Houvesse necessidade disso e a maca dos bombeiros não ia poder entrar no número 3 da Rua da Cruz da Carreira, ali junto ao Campo Mártires da Pátria, em Arroios. E sempre que Miguel Macedo e Silke Jellen chegavam à rua, a simples entrada em casa podia revelar-se um desafio. Podiam não conseguir fazer passar a bicicleta ou ter entraves a uma série de outras banalidades do quotidiano: entrar com um carrinho de bebé, com compras volumosas ou com uma peça de mobília.
Os carros estacionavam na rua, deixando para as pessoas um exíguo passeio – que não cumpre a largura mínima imposta pela lei da acessibilidade, mas com a legitimidade dos lugares marcados no chão pela EMEL – a empresa de mobilidade da cidade, que ali permitia o estacionamento, tarifado.
A rua da Cruz da Carreira, como estava, não deixava espaço para… viver. E desde que para ali foram morar estes dois lisboetas tentavam fazê-lo, contactando a EMEL, o município e a freguesia de Arroios. Só pararam quando, em janeiro de 2019, a rua ganhou nova cara. Depois de uma luta de 10 meses, conseguiram recuperar o espaço anteriormente dominado pelo automóvel. Mas como não quiseram que os vizinhos olhassem para o espaço, onde antes se estacionava, como “um lugar perdido”, Miguel e Silke estão a construir com as próprias mãos uma rua que oferece aos vizinhos a oportunidade de se encontrarem e de criarem sentido de comunidade.

“Mesmo no início da pandemia”, pegaram em placas de madeira, daquelas “que se podem pôr no chão para fazer um deck”, e construíram duas floreiras. Uma foi colocada precisamente em frente à porta do prédio. Não precisaram de “nada caro, nada especial”, foi “o material mais barato que encontrámos que durava”, conta Silke. A outra foi colocada num canto que anteriormente colecionava lixo e beatas. “Custou, para aí, 15 euros”, revela. Para o futuro não faltam ideias: a próxima adição à rua pode ser um banco.
É preciso um cidadão “muito chato” para mudar uma rua?
Silke Jellen lembra-se bem de um dos episódios que mais desconforto lhe trouxe. Tradutora e intérprete de profissão, a alemã Silke Jellen “estava a chegar ou a sair” de bicicleta – já não se lembra bem – numa altura em que descia pela rua um carro que não lhe deu “espaço nenhum”. O número 3, onde vive, está num lugar pacato, mesmo no final da rua, já com vista para o bulício da Rua Gomes Freire e bem perto do Campo dos Mártires da Pátria.
Aqui, a rua alarga, facto que, até 2019, tornava possível o estacionamento dos dois lados e que não deixava, contudo, espaço suficiente para a circulação de pessoas. Um carro e uma bicicleta podiam não ser capazes de se cruzar. Naquele dia, a mala que carregava na bicicleta vinha “pesada, com garrafas”, e a colisão aconteceu. “Caíram as coisas todas” e passou-lhe pela cabeça: “‘foi mesmo no limite’”, podia ter ficado lá, “debaixo do carro”. Fosse “uma pessoa com canadianas, uma pessoa com carrinho de bebé, seria pior”, garante Silke.
O passeio já não cumpria os mínimos legais. E mesmo assim, os carros queriam estacionar. E a Junta dizia que não podia fazer nada.
Antes do incidente, já Miguel tinha enviado “vários e-mails” à câmara municipal, à EMEL, à Junta de Freguesia de Arroios e até aos vários grupos políticos com assento na Assembleia Municipal de Lisboa. O aviso tinha sido deixado: “já lhes tinha dito muitas vezes que quando precisasse de assistência aqui de uma ambulância, que haviam de ouvir falar” dele.
Na rua, “não ia conseguir entrar uma maca ou o que fosse” e esta foi “a gota de água”. Precisava de “responsabilizá-los e dizer que aconteceu qualquer coisa”. O município e a junta de freguesia disseram-lhe “que não era possível, não era competência deles”, já que a gestão dos lugares de estacionamento compete à EMEL. Esta, de forma “muito rápida”, acabou por dar-lhe razão, autorizando a eliminação dos lugares de estacionamento.

