Desde cedo que acompanhei de perto muitos jovens do meu bairro, Chelas, em Marvila, na procura de concretizar o sonho de serem profissionais de futebol – que tinha de começar por serem atletas federados. Também fiz parte de algumas dessas romarias, mas nunca consegui.

Era muito comum no final do verão andarem à procura de clubes em Chelas, Olivais e Moscavide para fazerem captações, fosse futebol ou futsal. Felizmente, na Freguesia de Marvila não faltavam opções onde procurar a sorte: em 2023, estavam registadas 28 associações desportivas. E Chelas parecia o lugar da bola.

Ouça aqui o podcast:

Por isso, nunca faltaram talentos.

Recuando 20 anos ao Euro 2004, faziam parte da equipa titular de Portugal três jogadores de Chelas: Nuno Valente, Miguel… e Costinha – ele que fez toda a formação e estreou-se nos séniores do Oriental, considerado o maior dos clubes de Marvila.

À esquerda, Airton, em Chelas. Foto: Isa Marques

Nestas crónicas, escritas e em podcast, a que chamamos “Chelas é futebol”, vou contar histórias de cinco clubes do meu bairro: CF Chelas, Oriental, AD Pastéis, Torre Laranja e Sociedade Musical 3 d’Agosto de 1885. Qual a ligação que têm a Chelas, a responsabilidade social a que se comprometeram… e umas tantas curiosidades.

Um desses clubes, e protagonista deste primeiro episódio, é o Clube Futebol de Chelas (CF Chelas) – não confundir com o antigo FC Chelas, fundado em 1911 e que se juntou ao Grupo Desportivo Os Fósforos e Marvilense Futebol Clube para formar o Clube Oriental de Lisboa, em 1946. Este é o Chelas que fez de um autocarro a sua sede. É que, durante vários anos, o clube serviu-se de um antigo veículo de dois andares — o 39, que ligava Marvila à Baixa — para sede e espaço de convívio entre os sócios.

Hoje em dia, no lugar onde estava estacionado, a sede funciona num prédio.

A antiga (à esquerda) e a nova (à direita) sede do CF Chelas.

Patrícia, a presidente por acaso

Fundado em 1979, homónimo da região em que está localizado, que não é só um bairro nem uma freguesia, este clube carrega no nome a má fama construída nos anos 90. E a fama dá despesa: parte dos custos do clube têm que ser destacados para a presença policial nos jogos em casa.

Mas o CF Chelas carrega sobretudo orgulho – como se ter Chelas no nome de um clube hoje em dia fosse um ato de subversão, um movimento contra a corrente que tenta literalmente apagar o bairro dos mapas. É que a denominação Chelas foi revogada da toponímia da freguesia de Marvila, oficiosamente. Continua, claro, nas bocas dos habitantes que até a apelidam de Capital de Lisboa.

Este sentimento de pertença está no discurso da Patrícia Mendes, Presidente do clube e nativa de Chelas. Entrou para o clube inicialmente para “tratar de uma burocracia”, e mais tarde foi convidada a ser vice e a assumir o cargo de Diretora Desportiva do Futebol de Praia.

É verdade: mesmo estando nós a 15 quilómetros da praia mais próxima, Chelas tem somado títulos no futebol na areia. A história parece inusitada, mas numa freguesia com tantos clubes e tão poucas infraestruturas, a diversificação significa sobrevivência.

Passar a presidente foi a ordem natural das coisas, tendo em conta o amor ao clube e ao associativismo que lhe corre nas veias — tem uma irmã presidente de uma Junta de Freguesia e ela própria foi presidente da Associação de Estudantes da Escola Secundária D. Dinis. É uma “pessoa de projetos” e, neste momento, o principal é o clube. Patrícia quer ser testemunha do renascimento do CF Chelas.

O clube, que já teve equipas de futebol e futsal, tem atualmente apenas duas equipas de competição no futebol de praia: os seniores no Campeonato Nacional, equivalente à segunda divisão, e a equipa B na Distrital.

Mas vale uma menção honrosa para a equipa de veteranos que participa em torneios de futsal do INATEL por puro “amor à camisola”, como conta Patrícia.

A Arena Manuel Ferreira

Apenas o Oriental tem um estádio com campo de futebol 11 e pavilhões próprios. Quanto ao CF Chelas, teve equipas de futebol e futsal que treinavam e competiam em campos cedidos pela Junta de Freguesia de Marvila, mas entretanto foram extintas.

A densidade de clubes é grande e os horários de pavilhões estão completamente preenchidos por treinos dos escalões de formação aos séniores. A disputa por esses escassos pavilhões é exacerbada por clubes de fora da freguesia e com mais meios, como o Benfica e o Sporting, que alugam horários em escolas públicas para as suas infindáveis equipas de formação.

