Apontado para o Hotel Mundial, o Homem-Pombo, de Superlinox, tem na mira o mundo que calcorreia a praça do Martim Moniz.
É difícil conceber um sítio melhor para este pouso, sendo que aqui mora o epicentro das maiores discussões e da menor ação. Seria paradoxal se não fosse essa a natureza dos lugares dos sem-nome, dos Zés que não são alguém. Onde os sem-terra de muitas terras se congregam. E os sem-teto também.

Na mão estendida e nos olhos que choram, entoa um único pedido: “dar um bacalhau”. É assim que o autor da obra traduz o gesto com uma expressão bem portuguesa – e de difícil tradução. Mas que significa muito mais, se nos aproximarmos para olhar a escultura de perto.
“Caril indiano” é o nome que alguém se lembrou de dar à cor que o tinge. O nome até pode aludir aos povos orientais que ali convivem. Afinal, não há cores inocentes, especialmente se tiverem nome aromático. É sabido ainda que o amarelo é uma cor utilizada para estimular a fome, logo um interessante pretexto monocromático para falar das barrigas vazias que roncam pela cidade.

Estamos perante um homem-ave, que não chegou a ter asas – nem para voar nem para singrar. E não é uma ave qualquer, é o Pombo. Se esta espécie agora triunfa em grandes cidades pelo mundo, deve-o ao serviço de grande importância que nos prestou no passado. No entanto, substituída a sua utilidade de entregar cartas, já nem pássaro é: passou a “rato com asas”.
A priori, também não deveriam existir homens afastados de uma vivência humanizada, cuja existência não tivesse valor. Ou que não fossem úteis o suficiente para merecerem ser olhados e as suas mãos apertadas. Mas existirão, enquanto o olhar discriminador e defeituoso, de quem olha e finge não ver, for convocado.
É assim, e por isso, que pássaros e homens se aproximam neste “Homem-Pombo”. Um ser da rua e do chão que, pela sua condição, não chega a ser homem nem ave.
Não surpreenderá, então, ver que o Homem-Pombo, de toda a imensidão da praça do Martim Moniz, tenha pousado no que já foi uma fonte donde brotou água. A secura que ali se verifica, da nossa responsabilidade, é metafísica. Tanto é pela água que deixa de cair e correr, como das emoções e empatia pelo próximo que deixámos secar.
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Superlinox, por fim, sobre a obra, escreveu e concluiu: “Se calhar devíamos dar o nosso passou-bem ao homem! Lá porque a fonte está cada vez mais suja e seca, não quer dizer que também tenhamos de estar. Afinal, não é tudo isto responsabilidade nossa?”
Vogando, numa fonte seca, ali ficará a escultura a pedir, enquanto a rua permitir ali morar e a água não regressar.
*Nota: A figura do homem pombo caiu no dia 22 de julho de 2023.

Leonardo Rodrigues
Nascido na Madeira, o seu coração ficou por Lisboa. Estudou comunicação na FCSH – UNL e fotografia no Cenjor. Depois de muitos ofícios, é a contar histórias que se sente bem. Acha que não existem histórias pequenas, anseiam é por ser bem contadas. Quando não está a escrever, é aprendiz de jardineiro. @leonismos no Twitter.

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