A questão ainda aguardou por resposta favorável do município, mas o problema resolveu-se, com a cooperação de todas as entidades. Recebeu a visita de um representante da Junta de Freguesia de Arroios e contou com o apoio do departamento de mobilidade e espaço público da Câmara Municipal de Lisboa (CML).
Em 2019, os lugares foram eliminados e surgiram pilaretes de borracha que hoje garantem a entrada no prédio em segurança. Este ano, os dois vizinhos colocaram floreiras na rua e, após proposta de Miguel Macedo e Silke Jellen, surgiram dois suportes para o estacionamento de bicicletas.
Onde antes estacionavam automóveis, está hoje um canteiro construído e alimentado por Miguel Macedo e Silke Jellen.
Miguel Macedo diz-se um munícipe “muito chato nestas questões”. “Sempre” que vê algo que vai mal na cidade, usa a aplicação do município, Na Minha Rua, que permite reportar vários tipos de ocorrências na via pública. Se já é “chato” por toda a cidade, “imagina à frente da minha porta”, atira.
E se é verdade que o município tem vindo a adaptar, ao abrigo do seu Plano de Acessibilidade Pedonal, passeios e passagens de peões para, progressivamente, fazer cumprir a lei da acessibilidade – que prevê para os passeios e caminhos de peões “uma largura livre não inferior a 1,5 metros” -, também é verdade que este é um trabalho “que vai durar anos” e Lisboa é uma cidade com as suas idiossincrasias.
Segundo Pedro Homem de Gouveia, arquiteto que até ao final de 2018 coordenou o plano da autarquia, Lisboa terá cerca de 1250 quilómetros de passeio. Do lado do número 3 da Rua da Cruz da Carreira, o passeio não cumpre os mínimos legais. “Tem 50 centímetros, no máximo”, diz Miguel Macedo.
Flores para uma rua “mais agradável”
Agora, é um jardim. Foi com “plantas arranjadas de cantos” e trazidas da praia que encheram as floreiras que os próprios construíram. Silke Jellen vem da Alemanha, onde “é muito mais comum esta coisa do verde em frente às casas”. Nota que “falta muito” isso por cá. “É uma coisa que a mim sempre fez falta”, confessa. Miguel Macedo reparou no mesmo, “na sequência de uma viagem a Roma”. Viu “ruas em que há flores por todo o lado: nas varandas, nos terraços, a crescer na rua” e sentiu que a Rua da Cruz das Flores, que já as tinha no nome, precisava de passar das palavras aos atos.
No canto do prédio, cresce agora uma trepadeira onde antes havia “um acumular de lixo”. O ritmo de crescimento da planta vai comunicando a Miguel Macedo a necessidade de colocar mais uma ripa de madeira na vertical, orientando a expansão ordeira do pequeno jardim. O dia da entrevista foi dia de nova ripa. Mas nem tudo começou bem com a implantação deste jardim cidadão. Foi preciso “um bocadinho de sensibilização”, conta o bancário. Ao início, chegaram a comprar umas plantas, mas “roubaram-nas”.
Silke Jellen ficou “chateada quase todo o fim de semana. Plantámos lá flores e tudo e, no outro dia, não sei quem foi, roubou”.
Um vizinho satisfeito e um banco para os moradores falarem
A passagem da vizinhança tem gerado “muito feedback”. “Quando estamos na rua, a regar as plantas, entramos sempre em comunicação com as pessoas que passam, os que moram cá”. As pessoas que passam, conta Silke Jellen, dizem-lhe que o jardim está “muito giro” e que foi uma “boa ideia”, “cria uma coisa dinâmica”. Mas também surgem comentários menos positivos, diz Miguel Macedo. Entre os vizinhos, “dois ou três acham que isto foi um assalto aos lugares de estacionamento”. “É a vida”, encolhe os ombros
Thomas Kaiser leva quase mais duas décadas nesta rua do que os recém chegados Miguel e Silke. Vive na Rua da Cruz da Carreira há vinte anos, um pouco mais acima do número 3. “Já tinha reparado” nas floreiras mas, apesar de ser colega de trabalho de Silke, só agora percebeu que foi a sua vizinha a responsável: “pensava que era da junta de Arroios”. Acha “muito bem” o que ali se fez. “Força os carros a reduzir a velocidade” e “é sempre mais seguro”, considera.

Agora, há um projeto de requalificação da rua, mas foi-lhes difícil aceder aos planos do município. Miguel Macedo acha que “não gostam muito de divulgar para não ter de discutir” os projetos… mas lá conseguiram. Ficaram a saber que a rua vai passar a ser uma zona de coexistência – conceito introduzido pela revisão de 2014 do Código da Estrada e que faz referência a zonas em que peões e utilizadores de bicicleta podem usar toda a largura da via pública e onde é “permitida a realização de jogos”. Fez questão de dizer à junta de freguesia que, mesmo após a requalificação, as floreiras que construiu são para ficar, e o próximo passo pode mesmo passar pela construção de “um banco, para as pessoas poderem sentar-se e falar aqui um bocadinho”. O objetivo, declara, é “criar mais convivência com as pessoas da rua”. Para a requalificação da rua já conseguiram, até, “arrancar a promessa de pôr [mais] floreiras”.
Em Bruxelas, “comunidade é imunidade”
Miguel Macedo não sabe se foi daqui que retirou inspiração para as floreiras da sua rua, mas em Bruxelas, Xavier Damman e Leen Schelfhout fizeram algo parecido, sensivelmente na mesma altura, quando se mudaram para uma rua residencial “com pouco trânsito”, em fevereiro deste ano. “Como não temos carro e ninguém pode estacionar em frente ao portão da nossa garagem, decidimos dar um bom uso ao espaço e começámos o Jardim Cidadão” (Citizen Garden, no inglês original).

