A longa mesa estende-se por cinquenta metros, sob a sombra das enormes figueiras e do prédio do Museu de História Natural, a poucos passos do Jardim Botânico. Foi aqui que uma centena de lisboetas se reuniram no passado domingo, o segundo de outubro, para celebrar a alegria e o privilégio de serem vizinhos de um bairro de Lisboa.
São vizinhos do Príncipe Real.
Um cenário de filme, com direito ao doce acorde do violino como banda sonora, tocado por uma das vizinhas, enquanto os convidados descontraidamente conversavam, aguardando pela paella preparada ao ar livre em frigideiras gigantes – o alimento da confraternização que marca mais um almoço comunitário realizado pela Associação Príncipe Mais Real, no âmbito do festival Bairro Real, de decorreu e 4 a 8 de outubro.
“A nossa intenção é unir, unir e unir”, resume Patrícia Luz, a coordenadora da associação, uma anfitriã zelosa e atenta em acomodar os vizinhos na imensa mesa, ao mesmo tempo que trata de fazer as apresentações entre aqueles que porventura não se conhecem – apesar de viverem no mesmo bairro e de certamente cruzarem-se no passeio ou no autocarro.
À descoberta dos artistas do bairro
Simão cuidadosamente retira com sucesso uma das hastes de madeira empilhadas na mesa de jogos montada pela organização. Os adultos que observam o menino, Luís Ribeiro e Luísa Brás, sabem muito bem que conhecer os vizinhos nestes dias exige destreza e persistência semelhantes a de quem move as peças do jogo de mikado.
“Vivo aqui há 50 anos e nunca tinha visto nenhuma destas pessoas. Como é possível?”, surpreende-se Luísa, enquanto aguarda a sua vez para mexer nas hastes de madeira. “Eu estava a justamente a comentar agora sobre como é impressionante não conhecer, às vezes, quem vive porta a porta”, completa.

Um dos vizinhos desconhecidos é o poeta Rui Sousa, de 44 anos, os últimos três deles no Príncipe Real, para onde veio de Leiria, após sofrer um burnout quando trabalhava na restauração. Desde então, vive da poesia que escreve e oferece na rua, acompanhada de um ramo de malmequer, em troca de um valor que a pessoa decida retribuir pela gentileza.
Apresentado por Patrícia, Rui declama um dos seus poemas, uma série de questões que faz a Lisboa, sobre o que seria a liberdade, o destino, a esperança e a saudade, entre outras inquietudes do poeta, que escuta a cidade a responder em forma de verso.
Uma das dúvidas é justamente sobre quem ele seria, e Lisboa não titubeia: “És uma caneta na mão de Deus.”



Além dos vizinho do Príncipe Real, Rui faz parte de uma outra associação, a Poesia pra Todos, com a missão de espalhar a poesia por Lisboa. É o que faz com as folhas do seu poema, escrito em português e inglês, distribuídas entre os convidados, o ramo de malmequer um marcador de página.
A poesia de Rui acompanha a sobremesa, preparada e trazida pelos próprios vizinhos. O almoço caminha para o fim, mas ainda havia programada uma última surpresa.
É aí que se ouve a melodia inconfundível do acordeão do francês Michel, um convidado especial da vizinha Campo de Ourique. Aos 74 anos, o músico e sapateador impressionantemente mantém o mesmo espírito jovial de quando chegou a Lisboa, há mais de quatro décadas, para apresentar-se nos teatros da Baixa lisboeta.
A apresentação agora é no chão de terra do jardim do museu, o que o impede de sapatear. A saída foi aproveitar o um metro quadrado de betão da tampa de um reservatório e fazê-lo de palco. “Look what he is doing!”, espanta-se uma vizinha adolescente, num dos vários idiomas de Lisboa, apontando para Michel, que sapateia no tablado improvisado.
O repertório transita entre clássicos da chanson française e de Portugal, sendo esse último o bastante para fazer levantar os vizinhos da imensa mesa, que dançam ao familiar acorde de sucessos do passado, como Cantiga da Rua, Linda Madeira e Casa Portuguesa.
Uma das mais efusivas é uma vizinha de madeixas prateadas e vestido azul, que esquece as próteses nos dois fatigados joelhos do corpo que já testemunhou tantos outonos para rodopiar feliz ao ritmo do acordeão, os braços erguidos e que, sem conter a felicidade, resume numa frase o espírito desse mágico almoço de domingo entre vizinhos de bairro:
“É tão bom, que a gente até esquece das dores.”

A nova associação e os antigos vizinhos do bairro
Criada há três anos, a Associação Príncipe Mais Real foi pensada como uma amálgama para os moradores do bairro que, muitas vezes dispersos pelos imperativos do cotidiano, às vezes não tinham a oportunidade de conhecerem-se uns aos outros e nem mesmo o tempo para dedicar ao vizinho de porta um sorriso ou até um simples “bom-dia”.
“O primeiro ano da associação foi dedicado em saber quem eram estes vizinhos e criar uma rede de contactos. No segundo, reunimos os vizinhos dessa rede num almoço igual a este. E agora, sempre pensando em dar um passo a mais, organizamos uma série de eventos culturais e de reconhecimento do próprio Príncipe Real”, explica Patrícia Luz.

