LEITARIA GARRETT

Por Appio Sotto-Mayor

Entra-se por ali como em casa de gente. Quatro, cinco mesas, se tanto; o triplo de cadeiras; um balcão de onde saem, como de um chapéu de um mágico, as maravilhas mais insuspeitadas, desde o pacote de bolachas Maria até ao pão para as sandes e respectivo conduto. Ao fundo, uma máquina, com ar de aprendiza de caldeira, deita café como num moto-contínuo. Na prateleira alinham-se e intervalam-se aguardentes, licores, aperitivos suaves. Por vezes circula sobre as mesas um jornal fraternalmente dividido, toma lá estas páginas, dá cá aquelas, depois trocamos. No todo, respira-se um ar de pacatez serena, a vida é para se ir vivendo, quem tem pressa viesse mais cedo…

São assim – ainda – as poucas sobreviventes, as pequenas leitarias de bairro, últimos redutos da cidade onde é possível o freguês ser tratado como pessoa, às tantas como amigo. Estão a desaparecer, claro. Ficou convencionado – não se sabe por quem nem com que autoridade – que progresso quer dizer cromado, fórmica, plástico, balcão-manjedoura, enlatado e engarrafado em tudo o que é de comer e de beber. Nada de toque humano, nada de permanência no local para além do tempo indispensável ao consumo. Viva o snack, abaixo a leitaria!

Os espaços de encontro e de convívio, os oásis de cavaqueira que sempre foram as pequenas leitarias (como muitas tasquinhas, como, noutras esferas, os cafés) estão definitivamente condenados. Agora não há tempo para falar e, quando se insiste, tem de falar-se de pé, a toda a brida, engolindo a salsicha de lata, bebendo líquidos de cor duvidosa, americanizados e estandardizados, que nada têm a ver, ao menos, com a velha gasosa que sabia a limão e facilitava digestões. Os endinheirados que gostam de conversar marcam encontro em pubs – luz difusa, música de fundo, amendoins salgados e líquidos escoceses, na melhor das hipóteses. Só dá para conversa mole, nha-nha, ensonada e intelectualóide, quando não entrecortada de outras actividades.

Pobres e remediados ficam sem reúgio; lá vai a simples buca, o copo de leite, o capilé, o jogo de dominó e, sobretudo, o espaço, o tal tecto protector sobre as ideias e os diálogos.

Há um cantor, que não é lisboeta, mas aqui vive, segundo disse, há duas décadas, que viu o problema por inteiro. Chama-se ele Vitorino, usa boina e, pelo que se vê, tem ideias e sentimentos debaixo dela. Lançou em tempo um disco dos dele, chamado “Leitaria Garrett”. Da qualidade da música, da letra e da interpretação, não cabe evidentemente falar. Aqui trata-se de manifestar àquele compadre do Redondo a compreensão e a concordância.

Leitaria Garrett” é, pelo tema, um requiem, um símbolo e um alerta. Vergados à epidemia do snack (quando noutras paragens da Europa se tenta exactamente proteger o tradicional, o típico, o característico), vamos vendo desaparecer, uma a uma, todas as leitarias, as tasquinhas, os espaços onde ainda é possível sentar-se uma pessoa, dar dois dedos de conversa, saber e contar novidades, escrever a carta que não se pôde fazer no emprego, combinar pequenos negócios, tomar refeições magras… A leitaria é sede de tertúlia, de grupo excursionista, é escritório, é local de namoro, é gabinete de estudos, é segunda morada…

Vão acabando. Depois, quando já nada tiver remédio, virá talvez outro canto dizer das mágoas da solidão de quem se arrasta sem poiso pela grande cidade…

Lisboa, Janeiro 1985

A Travessa do Poço da Cidade, a rua que inspirou o nome da crónica, numa planta de Filipe Folque, 1856. Foto: toponimialisboa.wordpress.com

A ÚLTIMA LIÇÃO DE EÇA DE QUEIRÓS

Por Appio Sotto-Mayor

Caramunhar é, certamente, próprio do homem, sobretudo se o dito bípede for português e alfacinha. E neste momento, consumado o gesto, outra coisa não é possível para além de exprimir o dó, fazer arquear a caixa do peito com um suspiro de arrancar vísceras e tecer comentários sobre a fatalidade que nos persegue.

No tocante a este “Poço”, nem lhe resta ao menos o consolo suave da solidão, aquela ferroada destruidora mas estimulante que é sentida quando se está, Quixote e único, esgrimindo contra o mundo. Bem se gostaria de proclamar, ao menos, ser este “Poço” como São João Baptista e apresentar-se como “a voz que clama no deserto”.

Nem isso: excelentes e ilustres eram as companhias que afinavam pelo msmo diapasão – do senhor Presidente da República à senhora secretária de Estado da Cultura. Nem pode, por isso, “O Poço” armar-se em mártir e perguntar com voz cava: “Ninguém então me ouviu?”

