempo”, não houve levantamento nas redes sociais. Apesar de o blogue dizer que o resultado estava “à vista de todos, basta ir ao local. É uma vergonha como tal situação persiste num espaço único como é o Jardim da Estrela.” Também o grupo Vizinhhos da Estrela, muito atento ao jardim, se mostrou preocupado.

Isso aconteceu agora, com o facto consumado e visível: as madeiras no chão.

a fotografia da destruição que correu as redes. Foto: twitter João Pinto de Campelos

Já lá vamos, às polémicas, comecemos pelas madeiras, e pelas histórias que contam, entre as que ficaram no chão e as que foram recuperadas – nomeadamente o frontão, parte das colunas, as portadas de algumas portas e janelas, as asnas dos tetos e o rendilhado dos beirais, peças da cobertura e junção das coberturas com os pilares, segundo a CML.

Para já: a inspiração, alemã, evidente, que torna este chalet tão bonito. Deve-se ao mesmo motivo do nome: Froebel, Friedrich Froebel, pedagogo alemão famosíssimo entre os que defendiam os ideais maçons e republicanos e por isso lhe deram o nome ao primeiro jardim de infância português. Froebel era de Oberweissbach, no sudeste da Alemanha, zona de florestas onde as crianças brincavam. Órfão de mãe, vivera uma infância solitária, e depois de se tornar professor, recebera muitas influências do pedagogo Johann Heinrich Pestalozzi na Suíça – que também dá nome a um colégio em Lisboa, em frente ao Colégio Moderno.

A construção do chalet foi ideia de Elias Garcia, no recém criado gabinete de educação. A Câmara nessa altura era dirigida por Francisco Manuel de Mendonça – e o famoso jornalista, maçon e republicano com nome de avenida, (que iria aliás assumir a presidência uns anos mais tarde), começou dando o passo certo usando os revolucionários ensinamentos de Froebel, que morrera em 1852 mas deixara uma obra fulcral no ensino dos mais novos.

Friedrich Froebel, pedagogo alemão do séc. XIX. Foto: Museu Froebel

Era a época de Lewis Carroll e da forma como este autor levara Alice ao país das maravilhas através da toca de um coelho – e não por razões narrativas. Começava a tomar-se consciência da importância da educação na mais tenra infância, e foi nesta tendência, e com o objetivo de promover a educação e o desenvolvimento da criança entre árvores e rios (mesmo em meio urbano), que Lisboa da altura decidiu criar uma escola infantil, em pleno jardim da Estrela, num acolhedor chalet em madeira.  

Froebel defendia a ideia de que uma criança é como uma planta e que na sua fase de formação deve ser alvo de cuidados para crescer de forma saudável. Por isso, embora inicialmente se tenha pensado em construir essa escola na Graça, precisamente na Rua que levava o nome “da Infância”, e que viria a ver algo semelhante na mais recente Sociedade de Instrução e Beneficência A Voz do Operário que ali viria a instalar-se, a opção final pela localização num jardim revelar-se-ia perfeita.

O projeto arquitetónico obedecia à doutrina do pedagogo alemão, também em matéria de espaços educacionais destinados à infância. Foi feito pelo arquiteto José Luís Monteiro e executado pelos serviços técnicos da CML. De resto, a arquitetura de inspiração germânica há muito que deixara de ser estranha em Portugal, já que com D.Fernando II, o príncipe Saxe-Coburgo que casara com D.Maria II em 1836, foi iniciada uma série de obras marcada por um romantismo muito ao gosto do Norte da Europa, de que o Palácio da Pena e o chalet da Condessa de Edla, em Sintra, são exemplos. 

A revista Froebel. Foto: Hemeroteca Municipal

A construção da escola da Estrela foi terminada em 1882, e o que viria a ser o primeiro jardim-escola da capital seria inaugurado a 21 de abril, data do centenário do nascimento do seu inspirador. A acompanhar o ato, sairia também o primeiro número de uma revista intitulada Froebel – Revista de Instrução Primária, destinada fundamentalmente aos alunos da Escola do Magistério Primário.  Nesta revista, Teófilo Ferreira, então diretor da Escola Normal de Lisboa, afirmava: “Não é hoje que eu peço o julgamento: quando essa escola que vai inaugurar-se entregar à escola elementar crianças sadias de corpo e inteligência forte e desenvolvida, é que eu pedirei o veredicto dos meus cidadãos.”

A escola era, portanto, um projeto muito especial e espelhava os ideais republicanos e maçónicos, na forja, na época. E de várias formas: pela descentralização do sistema escolar, com mais poder dado à autarquia, e na tentativa de integrar uma política de educação das classes mais desfavorecidas. Era esta a origem dos 200 alunos de famílias que viviam na cidade de Lisboa.

E o luxo que teria sido frequentar uma escola destas: além do enquadramento do jardim, havia 4 salas de aula para as diferentes idades  – as mesmas que tinham sido definidas por Froebel. Havia material froebeliano, desde jogos de construções e formas, uma das grandes inovações introduzidas por esta pedagogia, ao mobiliário mais adequado ao crescimento. Havia quatro professoras mas também quatro jardineiras, um revolucionário professor de ginástica e outro de canto, o que era totalmente inovador para a época, mesmo nas escolas mais avançadas.