Foi aqui que a Junta de Freguesia decidiu intervir e garantir prioridade para os clubes e talentos locais.

Já para a modalidade que têm de momento, não precisam de competir com outros clubes por horários de treino — têm campo de praia próprio e o único em Lisboa.

É exatamente no meio do Parque do Vale Fundão que fica a Arena Manuel Ferreira, o estádio do CF Chelas.

Foto: Líbia Florentino.

Na parte da frente tem o típico aspecto de uma associação desportiva a que sobraram apenas atletas de jogos de tabuleiros ou sócios reformados a comentar a ordem do dia. Nas traseiras está o único campo de futebol de praia de Lisboa.

Foto: Líbia Florentino.

Lembro-me de passar ali há três anos, durante a pandemia, e ter a impressão de ser um campo abandonado pelas ervas altas que cresciam ao redor da areia, a bancada desdentada de cadeiras e um vazio de pessoas. Acontece que esse é quase sempre o aspecto do estádio nos meses de Inverno, quando não há competição. Quando retoma em maio, há vida nas bancadas e na areia.. e ninguém imagina como as ervas cresciam por ali umas semanas atrás.

Quem passasse por ali a 29 de julho de 2023, teria assistido à jornada 10 da Série Sul do Campeonato Nacional, onde o CF Chelas venceu o Estrela da Amadora por 7-4. Duas semanas antes, acolheram uma etapa da Taça de Portugal – desta vez sem a participação da equipa da casa, mas com direito a transmissão televisiva no Canal11, canal da Federação Portuguesa de Futebol.

A modalidade está em crescimento, mas apesar do bicampeonato mundial de Portugal entre 2015 e 2019, ainda não reúne a popularidade do Futebol e Futsal. Aliás: a profissionalização da modalidade é recente, ainda está no processo de transformação da variante de lazer para competição. E não é fácil criar infraestrutura para esta competição, sabendo que não há grande retorno financeiro, porque as ligas acontecem apenas nos meses de verão.

Seria sempre uma profissão sazonal.

Como sobrevivem estes clubes

No caso da arena do Chelas, tem mais atividade do que o normal, porque é partilhada com outro clube da freguesia — os Pastéis. Marvila é mesmo especial; não tem praia, mas tem dois clubes com equipas desta modalidade e um deles — AD Pastéis — é bicampeão nacional feminino. A particularidade d’Os Pastéis não acaba por aqui: para além de terem ganho o Campeonato Nacional em 2022 e 2023, têm no plantel a melhor jogadora do mundo, a brasileira Adriele. Este clube terá também direito a um episódio nesta série, mas por agora falemos do CF Chelas.

São os proprietários do estádio partilhado e a quem cabe a gestão do recinto. Mas como podem assumir a manutenção do campo, sendo que só têm duas equipas de competição e não profissionais?

Esta pergunta pode ser colocada a muitos dos clubes de Marvila, considerada a freguesia do desporto.

Neste caso, a resposta às dificuldades financeiras é dada pelos apoios da junta, que cede uma verba de acordo com o número de atletas e modalidades de cada clube. Sem esta ajuda, neste momento representada por Ricardo Ribeiro, coordenador de Desporto da Junta, clubes como o Chelas não teriam capacidade de competir.

As outras contribuições chegam de patrocinadores, maioritariamente negócios locais, e das quotas de sócios — a quem a Patrícia quer compensar de alguma forma pela lealdade nos tempos difíceis. Talvez o consiga com o projeto que está na gaveta, que prevê a construção de um estádio coberto, com bancadas de verdade para acolher uma casa cheia a apoiar o CFC.

Foto: Líbia Florentino.

A responsabilidade social é um objetivo desta administração, mas que está limitado às condições atuais.

Dentro das possibilidades, envolve-se com a comunidade local. Por exemplo, na abertura a projetos curriculares com os vizinhos da Escola Secundária D. Dinis ou simplesmente deixando as crianças brincarem na areia do campo. Durante o verão, período em que não há competições de futebol de campo ou futsal, alguns atletas mantêm a forma treinando, e alguns até jogando, na equipa de futebol de praia.

Esta é a gestão da Patrícia Mendes do clube que já foi um autocarro. Sempre de portas abertas à comunidade.

Ouça o trailer desta série, aqui:



Airton Cesar Monteiro

Airton Cesar Monteiro é imigrante cabo-verdiano lisboeta, licenciado em Relações Internacionais (não praticante) e convicto agitador social. Dedicado a escrever sobre mudanças sociais, cultura e o que mais lhe apetecer.


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