Quando João “Tsunami” Torres pegou pela primeira vez numa guitarra em mais de 10 anos, a saudade era tanta que a tocou e tocou. Sem tréguas. As cordas deixaram-lhe a mão em sangue — mas João nem sentiu, tal era a paixão e a força daquele momento. Só reparou no final.

Para um recluso como ele, aquela guitarra, tocada na prisão, não era apenas uma forma de se expressar e de explorar a criatividade. Era também um símbolo de casa. Família. A guitarra era a cultura cigana. A dele.

YouTube video

Emocionado pelo que tinha assistido, Dino D’Santiago não hesitou. Ofereceu uma guitarra a João Torres. O objetivo era que ele a pudesse usar no projeto De Dentro Para Fora, que era o que juntava João e Dino naquela sala do Estabelecimento Prisional do Linhó, na fronteira entre os concelhos de Cascais e Sintra.

Dino juntara-se ao projeto cultural e social que tem sido desenvolvido ao longo dos últimos anos nesta prisão. Foi há muito tempo, antes da pandemia, ainda que por estes dias as prisões estejam de novo nas notícias.

Pois, mas nem só de más notícias se fazem as prisões.

PRISÃO DO LINHÓ dino santiago musica rap de dentro para fora
Dino a oferecer a guitarra a João. Foto: Inês Leote

A persistência do professor Filipe

O projeto De Dentro Para Fora começou por ser uma ideia do professor Filipe Gameiro das Neves, que há vários anos dá aulas do ensino primário aos reclusos do Linhó.

“Há uns anos cheguei ao agrupamento de escolas de Alcabideche, onde tinha sido colocado, e perguntei: ‘qual é a minha turma, quais são os meus meninos?’ O diretor disse-me: “Tu vais para a prisão!’

O professor nem sabia que um professor do primeiro ciclo poderia dar aulas na prisão. “Era uma realidade que não conhecia de todo.”

Muito rapidamente Filipe começou a fazer mais do que aquilo que o seu trabalho exigia. Apaixonou-se pelo papel que poderia desempenhar ali e desenvolveu empatia pelos formandos.

O objetivo inicial era explorar a escrita, mas o professor não demorou a perceber que muitos dos reclusos que frequentavam a escola — e esta atividade extracurricular — estavam inclinados para o rap e para a escrita num contexto musical.

Era uma forma de expressarem as suas angústias e a sua individualidade, num meio em que é difícil exporem as suas vulnerabilidades, receberem estímulos criativos e onde são tratados como uma mancha homogénea… de criminosos.

O professor acabou por levar alguns instrumentais de hip hop e funk para uma das sessões. “Nem foi preciso dizer nada: começaram logo a pedir-me canetas e cadernos porque queriam escrever.”

A entrada de Dino no projeto do Linhó

Tudo começou de maneira informal ainda no final de 2019, mas ganhou força e terreno no ano seguinte. Foi quando Filipe Gameiro das Neves organizou a conferência na prisão com o título Crioulos: Passado, Presente e Futuro. O objetivo era abordar a língua franca dentro do Linhó, o crioulo que todos os reclusos — seja qual for a sua etnia — usam para comunicar entre eles.

O encontro entre o professor Filipe e Dino D’Santiago “foi uma feliz coincidência”. Nascia ali, naquela sala do Linhó, a semente para o projeto De Dentro Para Fora. Foto: Inês Leote

Dino D’Santiago foi um dos oradores da conferência e rapidamente se deixou encantar pelo projeto e pela experiência de conhecer aqueles reclusos.

Desafiou-os a usar instrumentais que evocassem as suas raízes, com batidas hip hop que se mesclassem com sonoridades tradicionais de Cabo Verde. A pandemia atrasou o desenvolvimento da iniciativa, mas, assim que as aulas foram retomadas, Filipe Gameiro das Neves instaurou as quartas-feiras à tarde como o momento oficial da semana dedicado àquela atividade.

“Eu ia gravando as coisas que eles escreviam só para haver um registo. Depois enviei para o Dino: ‘O que é que achas?’ A partir daí a coisa ganhou outra dimensão. O Dino identificou-se muito, disse que até tinha chorado a ouvir o rap deles, e ofereceu-nos mais instrumentais de base cabo-verdiana feitos pelo Berlok. Isso alimentou muito o projeto.”

Dino D’Santiago assumiu um compromisso e impulsionou a iniciativa.

Numa pequena sala na escola da prisão, construíram um estúdio — que batizaram de Johnson Semedo, em homenagem ao ativista falecido em 2022 que cumprira ali uma pena — e comprou material de estúdio como microfones, colunas, instrumentos e um computador.

Mais do que uma mentoria artística, Dino D’Santiago foi ajudando a gerir psicologicamente os receios e as emoções dos reclusos, nada habituados a gravar música nem a expressarem-se diante dos outros.

