Foto: Inês Leote
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Olá (e uma despedida), vizinho/a

Como estão esses preparativos para o Natal? Por aqui, já fizemos um encontro de equipa para celebrar a data. Não que o trabalho pare: temos de continuar a explorar esta cidade, para lhe trazer histórias como a de Giovanni, o vizinho homenageado no Intendente no passado domingo – já leu?

O Natal é pretexto para balanços. E hoje sou eu, Tomás Delfim, quem os faz. Para dizer “olá”, mas também “até já”.

Ao contrário dos meus colegas, não vou regressar à redação no ano que se avizinha. Acredite quando lhe digo que escrevo de coração apertado e de olhos com lágrimas enquanto revivo os momentos que passei na Mensagem nestes cinco meses que integrei a equipa como estagiário. Em breve, vou estar num novo desafio, num outro grupo de comunicação social – vou para o Expresso.

E, para a despedida, deram-me o prazer de lhe endereçar esta pequena carta.

Caso tenha acompanhado os meus artigos, deve estar a par da crónica que escrevi em setembro: “Um blind date com Lisboa: como voltei a andar na rua sem a ajuda de uma bengala“. Se lhe passou despercebida, eu explico: sou cego.

Foto: Inês Leote

Após esta declaração, é comum interrogações começarem a formar-se nas cabeças de quem a ouve ou lê. Interrogações que, certamente, despontaram também nas mentes dos meus então futuros colegas, assim que cheguei à redação da Mensagem pela primeira vez, para uma entrevista de estágio. Logo nesse dia, fui para casa de coração cheio: não só porque tinha conseguido ficar com o estágio, mas porque saí com um ótimo pressentimento acerca dos tempos que viriam.

Mas vamos ao início da história.

Ceguei por completo por volta dos sete anos, por causa de uma doença. Não acabou com a minha vida, mas deixei de ver o mundo quando ele ainda era belo, inocente e puro. Tenho bem impressa na memória a sensação de suavidade e conforto transmitida pela brancura da neve, por exemplo, e o amor infantil que sentia através de tudo o que via. Os rostos dos meus pais ficaram para mim eternizados com a idade da altura. E lembro-me bem da sensação de alcance impressionante dos meus olhos, quando via, lá do alto do avião em que seguia, a minha casa cá em baixo.

Por estas razões, guardo boas recordações de quando usava a visão para me guiar. Hoje, já não sinto falta.

Troquei a visão por estímulos sobretudo táteis, auditivos e olfativos. A sensação leve do braille nos meus dedos, que a minha mãe me ensinou a decifrar com uma caixa de ovos. Os cheiros que comecei a associar às pessoas que amo. O som das vozes, que substituiu as caras quando eu preciso de distinguir alguém. O valor imprescindível de um contacto físico afetuoso. Às vezes, seria bom se todos fechássemos os olhos e apenas sentíssemos. Sentir a mão de alguém que passeia connosco.

Há umas semanas, lancei um desafio a duas das minhas colegas com quem passeava na Baixa. À nossa editora, Catarina Reis, e à Ana Narciso, jornalista na Mensagem. Propus: “Fechem os olhos e deixem-me guiar-vos”. Foi um teste bonito. Trocámos de pele por momentos. Privaram-se da visão, o principal meio de orientação delas. E não é fácil, para quem vê, dar total permissão aos outros sentidos, que muitas vezes estão entorpecidos pelos nossos olhos. Mas é possível. Tem que ser possível.

Foto: Inês Leote

Comecei a prática de orientação e mobilidade na rua ainda na escola básica. Embora acompanhado por uma professora, serviu para me preparar para quase tudo o que viria a encontrar nas ruas de Lisboa durante o dia a dia.

Quase tudo.

Com exceção dos imprevistos de um dia normal, como os anúncios das paragens nos comboios, metros e autocarros que vão desligados, o que nos obriga a estar 100 vezes mais atentos. Também poderia falar da fraca sinalética no chão das plataformas de algumas estações de metro/comboio. O semáforos que não apitam. Ou o desafio de andar à chuva com uma bengala na calçada portuguesa. O facto de se associar a deficiência a alguém que necessita obrigatoriamente de ajuda, física ou monetária – sim, já me ofereceram moedas. Ou mesmo as abordagens pouco delicadas em relação a mim.

Tudo isto daria para escrever um livro de pequenos contos: o diário de um cego nas ruas de Lisboa.

Uma dica de ouro para o dia em que se cruzarem com um cego na rua: em vez de agarrá-lo pelo braço/antebraço/mão e levá-lo seja para onde for, só porque acham que o sítio para onde vão é o mesmo, basta fazerem uma abordagem como fariam com qualquer outra pessoa. “Bom dia. Precisa de alguma ajuda?” E, sim: por incrível que pareça, esta abordagem é rara.

Cinco meses na Mensagem deu para deixar algumas destas dicas do lado dos meus colegas. Foi uma aprendizagem mútua, no meu primeiro trabalho como jornalista – algo que pensei nunca vir a ter, tantas foram as candidaturas que enviei (para apenas receber este “sim” da Mensagem). Levo as primeiras saídas à rua em trabalho, as minhas primeiras entrevistas, os meus primeiros erros. Tudo isto sempre acompanhado da inquietação que é o facto de eu ser cego. Como é que o entrevistado vai reagir quando me vir? Como é que vou chegar até aquele local, sendo que nunca lá fui?

Tive sempre resposta – e apoio – para responder a estas perguntas.

Foto: Gonçalo Moreira

No final deste mês, deixo de fazer parte desta equipa, mas vou sempre levar comigo tudo o que aprendi com estes jornalistas incríveis que todos têm vindo a conhecer, nestas newsletters e nas reportagens que vão publicando. Espero também ter deixado um pouco de mim neste capítulo da Mensagem de Lisboa. E parto com a sensação de que os nossos caminhos se tornarão a cruzar – o meu com os dos meus colegas e também com o seu, querido vizinho/a.

Foi um prazer contar-lhe esta cidade.

Feliz Natal. E até já.

– Tomás Delfim, jornalista na Mensagem de Lisboa


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A paixão pelo jornalismo aflorou apenas durante a própria licenciatura em jornalismo, mas, como se costuma dizer, mais vale tarde que nunca. Entrou para a Mensagem com a missão de praticar o jornalismo...