As atividades do evento Bairro Real estenderam-se por quatro dias, em diversos pontos do Príncipe Real, numa programação bastante eclética entre visitas à exposições, peças de teatro, workshops, tertúlias, bazar de garagem, jantares e, claro, o esperado almoço comunitário, realizado nos jardins do Museu de História Nacional de Lisboa.
“O museu é um vizinho que conhecemos bem e que também nos conhece muito bem”, explica Patrícia, enquanto recebe uma vizinha igualmente bastante conhecida. “Esta é a dona Rosa”, apresenta a anfitriã, cumprimentando a senhora que caminha com a ajuda de uma bengala pela avenida das palmeiras que dá acesso ao jardim nas costas do museu.
O apoio para caminhar foi necessário após a cozinheira reformada Rosa Maria Melo sofrer um AVC, que ela bem humorada trata como um conhecido, responsável pelos seus eventuais lapsos de memória. Dona Rosa vive há 50 anos no Príncipe Real, desde que se mudou do Minho onde nasceu.
Mas em qual cidade?
“Em qual cidade, em qual cidade… está a ver, é o AVC”, responde. Segundos depois, aproveita-se de um descuido do inconveniente conhecido para prontamente recordar-se da cidade natal: Valadares de Monção.

O que Dona Rosa não esquece é que veio para o Príncipe Real para casar e constituir família. Foi no bairro que teve a filha, em 1973, e onde trabalhou na cozinha de pessoas importantes – de quem não revela os nomes, não por outra batota do AVC, mas por discrição profissional. “É família muito conhecida, não vou entrar por aí”, diz, cuidadosa.
Lembra-se ainda de um dia em que cozinhou para um jantar realizado nas dependências do prédio do Museu de História Natural, onde regressa agora não para servir, mas para ser servida num almoço nos seus jardins.
“Estou em casa”, afirma, enquanto lentamente vence os metros que restam até a imensa mesa sob as frondosas figueiras. “Em casa e feliz.”
E os novos vizinhos?
Os 50 anos de Príncipe Real de Dona Rosa contrastam com o ano de bairro da austríaca Tamara Kiechle, a vizinha responsável pelos inefáveis acordes de violino que se ouve enquanto a paella aquece para ser servida. “Vim de passeio a Lisboa, recebi um convite para tocar com uma banda e decidi ficar”, conta Tamiki, o nome artístico da violinista.

Tamiki costuma apresentar-se nas ruas do Príncipe Real, onde vive, num apartamento partilhado. Soube do almoço, inclusive, através de um dos flatmates, coincidentemente um sobrinho da organizadora. Não pensou duas vezes em aceitar o convite para conhecer melhor os novos vizinhos.
“Gosto de acordar e ouvir os passarinhos e as vozes das crianças”, destaca a nova lisboeta, sobre o que mais a encanta no seu novo bairro.
Quem também chegou há pouco tempo foi Maria do Rosário, a Rosarinho, como prefere ser chamada a moradora do Príncipe Real há dois anos. Nascida e criada na Parede, Cascais, foi para aqui que decidiu viver após duas décadas em Londres. Salvo algumas noites em que o barulho da famosa vida noturna da zona atrapalha o sono, só tem elogios ao novo bairro.
“Aqui no Príncipe Real posso fazer quase tudo a pé. Ando imenso e raramente pego no carro”, conta.

É caminhando que Rosarinho tem ido ao Mercado do Rato para exercitar uma das suas faces profissionais: antropóloga e gestora de projetos em tecnologia da informação, a nova vizinha é ainda artista plástica e prepara-se para lançar, a 20 de outubro, uma exposição com colagens feitas a partir de números da revista Vanity Fair, de uma coleção doada por uma outra vizinha.
Alguns dos rostos sentados à imensa mesa já são familiares a Rosarinho. “Faço um esforço consciente em travar contacto com os meus vizinhos. Sempre fui assim”, explica, quando se ouve o anúncio de que a paella já está pronta para ser servida.
Com a paella já devidamente servida, o poeta Rui declama um dos versos da sua autoria, onde Lisboa surge numa das estrofes como um “sonho onde vale a pena nos perdermos”.
Surgem os aplausos, seguido pela harmonia de um acordeão, que irrompe no almoço nos ombros e nas mãos de um convidado, sublinhando a atmosfera felliniana do encontro. A melodia de antigas canções portuguesas convida os presentes a dançar, principalmente os vizinhos mais antigos, que sabem a letra de cor:
“Numa casa portuguesa fica bem, pão e vinho sobre a mesa. E se à porta humildemente bate alguém, senta-se à mesa com a gente.”
E o refrão docemente soprado pelo fole do acordeão não deixa dúvidas de que naquele domingo, aquele jardim é também uma casa portuguesa, com certeza.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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