Numa pequena sala da escola da prisão, com a ajuda de Dino D’Santiago, construíram o estúdio Johnson Semedo. Foto: Inês Leote

A união faz a música: além do detetor de metais

Vários outros músicos profissionais acabaram por envolver-se, participando enquanto mentores nas sessões de música.

Ary Rafeiro, Mr. Marley, Apollo G, Cazé, Djodje Almeida, Rúben Torres, Berlok e Ricardo Quinteira foram alguns dos que aceitaram passaram pelo detetor de metais, deixaram os seus pertences — exceto as ferramentas de trabalho — para entrarem na prisão. Além do rap, muitos dos reclusos ciganos também estavam interessados em explorar as suas raízes musicais.

Da escrita passaram à gravação, da gravação aos videoclips dirigidos por Yannick Monteiro, outro nome importante que cedeu as suas habilidades para que o De Dentro para Fora ganhasse outra dimensão.

Decidiram editar um álbum com as canções feitas pelos reclusos — e o lançamento do disco estará para breve. Foi ainda gravado um documentário por Nuno Miranda.

“Para mim era muito importante que isto não ficasse só aqui, que fosse lá para fora porque é onde estão os familiares”, diz Dino D’Santiago.

“Gostava que sentissem esse orgulho. Eles também transmitem isso nas canções e se elas estiverem disponíveis no Spotify ou na Apple Music vão estar no mundo e é a forma de eles estarem lá fora com dignidade.”

“Ligado à música, este é o projeto que me diz mais — mesmo mais do que os meus próprios discos”, afirma o artista, que também teve um familiar preso, situação que o deixou mais sensível para a realidade das prisões e dos reclusos em Portugal.

“Enquanto sociedade civil, não nos preocupamos com as pessoas que estão presas. Pensamos só que devem cumprir as penas pelos crimes, mas não nos preocupamos com as suas histórias, com os contextos… Porque eles são das zonas mais vulneráveis e esquecidas deste país e isso não é por acaso.”

PRISÃO DO LINHÓ dino santiago musica rap de dentro para fora
Dino D’Santiago participou nas músicas e nos videoclips do projeto. Foto: Inês Leote

A música como motivação

A música como escape e motivação dentro de uma prisão entre os reclusos que participam no projeto, parece unânime. Uma forma de motivação lá dentro ou até para sonharem com uma vida melhor lá fora. Apaixonados por música, muitos tinham a ambição de um dia poderem gravar um disco e estão a conseguir concretizá-la de alguma forma com a edição profissional das suas músicas.

“É uma forma de conseguirmos exprimir coisas que numa conversa não daria”, assume o
rapper Poupaz, que guarda na cela três cadernos totalmente preenchidos com letras, ao
lado de alguns CDs e de um rádio.

“Às vezes escreves e encontras esperança nas tuas letras. Por mais que não sintas esperança, vais querer demonstrá-la na tua letra para as pessoas que estão lá fora — ou também para as que estão cá dentro.”

Poupaz foi chamado pelos colegas para este projeto. Sabiam que gostava de escrever letras e que ia encontrar aqui uma forma de “ocupar a cabeça” a fazer o que gosta. Foto: Inês Leote

Para ele, é fulcral aproveitar o apoio de profissionais como Dino D’Santiago ou Yannick Monteiro. “São muito poucos os casos de pessoas que puderam gravar músicas dentro de uma prisão, e até na rua é difícil termos acesso a algumas destas condições. Por isso temos de agarrar esta oportunidade com todas as forças e mostrar que não somos só isto, que não somos apenas a prisão. Que eu sou um ser humano com bom coração. Cresci num bairro onde vi e fiz de quase tudo, cometi alguns erros e isso levou-me aqui.”

Outro rapper, AC, conta que o principal motivo que o levou a frequentar a escola dentro da prisão foi este projeto. “Queria acabar o 12.º ano, mas vim mais por isto. Foi juntar o útil ao agradável.”

João “Tsunami” Torres sente que foi um “alívio”.

“Tem sido muito importante mesmo, uma inspiração. Antes de estar na escola passava 20 horas fechado na cela, por isso é que vim para aqui. A música para mim é sentimental, lembra-me a minha família, tudo aquilo por que já passei, e ponho a história da minha vida na música.”

PRISÃO DO LINHÓ dino santiago musica rap de dentro para fora

Misturas

O disco vai contar com uma série de sonoridades e estéticas distintas, com preponderância para o hip hop que evoca as raízes cabo-verdianas de muitos, mas também para o flamenco. João Lito cruza o rap com a música cigana com que cresceu.

“É um refúgio. Se estamos na cadeia e não temos nada que nos ocupe a mente, ficamos malucos. E a música claro que nos aproxima a todos.”

“É uma maneira de ocupar a cabeça, de me distrair, até porque aqui não há muito que fazer. E como já cantava e tinha esta oportunidade… É só uma vez por semana, mas dá aquela motivação até à próxima. E aproximou a malta. A música ajuda muito.”