Nada a fazer. Embora as vozes sonoras, pelos vistos, tivessem advogado a causa do Panteão Nacional como digna e lógica última morada de Eça de Queirós, os restos mortais do romancista partiram para Tormes. Seguiram sem a companhia e curiosidade de Jacinto nem as informações humoradas de Zé Fernandes, sem os mil baús e também sem o risco inerente do seu extravio, sem necessidade de recorrer ao burrinho Sancho para subir a serra…

Seria precisa a pena ferina do mestre para poder dizer da mágoa do allacinha que ainda vibra com o que é seu, para descrever a desilusão e elaborar tudo isto sem cair no fado choradinho que é nossa peça comum. Mas Eça houve só um e morreu há noventa anos. Para mais, saiu do Alto de São João.

Manda, contudo, a verdade que se repita: doeu. Queira-se ou não, o “pobre homem da Póvoa de Varzim” era nosso, era muito mais lisboeta do que de qualquer outro lado. Se em Coimbra tirou um curso universitário, em Lisboa aprendeu e fixou a vida, os tipos, as carreiras, as qualidades e defeitos de um povo que está, de facto, espelhado na sua capital.

Será ocioso lembrar. Mas Os Maias, A Relíquia, O Primo Basílio, A Capital e até Alves e Cª, O Mandarim ou a renegada Tragédia da Rua das Flores são a mais genial crónica de Lisboa que é possível imaginar. Nem a aristocracia, nem a burguesia, nem as cenas devotas, nem o comércio, nem, numa palavra, a vida parrana desta cidade seriam reconstituíveis sem a obra de Eça.

É evidente que o conjunto é que vale. E não vai comparar-se, nem muito menos diminuir no todo, nem A Cidade e As Serras nem A Ilustre Casa… Mas, mesmo essas, têm viva a presença desta cidade que, mesmo troçada, mesmo criticada e punida pelo escritor, lhe tinha, de facto, entrado no sangue. Eça era nosso.

Amar não significa apenas venerar. E Eça deixou-nos, entre muitas, essa lição ao tratar de Lisboa. “Uma pasmaceira” lhe chamava Basílio. “A cidade mais suja da Europa” era a classificação do próprio escritor ao vestir a pele do crítico em As Farpas. Era a imundície, a falta de transporte, a ausência de toilette, a carência de habitações, a debilidade da inteligência, de bons entretenimentos e da boa política.

Amar é conhecer. E para quem só veio para a capital em 1866, e passou grande parte do tempo em missões por fora (desde Évora e Leiria a Havana e Paris), o conhecimento que o escritor revelou sempre desta cidade, só podia provir de um grande interesse, de um grande amor. Tratava-a como a alguém a quem se quer muito, reconhecendo que, com todos os engulhos que se topasse, seria sempre o ponto preferido. Quem escreveu, tão lírico como qualquer poeta romântico, “Ó Lisboa querida, ó clara cidade bem-amada, ó casta graça silenciosa, doce Lisboa coroada de céu…” foi também Eça de Queirós…

Mas partiu. Não há remédio. Não chegaram a tempo os apelos, as sugestões, o lembrar a justiça imediata, que contribuiria ao mesmo tempo para a dignificação de um dos mais belos monumentos da ciade.

Fica connosco aquela que será, talvez, a mais dura das lições de Eça: a chamada de atenção para que Lisboa não consuma o seu tempo a dormir e acorde de repente, sobressaltada, quando já não há remédio.

Outros grandes deste país andam por aí espalhados, sem que ninguém cuide de dar aos respectivos restos mortais a grandeza de que são dignos. Por onde andam? Que se espera para os colocar no local sacro a que devem pertencer? Ainda há pouco aqui se recordou que o nosso Panteão não tem um músico, um pintor, um escultor, um médico… Está quase nu, e não somos assim tão falhos de valores.

Se este caso de Eça de Queirós valesse ao menos para despertar consciências e evitar que outras negligências se vão arrastando, seria de facto mais uma, não se sabe se a última lição que vamos colher ao mestre da escrita.

Para que não se cumpra o desejo ou a praga terrível do lisboeta conselheiro Acácio: “Isto devia estar na mão dos ingleses, minha rica senhora.”

Lisboa, Janeiro 1990

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3 Comentários

  1. “Está muito bem nas nossas mãos”. Concordo. Eu, a tomarense apaixonada por um Rio, um Convento que tu e o nosso pai me fizeram conhecer e amar, conheci Lisboa, Tejo, Monumentos, Igrejas, ruas, vielas, miradouros, pela tua mão. Apaixonei-me por Lisboa. Fi-la minha. Fizemos então um negócio: Eu dava-te metade da minha Tomar, tu davas-me metade da tua Lisboa. Somos Tomarenses e Lisboetas. Milagres de São João Baptista e Santo António. Foi contigo que um dia, conheci o Senhor Almirante Gago Coutinho. Era para te dizer um segredo, mas tu já deves saber: Adoro-te meu querido irmão. És uma das pessoas que mais admiro. Claro que já sabias! Eu é que preciso de vez em quando de te dizer.

  2. Adorei ler este texto de Appio Sotto-Mayor sobre Eça de Queirós e a sua e a nossa cidade de Lisboa. Achei lindos os vocativos de Eça para Lisboa que o autor selecionou, mas o meu preferido para um dia luminoso, como o de hoje, é “doce Lisboa coroada de céu…”

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