Aparite, vinhático, pau santo, pau ferro. Os componentes dos móveis exigem muita atenção ao serem trabalhados. A madeira enquanto material orgânico, sujeita a oscilações e elementos externos, como a temperatura, requer um exercício feito de técnica, minúcia e paciência.
Foi a paixão por este trabalho que levou Marta Carneiro, Marta Carvalho e Catarina Monteiro a abrir uma oficina de restauro de móveis, na Quinta da Graça, em 1999. Em 2004, Gonçalo Carneiro juntou-se à equipa e, em 2018, mudaram-se para a atual morada. “O Bairro do Rego é muito bem localizado, o que nos permite deslocar-nos facilmente para qualquer ponto da cidade e arredores”, explicam.




Todos têm o diploma de Conservação e Restauro e consideram um “privilégio” poder trabalhar na área que escolheram, em Portugal. A maior dificuldade é gerir o salário irregular ao final do mês e lidar com a falta de apoios externos e a desvalorização da profissão. “Nunca sei quanto vou ganhar por mês”, comenta Catarina.
Cada funcionário do atelier trabalha individualmente, mas partilham o espaço da oficina e as despesas com as máquinas. Além dos quatro “residentes”, a mascote canina, o Pião (resgatado da rua), é uma presença diária.
Durante a pandemia, o Armazém de Restauro foi surpreendido pelo “excesso de trabalho”. Ficar em casa levou as pessoas a interessarem-se mais pela decoração e pelo arranjo dos seus móveis.
Dinamizar o bairro através do restauro
Quando as ruas permaneciam vazias nos meses mais duros de pandemia, os vizinhos do bairro começaram a reparar nas portas estreitas da oficina e na luz que, lá dentro, revelava móveis velhos, móveis desmontados, móveis (aparentemente) novos.
A curiosidade deu lugar a uma clientela habitual à procura de pequenos serviços. A equipa reconhece que trabalhar à porta fechada é um obstáculo à divulgação dos seus serviços, mas no cruzamento entre a Rua Filipe da Mata e uma das principais artérias do Bairro do Rego, a Rua da Beneficência, as relações de vizinhança estreitaram-se. Quando o Armazém organiza eventos, como exposições, os vizinhos são todos convidados.
O maior interesse da parte dos clientes, nestes últimos dois anos, revelou-se também na vontade de aprender, e muitas das pessoas que entram no atelier perguntam por workshops.
A falta de espaço dificulta a sua concretização, mas a equipa gostaria de avançar com a ideia e sonha com alternativas. “Há aí tantos espaços vazios e que estão fechados onde se podia fazer este tipo de eventos”, diz Gonçalo.

Marta Carneiro já deu workshops noutras freguesias e notou os benefícios que traziam aos participantes. “Eu trabalhei sobretudo com pessoas já de alguma idade e donas de casa, algumas que tinham problemas graves de saúde”, conta. “Tinham tido cancro há pouco tempo e aquilo foi uma forma de se manterem ocupadas. Fez-lhes imenso bem”.
Restaurar um móvel é gratificante, explicam os sócios do Armazém de Restauro, e é esta ideia de construir ou refazer algo que consideram ser a chave para o interesse de tanta gente em workshops, que, juntando aprendizagem e convívio, poderiam ajudar a dinamizar o bairro.
Embora seja uma área com técnicas complexas e máquinas caras, a atividade de restauro tem outras formas mais simples de trabalhar e materiais de fácil acesso que permitem às pessoas desenvolver competências ou criar um hobby.
A crescente autonomia em determinadas técnicas de restauro e manutenção dos móveis é um dos principais objetivos dos workshops: mostrar às pessoas que, ao usar materiais baratos e acessíveis, conseguem remodelar e alterar peças em casa.
Estas “aulas” de restauro poderiam ser também uma oportunidade para a freguesia recuperar móveis antigos, de qualidade. “Nós já tivemos pessoas que vieram cá com peças lindas, muito bem feitas, por exemplo dos anos 1950, a perguntar se nós queríamos ficar com elas, só que não conseguimos, porque não temos espaço nem disponibilidade, mas era engraçado a Junta de Freguesia recuperar esses móveis para depois poder vender ou usar para outros fins”, sugere Gonçalo.
A acrobacia dos restauradores e o organismo da madeira
No Atelier, Marta Carvalho pincela um móvel e Catarina canta enquanto finaliza os pormenores de uma peça. O macacão azul de Marta Carneiro está todo salpicado de pintas brancas. O pó já faz parte da casa, é sinal do trabalho diário. E há aparas de madeira espalhadas pelo chão.
A conservação pretende manter a aparência do móvel e impedir que fatores exteriores, como a temperatura, o degradem. O restauro visa “devolver à peça a sua leitura estética”, caso lhe faltem elementos, como uma perna de uma cadeira. Contudo, Gonçalo alerta para a homenagem ao próprio móvel. “As marcas que uma peça tem também vêm da sua história”, diz.