Ocuparam a rua, em Schaerbeek, “a mais diversa das 19 comunas de Bruxelas” com um jardim cidadão para “reclamar o espaço público que tem sido privatizado pelos clientes da indústria automóvel”. Querem “trazer de volta natureza e biodiversidade às cidades e, com isso, reconstruir a comunidade de rua e a nossa resiliência”. Em tempo de pandemia, Xavier Damman considera que “a comunidade é, mais do que nunca, a nossa imunidade” e acredita que iniciativas do género “forçam a conversa entre vizinhos” e que é através de projetos comuns que se “criam oportunidades” para as pessoas se conhecerem e falarem. O jardim que fez com Leen Schelfhout é um destes projetos comuns. “É muito concreto, está à nossa porta”.
Criaram uma página no Twitter para divulgar a iniciativa e, nos meses que se seguiram à criação do Jardim Cidadão, apareceram quatro outros idênticos na capital belga. Nunca tinham visto uma iniciativa com aquela na cidade, mas não se consideram “inventores da ideia”. “A nossa história tornou-se famosa pela reação das autoridades e pelo timing da pandemia e do confinamento”. Apesar de terem instalado o jardim em frente ao portão da garagem, onde ninguém poderia estacionar, Leen descreve a relação com as autoridades locais com a palavra “tensa”. Receberam várias “ameaças de multas administrativas” e visitas da polícia. “Pediam que removêssemos [o jardim] porque não tínhamos uma autorização”. “Se lá tivéssemos colocado um automóvel, nenhuma autorização teria sido necessária”, diz.
Até que um dia acordaram e “o jardim já lá não estava”. Às cinco da madrugada dessa noite, trabalhadores municipais vieram retirar o jardim. “Recebemos uma multa de 220 euros, que ainda estamos a contestar em tribunal, e criou-se uma grande comoção no bairro”, conta Xavier Damman. “As pessoas começaram a trazer plantas e flores para mostrar o seu apoio” e, com a ajuda dos vizinhos conseguiram repor o jardim, desta vez num atrelado: “descobrimos uma brecha na lei que nos permite registá-lo como um veículo”. E assim está o jardim, com plantas, flores e vegetais e estacionado como um carro, pagando a tarifa anual de 28 euros.
Xavier considera que as cidades “ainda estão na idade industrial” e que lhes falta “abraçar a filosofia da idade da Internet”. “Gerem o nosso espaço público de cima para baixo, precisamos de uma autorização para tudo, mas nós somos a geração Wikipédia, quando vemos uma página em branco, contribuímos”. E deixa a pergunta: “como é que vamos mudar o mundo se nem sequer conseguimos mudar a nossa rua?”.
A verdade é que até já conseguiram o reconhecimento do município. Em julho, depois de apresentarem uma candidatura a uma iniciativa da autarquia local, Xavier Damman e Leen Schelfhout foram premiados com a atribuição de cinco mil euros destinados à construção, com a participação da comunidade, de um jardim cidadão para bicicletas, uma estrutura de madeira de uso partilhado que serve de abrigo às bicicletas da vizinhança e que acolhe, por cima, com um jardim.
Conhece mais exemplos de jardins espontâneos? Envie-nos a informação aqui em baixo. Queremos saber tudo sobre eles:

Frederico Raposo
Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.
✉ frederico.raposo@amensagem.pt
Muito bom artigo, parabéns!
Como eu gostaria que a minha rua tivesse floreiras! A rodear as poucas árvores que sobram. É que o efeito de estufa dos prédios novos, todos de vidro, quando o sol reflete, atinge temperaturas elevadas o que torna impossível o ficar no passeio. Temos imensos idosos por aqui e isso seria uma mais valia para eles. Verem as flores, cuidarem das flores. Isso e fazerem uma intervenção como deve ser no jardim frente ao Liceu Camões: aquilo é um verdadeiro atentado ao bom senso e denota a falta de vontade da Junta em melhorar o espaço. Era bom que chamassem as pessoas para plantarem flores, colocar relva mais resistente, embelezar o espaço.
Obrigada
Ainda que considere o centro de Lisboa como a última área da cidade onde houve a preocupação de dotar os bairros de espaços verdes e áreas de lazer, certo há que há muito por onde melhorar. E concordo inteiramente com os testemunhos do artigo em que já vai sendo hora de acabar com a primazia do carro e dar prioridade as pessoas. Resta-me acrescentar, neste tópico dos jardins do cidadão (ainda que não saiba de quem é a autoria) os canteiros que apareceram a volta dos pés das árvores em algumas ruas como por exemplo na R. Passos Manuel.