“Estou nisto para ficar”, assume Dino D’Santiago.

Dino, que no ano passado fez questão de receber ali a sua Medalha de Mérito Cultural atribuída pelo governo anterior — assume que isto é um “compromisso até ele deixar de fazer sentido”.

Estão a gravar outros volumes deste projeto, com mais músicas e a participação de outros reclusos, e as ligações prolongam-se para lá dos limites da prisão.

Dino com Pallex no Festival Iminente em 2023. Foto: Inês Leote

“Quando um dos reclusos que participavam, o Pallex, saiu da prisão, levei-o a um concerto na Amadora e ao Festival Iminente para que ele pudesse sentir a dignidade de que a música dele podia chegar mais longe. Vou tentando sempre que o compromisso se estenda para lá desta relação dentro do Linhó.”

Todos os artistas que participam no álbum foram registados na Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), para que possam receber os direitos de autor pelas suas canções.

“Temos a intenção de que eles possam ganhar dinheiro com a sua arte e talento”, explica
Filipe Gameiro Neves. “E para poderem ter um portefólio se quiserem seguir uma carreira
musical.”

Gravação de um videoclip no pátio da escola, com o realizador Yannick Monteiro e Dino D’Santiago. Foto: Inês Leote

O apoio da hierarquia

Uma das principais consequências deste projeto é a melhoria do estado de espírito dos reclusos, mas também a esperança do que as ferramentas que uma iniciativa como esta podem proporcionar para o futuro.

A diretora do Estabelecimento Prisional do Linhó, Ana Paula Pardal, fala na “possibilidade de no futuro poderem fazer algo diferente daquilo que os trouxe aqui”. Esta é uma prisão masculina com uma população muito jovem, por isso a “intervenção tem de ser direcionada para essas características”.

“São precisos projetos que encaixem nas necessidades sentidas pelos reclusos e naquilo que faz sentido na vida deles”, diz Ana Paula Pardal, a diretora.

Os resultados têm sido notórios: “Acabamos por perceber que os reclusos estão a trabalhar com empenho e isso nota-se no crescimento do grupo, na maturidade de alguns elementos que fazem parte do projeto. Ficarei muito contente quando vir um disco, mas fico muito mais satisfeita e com um sentido de dever cumprido quando perceber que há muito mais, de quando saírem poderem encontrar um rumo para a vida deles.”

A importância de projetos culturais, artísticos, desportivos e sociais nas prisões tem sido alvo de estudos. Em Portugal, já tinha havido uma experiência com rap na prisão de Leiria, onde organizam com sucesso o projeto Ópera na Prisão, com a Fundação Calouste Gulbenkian.

Ali mesmo, no Linhó, a Companhia Olga Roriz já explorava a dança contemporânea com os reclusos através da iniciativa Corpo em Cadeia. As conclusões dos especialistas é que são atividades francamente positivas para todas as peças deste ecossistema delicado.

“A estrutura prisional é pensada como um meio coercivo. É limitado e hostil, nada criativo. A arte é exatamente o oposto. A vantagem destes projetos para os indivíduos tem a ver com a sua livre expressão”, explica o psicólogo Carlos Filipe Saraiva, que tem experiência no
trabalho com reclusos.

“Na arte e no desporto, o nosso cérebro está centrado naquilo que está a fazer. Se uma pessoa estiver a fazer uma atividade de que gosta, com a qual se identifica, que lhe dá valor e um vínculo, naquele momento ela cria uma ligação muito forte e existe uma evasão mental da sua realidade física.”

Mesmo que não exista uma correlação direta entre reinserção social e participação em projetos artísticos, Carlos Filipe Saraiva não tem dúvidas de que iniciativas como esta podem fazer toda a diferença.

“Existem vários estudos que confirmam que existem mais-valias, a nível dos estados emocionais, no sentido de estarem menos deprimidos, menos hostis, menos impulsivos… Há melhorias significativas na capacidade de comunicação e de expressão e até no controlo interno. A arte pode fazer pequenos milagres.”

É essa a esperança de todos. Do professor Filipe, do cantor Dino e de todos os que participam neste projeto.

Ricardo Farinha

Nasceu em Lisboa e sempre viveu nos arredores da capital, periferias que lhe interessam particularmente. Conta histórias em modo freelance, sobretudo ligadas à área da cultura. More by Ricardo Farinha

Inês Leote

Nasceu em Lisboa, mas regressou ao Algarve aos seis dias de idade e só se deu à cidade que a apaixona 18 anos depois para estudar. Agora tem 23, gosta de fotografar pessoas e emoções e as ruas são o seu conforto, principalmente as da Lisboa que sempre quis sua. Não vê a fotografia sem a palavra e não se vê sem as duas. É fotojornalista na Mensagem. More by Inês Leote

O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição:

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *