À beira dos cinquenta, começamos aos poucos a dar mais tempo ao tempo e a olhar com saudade para as pessoas e os sítios que nos ajudaram a ser quem somos – e que, por falência ou falecimento, passaram apenas a habitar as nossas memórias. Vem esta introdução e esta conversa a propósito do recente encerramento de uma geladaria histórica em Lisboa: a Pindô. 

Não é que tenha ficado surpreendido ou chocado. Situada numa avenida de passagem à entrada de Lisboa, a das Forças Armadas, ideal para testar a qualidade dos travões mas talvez, e por isso mesmo, menos aprazível para comer gelados, a Pindô parecia viver uma longa agonia há vários anos. Na verdade, até à semana passada, sempre que por lá passava, mais de carro do que a pé, ficava sempre surpreendido por ainda manter a porta aberta, suspeito que literalmente ligada às máquinas e congelada no tempo. 

Para ser sincero, nunca fui fã. Se lá fui duas ou três vezes em toda a minha vida, devo estar a exagerar. Da mesma forma que uns são sportinguistas e outros benfiquistas, e comparando o esférico do relvado às bolas dos cones de bolacha, sempre fui um adepto declarado da Veneziana da avenida de Berna – e, mais tarde, mas menos, das suas congéneres nas Amoreiras e nos Restauradores. E fui um visitante esporádico da Surf, na Praça de Londres e dos seus icónicos bancos em forma de gelado. 

Quando penso em locais mágicos da minha infância, sítios onde fui particularmente feliz, a Veneziana é um deles. Entrar por aquela passagem meio escondida num dos primeiros prédios da avenida de Berna, logo a seguir à avenida da República, que dava acesso a um bucólico pátio de bancos corridos, escadas de emergência metálicas, uma frondosa árvore e uma casinha onde habitava a fábrica de gelados… era como passar os portões da fábrica do Willy Wonka com o meu bilhete dourado. 

Habitualmente na companhia da minha mãe e das minhas duas irmãs, e por vezes da minha avó – uma mulher sofisticada e de humor fino com quem morávamos desde a separação dos meus pais – fui um verdadeiro habitué de fim de semana da agora ‘La Fabbrica’, até aos meus sete anos. Estávamos no final dos anos setenta. Na altura, um Cessna famoso ainda não tinha caído em Camarate, quase todos os homens usavam bigode e ainda se via uma ou outra varina a vender peixe mesmo nas Avenidas Novas. 

Ilustração: Carla Julião

Éramos quase sempre recebidos por uma senhora de largo sorriso e bata branca, olhos muito azuis e um português com uns laivos de italiano. Creio que era filha de um dos fundadores e cheguei a vê-la anos mais tarde nas duas lojas que chegaram a abrir nos anos da CEE, quando a mítica fábrica já não passava de fotografias nas paredes. 

Mas voltemos aos gelados: lembro-me como eram sedosos e muito saborosos. E o meu sabor preferido era (e é) o limão. Aliás, o limão da Veneziana é, desde aí, o meu referencial para o que deve ser um bom gelado em qualquer sítio do mundo. Se não conseguirmos reproduzir um “simples” sabor a limão, como será possível imaginar a confeção da mítica cassata de vários sabores? 

Hoje, a quase nonagenária Veneziana, idealizada pelos primos Giovanni e Luigi, em 1936 (uma espécie de Mário e Luigi dos anos 30 do século passado), estão na Av. Filipa de Vilhena e nos Restauradores.

Embora num outro espaço e talvez num outro tempo… (Numa breve pesquisa online acabo de perceber que as pizzarias Da Beppi, das quais tenho sido um esporádico visitante ao longo dos últimos trinta anos, também são dos mesmos proprietários). 

Na rua de Dona Filipa de Vilhena, por trás da Casa da Moeda, costumo passar nas minhas caminhadas matinais, mas ainda não consegui lá entrar. Com quase meio século de idade, fico sempre na dúvida: devemos voltar aos lugares onde fomos felizes? 

E se estes já não existem tal como os conhecemos, como explicá-los e passar o testemunho à geração Tik Tok e Roblox?

No meu caso particular, sei que já vou tarde. Freguês de Alvalade há treze anos, a minha prole mantém o limão no cone, mas já se converteu à Conchanata da Avenida da Igreja.

O bilhete dourado pode ser igual por fora, mas a memória que o alimenta é outra.


*Pedro Salazar nasceu na freguesia de Arroios a quatro meses do 25 de abril, mas já viveu um pouco por toda a cidade (Avenidas Novas, Santa Catarina, Almirante Reis, Santo António, Campo de Ourique e, desde 2010, em Alvalade). Licenciado em Economia pelo ISEG, foi produtor de espetáculos, jornalista e é, há mais de vinte anos, consultor de comunicação. Já viveu fora de Portugal, em Estocolmo e em Ljubljana, mas é em Lisboa que se sente em casa.


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