A foto do Chalet Foebel da Estrela, da Página do Património de Estado.

“Uma década depois contava já com a matrícula de 3000 alunos. A escola acabou por ser encerrada em 1915, já no contexto da 1ª República, e reabriu apenas dez anos depois, com uma nova funcionalidade: Lactário Municipal n º3 e Creche”, como conta Joana Cabral na sua dissertação de mestrado, de 2016, no instituto Superior Técnico de Lisboa, Arquitetura para a Infância: Evolução e Caracterização dos Jardins de Infância em Portugal.  Na Iª República, para combater os elevados índices de mortalidade infantil e a subnutrição crónica, a CML tomou várias iniciativas como a criação de lactários municipais, para fornecimento de leite de vaca às crianças em crescimento (ver também

A Escola Froebel era já uma creche da Santa Casa da Misericórdia, muito modificada por dentro, quando foi encerrada em 2016. Mas, curiosamente, na sua história e filosofia é indissociável de outro espaço ali bem próximo, o Jardim Escola e o Museu João de Deus, na Avenida Álvares Cabral, esta um conjunto arquitetónico de Raul Lino, datado de 1915.

João de Deus inspirou-se nos métodos de Pestalozzi e Froebel para iniciar em 1876 os seus novos métodos de alfabetização, publicando a sua Cartilha Maternal, pela qual viriam a aprender as primeiras letras gerações e gerações de crianças. A obra foi recebida de forma entusiástica pelos seus contemporâneos, sendo saudada como utilíssima pelos principais intelectuais da época, como Alexandre Herculano ou Adolfo Coelho. 

Estas escolas, aliás, como os próprios trabalhos pedagógicos de Froebel e João de Deus, dão conta de uma nova consciência social da fragilidade dos mais pequenos. Ao longo do século XIX, a criança ganhara estatuto e identidade para se tornar objeto de atenção social, laboral, escolar e penal. Já no século XX (em 1924) a Declaração dos Direitos da Criança seria adotada por unanimidade pela Sociedade das Nações, “antepassada” da ONU.

A polémica

Tudo isto ficou esquecido no tempo, nos arquivos e nas paredes daquele espaço, cada vez mais degradadas, conta quem viu. Em 2016, quando a escola foi fechada, foi feita uma vistoria que encontrou as madeiras em mau estado. O objetivo inicial era a recuperação do edifício – embora ainda não se soubesse o seu fim, que andou em bolandas, entre vereações da CML.

Era para salvar o que fosse possível, mas os técnicos encontraram “um estado de degradação bastante mais avançado do que o inicialmente previsto“, como consta nos documentos publicados no grupo Vizinhos da Estrela. Humidade e infestação de pragas, nomeadamente térmitas que tinham roído as madeiras por dentro, sobretudo “os pilares, que estavam parcialmente ou totalmente destruídos”. Segundo este relatório apenas seria possível salvar as “asnas, madres e fileiras” superiores.

Um dos técnicos que fez a vistoria ao edifício, contou à Mensagem que “parecia que estava de pé apenas assente na tinta da madeira”. E talvez fosse por isso que, por fora, parecia em melhor estado. Segundo este técnico, havia intenção de conservar mais do que era possível – e isso está expresso logo no relatório de agosto de 2016.

Ou seja, desde o início, essa era a ideia do projeto: não sendo possível a renovação, era necessária a reconstrução. Os documentos apontam para a reconstrução nos moldes idênticos, por fora, e recuperando a traça original, por dentro, com modificações interiores que permitissem estabelecer zonas mais amplas, como consta do projeto do Atelier de Arquitetura de Pedro Almeida Carvalho. O objetivo seria “respeitar a essência do projeto original”, diz-se.

Em 2021, as obras finalmente arrancam, as máquinas vão para o terreno, e estala a polémica que parece, no fundo, crescer a partir de um mal entendido: quando a CML anunciou nas suas páginas que iria iniciar as obras para transformar a antiga creche numa Biblioteca do ambiente, a notícia dava conta que as “obras de requalificação avançam no início de fevereiro”.

Apesar de se falar da “desmontagem de toda a estrutura de madeira, com o reaproveitamento das peças saudáveis, e a reformulação integral das fundações”, isso foi entendido como uma remodelação e não como uma substituição. Ou demolição/ reconstrução, que foi o que aconteceu.

Mais fotos da destruição publicadas pelo blogue Malomil.

A notícia foi tão bem acolhida nas redes sociais nos movimentos ligados a Lisboa como a seguir surgiu como um balde de água fria a de que, afinal, o chalet tinha sido todo demolido – acompanhada das respetivas fotos da destruição, tiradas por lisboetas e postadas nas redes sociais.

O forum Cidadania Lx explicava bem a “estupefacção”: “Prende-se com o facto de a Câmara Municipal de Lisboa ter anunciado publicamente que aquele “chalet” histórico, por cuja recuperação e bom uso há anos vimos pugnando, seria alvo, finalmente, de uma operação de conservação e restauro.”

