Lisboa, porto de abrigo dos refugiados da Segunda Guerra Mundial. Uma história recordada por estes dias no Porto de Lisboa – pela Mensagem e a Administração do Porto de Lisboa, no âmbito dos seus 136 anos.
Com um mural de Vhils sobre uma fotografia de Roger Kahan, também ele refugiado, com um livro de Ferreira Fernandes, publicado no âmbito dos Cadernos do Arquivo do Porto de Lisboa, e com um documentário de Humberto Giancristofaro, “O Cais da Europa, Roger Kahan no Porto de Lisboa”, apresentado esta semana na Gare de Alcântara – e seguido de um debate onde a questão central foi colocada no documentário: “Como é que não há em Lisboa uma marca, um azulejo que seja, em Lisboa, a lembrar esta hstória tão importante?”
Ouça o debate na íntegra:
Pacheco Pereira começou por referir a censura no regime de Salazar como culpada desse esquecimento. “Não eram só as notícias políticas que eram censuradas. Era tudo o que perturbasse a paz social e o bom funcionamento da sociedade.” E aí, segundo o historiador, começa o esquecimento.
A historiadora Irene Flunser Pimentel notou a tentativa de se apagar da história essa “memória fundadora”, ressaltando outros aspetos menos importantes da época, como a passagem de espiões, deixando à margem o drama dos refugiados.

“A questão da censura presente na época foi fundamental para isso. Praticamente, não existe registo do período do Holocausto, um período que foi silenciado pelo regime. Os jornais, por exemplo, eram proibidos de publicar as fotografias dos refugiados. Mas ao mesmo tempo que Salazar tentou abafar da memória dos portugueses essa questão, aproveitou-se dessa história, ao pontuar que Portugal teve uma conduta humanista ao permitir que os refugiados atravessassem a fronteira para se salvar”, analisou a historiadora, especialista nesta época, que se cruzou com esta história na livraria Buchholz quando uma descendente de refugiados procurou algum livro sobre o assunto. “Eu ri-me. Não havia nada obviamente. E comecei a pesquisar.”
Francisco Seixas da Costa diria que “esquecemos uma memória que muitos, os seus protagonistas, também escolheram não guardar”, fazendo referência ao facto de o próprio Kahan, depois Roger Coster, nome que adotou nos EUA, ter decidido não contar a ninguém o que lhe tinha acontecido “antes de Elis Island”. “Lisboa era uma memória traumática, um sítio de passagem que eles também preferiram esquecer”. Mesmo assim, a “última memória da Europa que muitos tiveram”, disse Irene Pimentel.

A jornalista do Expresso, Manuela Goucha Soares lembrou-se do mesmo, ela própria moradora na Travessa do Noronha, onde funcionava a Cozinha Económica, só deu de caras com essa história quando “tropeçou” no trabalho de Roger Kahan, em 2019, durante uma pesquisa no Arquivo Diplomático para uma reportagem sobre os 75 anos da libertação dos campos de concentração.
“Nunca havia ouvido falar no Kahan. Encontrei uma série de fotos e fiquei fascinada, pela força imensa que exibiam”, recorda. Mesmo assim, continuava-se sem saber nada sobre o fotógrafo, refugiado e judeu.

O próprio José Ruah, membro da Comunidade Israelita de Lisboa – que não participou ao vivo no debate – confessou à Mensagem não conhecer esta história.
“Apesar de a história dos refugiados ser um fenómeno muito bem documentado, não conhecia até agora o nome de Roger Kahan. Foi só a partir desse resgate que tive acesso às fotografias fantásticas dele, que dão uma textura ao importante papel do Porto de Lisboa em permitir que milhares de pessoas tivessem direito a sonhar com um futuro”, concluiu, dizendo que, nesse sentido, o novo mural de Vihls, sobre uma fotografia de Roger Kahan, é um brilhante testemunho de uma época em que o cais de Lisboa era um porto de abrigo.
Pacheco Pereira lembrou o “sentimento de desespero” que assolou a Europa durante o período da segunda guerra mundial. “Os anos entre 1939 e 1940 são um período particularmente traumático para os judeus, que já vinham dos anos de perseguição durante a década anterior, em que aqueles que tinham uma condição financeira mais privilegiada conseguiram fugir, vindo para Portugal”, contextualizou.

Ferreira Fernandes, jornalista e fundador da Mensagem, responsável pelo resgate deste registo dessa época dramática, falou exatamente disso, e da importância de se fixar na geografia sentimental da cidade um marco, como agora tem Roger Kahan, no mural produzido por Vhils no Porto de Lisboa. “Vão lá e sentem-se na Praça que o Porto de Lisboa criou, e imaginem, em silêncio, a vida desta mulher, sozinha e pobre”.

“A minha razão para contar a história do Roger Kahan passa pela vontade de reverter a injustiça que estava a ser cometida, como ainda continua a ser cometida com o Aristides de Sousa Mendes, de não ter um marco que lembre o seu gesto. Mas é importante ter um lugar para lembrar aqueles que foram generosos, que, no pior momento da história da humanidade, foram capazes de grandes atos. No caso de Roger Kahan, o registo desse período”, explicou Ferreira Fernandes.

Seixas da Costa trouxe para o debate precisamente o papel do cônsul português em Bordéus, Aristides de Sousa Mendes, que durante a ascensão do nazismo, à revelia do regime salazarista, emitiu centenas de vistos para que refugiados judeus cruzassem a fronteira de Portugal, entre eles, Roger Kahan.
“Uma das coisas que mais me impressionou quando analisei o caso do Aristides de Sousa Mendes era que o nome dele, mesmo depois do 25 de Abril, ainda era diabolizado nos corredores do Ministério dos Negócios Estrangeiros pelos colegas, muitos deles remanescentes do regime, que punham em causa a atitude dele. O curioso é que Salazar acabou por beneficiar desse sobressalto, porque o saldo global acabou por repercutir positivamente sobre a imagem histórica de Portugal”, disse.
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