Colas, malhetes, encaixes. Embutido, contraplacado, folhado. Talha, douragem, empalhamento, pintura. Saber trabalhar as técnicas corretas é tão importante como manusear as ferramentas e distinguir um serrote de um martelo, um formão de um maço.
Trabalhar com madeiras exige força, pormenor e alguma ginástica. “Nós dentro do móvel temos de trabalhar quase de forma impensável, parece que somos acrobatas e ginastas para chegar ao sítio que queremos”, conta Gonçalo.
Quanto mais anos tiver, mais estável é a madeira, “uma madeira comprada de novo tem muito mais humidade”, explica do restaurador. Também os móveis fechados durante anos, “sem ter o mínimo de vivência, criam as suas manhas”.
A indústria de massa do mobiliário é um inimigo do processo de restauro. Os móveis mais recentes com vernizes de plástico, por exemplo, deixam quase invisível “o poro da madeira”, e a própria construção dos móveis, nomeadamente a folhada, dificulta a intervenção.
Os ângulos, as colagens, as travessas, as respigas e a época das cadeiras tornam-nas uma das peças mais difíceis de restaurar, e mais caras. Porém, nas paredes do Atelier, de onde sobressai um ambiente acastanhado do mobiliário, estão penduradas cadeiras de todas as formas e feitios.



Em Portugal, não se valoriza o restauro, ao contrário do que acontece noutros países, como na Alemanha ou em Inglaterra, lamentam os sócios do Armazém de Restauro. “As pessoas preferem comprar móveis novos, nas grandes superfícies de mobiliário, do que gastar dinheiro a restaurar móveis antigos”, diz Marta Carneiro. “Pensam que é só dar aqui uma martelada e está feito e por isso não valorizam o trabalho; não sabem o que implica uma simples martelada”, acrescenta Gonçalo.
Os mais velhos são os clientes habituais. “São aqueles que têm gosto em manter os móveis que os têm acompanhado ao longo da vida”, explicam os restauradores. Mas a ligação emocional não é o único fator que motiva o recurso ao restauro. A herança de móveis com materiais de maior qualidade também leva as pessoas a mais velhas preservá-los. Além disso, a manufatura e a própria forma de trabalhar o móvel no restauro é-lhes mais familiar do que a atual industrialização em massa do setor.
A desmistificação do “antigo”
Além de particulares, os restauradores deslocam-se para trabalhar com várias entidades do Estado. Desde a Provedoria da Justiça ao Palácio da Pena, desde o Palácio da Ajuda ao Palácio de Monserrate.
É nestes sítios que têm a oportunidade de trabalhar com móveis “antigos”, que remontam até ao século XV. A época dos móveis é identificada “através do estilo, da madeira, das colas utilizadas, da construção do próprio móvel, dos malhetes, dos encaixes”.

O conceito de “antigo” é negligenciado, sobretudo, quando se resguarda no valor sentimental que as pessoas atribuem a “peças que não são assim tão antigas nem tão boas”. “Todos os móveis com menos de cem anos já são móveis modernos”, diz Gonçalo. São industriais e, por isso, feitos de materiais “pouco nobres”, o que complica o processo de restauro e aumenta o preço.
À semelhança de outras matérias-primas, como o marfim, a comercialização das madeiras mais nobres tem sido proibida ao longo do tempo, como a do pau santo “que até cheira a chocolate”. Mas, no Armazém de Restauro, a reciclagem de peças antigas já incompletas, feitas dessas madeiras nobres, é usada para “desfiar” e usar no restauro de outros móveis, como está a acontecer com uma cama construída com pau santo, de uma casa do Marquês de Pombal.
A sustentabilidade na arte do restauro de móveis
Na opinião de Gonçalo, se as pessoas investissem mais no restauro de móveis, a qualidade seria uma mais-valia e a durabilidade uma solução sustentável. “Se o móvel da tua avó dura até agora quer dizer que é um bom móvel”, afirma o restaurador.
Hoje, a compra de móveis banalizou-se. “Não nos podemos esquecer que até há muito pouco tempo, até há 30 ou 40 anos, as pessoas pagavam os móveis a prestações”, lembra. Mas a sua qualidade degradou-se – fenómeno que se verifica também no imobiliário urbano.
“Nós temos prédios que são mandados abaixo com madeiras excelentes”, lamenta Gonçalo, e que são reconstruídos com madeiras novas de má qualidade.
Quando a arte do restauro já lhe comandava o pulso, Marta Carneiro começou a questionar-se sobre a construção e arquitetura urbana. Para a restauradora, a mentalidade de “mandar abaixo porque é velho” não funciona.


A solução passa, na sua opinião, pela aposta na reabilitação urbana com a integração de competências de restauro de madeiras. E a reciclagem de materiais e a conservação das madeiras nobres, ainda em uso nas infraestruturas, fazem parte de um plano sustentável de ordenamento e planificação urbanos.
Naquilo em que conseguem ter mão, os funcionários do Armazém resgatam do lixo móveis de qualidade para poder restaurar e vender ou reutilizar em casa. “A minha casa é feita de lixo, com todo o orgulho”, comenta Gonçalo.
No Armazém de Restauro nunca há silêncio, do rádio às máquinas do trabalho e às patas do Pião a passear pela oficina. Os móveis dispostos de todas as maneiras e as ferramentas alinhadas onde dão jeito denunciam a rotina de quem não tem horários ou rendimentos fixos. Mas que, por paixão ao seu trabalho, dançam com aventais salpicados e passam o dia com cola, tinta e farpas nos dedos.
* Diana Neves cresceu em Pombal e veio para Lisboa em 2019. Demorou a apaixonar-se pela cidade barulhenta e confusa que hoje considera sua e que fez dela uma ativista climática. A cultura, o sol lisboeta e os miradouros conquistaram-na. Foi estagiária n’A Mensagem para poder fazer aquilo que a trouxe cá: jornalismo. Este artigo foi editado por Catarina Pires.

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