A CML emitiu um novo comunicado dizendo que durante as obras de requalificação se tinha verificado que “cerca de 70% dos materiais de origem não estão em condições de ser restaurados, pois encontram-se comprometidos na sua integridade estrutural”. Mas esta já era a informação inicial do projeto que foi entregue ao empreiteiro – embora isso não estivesse na notícia da CML.

Mas as críticas continua. No Grupo de Vizinhos da Estrela questiona-se a demolição, tendo em conta o “Relatório de Diagnóstico ao Estado do Edifício disponível no Projecto, de 2016, refere que ‘na generalidade, a madeira original utilizada apresenta muito boas características, tanto no que se refere à pequena presença dedefeitos, como às características físico-mecânicas, que se apresentam bastante elevadas'”, como explica Paulo Deus.

Mais à frente, um post indignado termina assim: “Estamos perante sinais de risco claros que o Projecto se encontre desfasado, pelo menos na sua execução, da vontade de muitas Pessoas que estão ligadas ao Jardim da Estrela desde sempre e que, claramente, não foram auscultadas no processo de decisão e de execução do Investimento. Fazer uma cópia do Chalet com novos materiais, não estava claramente comunicado e até parece pela notícia hoje divulgada, que houve uma surpresa, só agora comunicada…”

O grupo de vizinhos no Facebook já enviou também um abaixo assinado à CML. E coloca a questão da não consulta dos moradores: “o comunicado tardio da CML não esclarece todo o processo de decisão, execução e comunicação que não teve o envolvimento das Pessoas interessadas, as Cidadãs e os Cidadãos. Houve demolição não comunicada e desfasada dos propósitos comunicados, que originou apreensão em muitos de nós”, diz Paulo Deus.

Há também uma discrepância na aprovação da Direção Geral do Património que, no parecer favorável condicionado ao projeto, de 2018, dizia que devia “ser adotada uma metodologia em obra que não implique o desmonte integral do edifício”, segundo os documentos publicados na mesma página.

O Forum Cidadania LX também continuam a por em causa que não se pudesse recuperar parte do edifício. “Tememos que, mais uma vez, estejamos perante uma obra que privilegia o “pastiche”, rápido e menos oneroso, o que sendo numa obra da CML, em património histórico, é de rejeitar liminarmente”.

O vereador responsável pelo projeto José Sá Fernandes diz que “é um projeto integralmente feito como era, não é um pastiche, terá os mesmos materiais. Era de madeira e vai ser de madeira.” Os comentários dos posts sobre o assunto falam de falta de diálogo e falta de informação. O resultado de tudo isto poderá avaliar-se a olho nu, no final da obra, que vai custar 1 milhão 152 mil euros, e está prometida durar seis meses.

  • Texto emendado para integrar o importante papel do grupo de Vizinhos da Estrela no debate e contestação ao processo.

(com Catarina Carvalho)


Maria João Martins

Nasceu em Vila Franca de Xira há 53 anos mas cresceu na Baixa de Lisboa, entre lojas históricas e pregões tradicionais. A meio da licenciatura em História, foi trabalhar para um vespertino chamado Diário de Lisboa e tomou o gosto à escrita sobre a cidade, que nunca mais largou seja em jornais, livros ou programas de rádio.

Entre na conversa

8 Comentários

  1. Gostei imenso de conhecer a história antiga do Chalet do Jardim da Estrela que, como li, foi “o primeiro jardim escola português, feito em 1882”. Quando trabalhei na Misericórdia de Lisboa, no final dos anos sessenta, funcionava ali uma creche da Santa Casa da Misericórdia (não sei quando terá começado), mas, juntamente, com a Creche da Casa Maternal (serviços Centrais da Misericórdia) eram dois estabelecimentos muito acarinhados, na época. Talvez Eduardo Gageiro tenha fotos desse tempo, pois lembro-me que fotografou alguns dos estabelecimentos, com crianças, a cargo da Santa Casa de Lisboa.

  2. vão continuando a enquadrar as reações das social networks e já prestam um grande serviço à comunidade.
    obrigado.

  3. É esse o objetivo – obrigado por ter reparado!

  4. Não conhecia o historial da escola. Um dos meus netos andou lá dois anos e saíu no ano do fecho. Se os materiais estavam, na sua maioria, em tal estado que não permite a recuperação, assunto terminado. Mas isso não obsta a que a recuperação ou reconstrução do edifício seja fiel ao inicial. E é aí que me parecem residir as dúvidas tanto mais que já estamos habituados a intenções falhadas.

  5. Parabéns. Excelente pesquisa, como é habitual. Um crime desvaloruzado pela Câmara Municipal de Lisboa. Uma obra bem caracteristca do arquitecto José Luís Monteiro, agora destruída.

  6. Obrigada pelo artigo e referências históricas. O meu filho frequentou esta escola e partilho das mesmas opiniões que o seu impulsionador. Sendo um edifício de referência na história pedagoga nacional, e continuando os seus princípios actuais e pertinentes, é pena que o projecto não seja manter o edifício como escola. Isso sim, seria honrá-lo. A ele e às crianças.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *