Ele sempre soube ser Farid. Desse nome lembrava-se, aprendeu a ouvir chamarem-no assim. O que Farid não sabia, até há poucos anos e agora com 26, era o apelido dele. Neste nome de cinco letras, o jovem afegão encontrava toda a identidade que achava necessária alguém ter. Afinal, era neste nome que cabia também a única memória deixada pelos pais, um dia decididos a fugir da guerra do Afeganistão, mas que deixaram para trás o filho recém-nascido, para o salvar.

Foi apenas com este nome que, aos nove anos, atravessou do Afeganistão até à Turquia, a pé, durante dois anos, acompanhado por um grupo de 200 pessoas, nenhuma delas conhecida. Todas elas refugiadas, em busca da paz.

Cada passo em frente parecia estar mais perto de um lugar onde as pessoas têm mais do que um nome, onde Farid não seria só Farid. Um dia, em Istambul, isso concretizou-se e a identidade do jovem Farid aumentou em letras. Chegado à cidade turca, ele e um tradutor do centro de refugiados resolvem dar-lhe finalmente um apelido: seria Farid Walizadeh, que significaria “amigo de Deus”. “Depois do que passei, nas montanhas e tudo, achámos que tinha de ser algo assim.”

E foi com apelido de “amigo de Deus” que entrou em Portugal, com 15 anos, em 2012. Foi como Walizadeh que se tornou um pugilista em Lisboa, com as primeiras grandes batalhas travadas num pequeno ringue num bairro de Campo de Ourique, a Quinta do Loureiro, na Academia de boxe Paulo Seco.

Foto: Inês Leote

Este ano, Farid Walizadeh é um dos cinco homens e mulheres a entrar na primeira equipa europeia de refugiados do Comité Olímpico e vai competir nos Jogos Europeus, em Cracóvia, Polónia, já no final do mês de junho, treinado por Paulo Seco, o homem cuja nascido no Casal Vistoso e que encontrou no boxe a fuga ao bullying e à vida na rua.

Será o único com morada em Portugal a competir. E sabe que, a partir daqui, está a um passo do seu sonho: ser qualificado para os Jogos Olímpicos de 2024.

Não conhecia o boxe, o nome dos movimentos que o faz hoje atingir um saco com luvas, as regras do ringue, até há dez anos, já chegado a Portugal. Tinha apenas o que o kung-fu e o taekwondo que praticou na Turquia lhe deixaram nas mãos. Hoje, é na academia de boxe que tem a família e os amigos. E, no papel de pugilista, uma terapia.

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A travessia: 200 pessoas em fila, de Puli Khumri a Istambul

No Afeganistão, a escola primária também era escola, mas as interrupções eram muitas, causadas pelo perigo que se vivia nas ruas, onde as bombas e conflitos armados faziam morada.

“Uns dias, não havia escola porque havia ataques, avisavam sobre os tanques a passar na rua, para não sairmos de casa. Crescemos dentro da guerra e tornou-se uma coisa normal. E é a pior coisa na vida: quando aceitas uma coisa destas.”

Havia dias em que abrir a porta de casa era ver uma paisagem nova lá fora, tantas vezes destruída. Farid viu a escola em Puli Khumri (norte do país) explodir, tanques a bombardear. “Sempre pareceu muito fácil explodir alguma cena. Construir coisas novas é que sempre foi complicado.” Por isso é que sonhou para ele mesmo que, se um dia tivesse oportunidade, iria ser arquiteto, desenhar “casas e outras coisas giras no mundo”. Lisboa deixou-o muito perto disso: está hoje a formar-se em arquitetura na Universidade Lusófona.

Foi daquele cenário de guerra que os pais de Farid fugiram em 1998, obrigados a deixar o filho de apenas um ano para trás. É que o caminho seria difícil, a travessia com fama de perigosa ainda mais perigosa com uma criança ao colo: era difícil evitar as montanhas do norte do Afeganistão, onde as temperaturas podem atingir os 40 graus negativos e as tempestades de neve fazem frente à vida dos que por lá arriscam passar. O casal era de etnia Hazara, perseguida há anos no país.

Farid ficou ao encargo de uma amiga da família, quem ele tomou como mãe adotiva. Mas, aos nove anos, mais uma perda: a cuidadora morre de tuberculose e, rejeitado pelo tio que vendeu a única casa onde ele morava, o pequeno rapaz foi enviado por ele numa travessia difícil com um grupo de 200 pessoas. “Lembro-me muito bem daquele dia e como ele me enganou”, conta.

Não sabia qual era o destino, sabia apenas que a pequena mochila que levava às costas, com duas garrafas dentro e os pacotes “de bolachas”, poderiam servir de alguma coisa num futuro que nem ele adivinhava se teria.

Ilustração criada a partir de inteligência artificial

Depois, sim, começaram as perguntas e o curioso Farid descobriu que este grupo, que caminharia em fila por montanhas e desertos, durante dois anos, tinha como destino final Istambul, para aí tentar atravessar a barco para a Grécia.

Ele estava a fazer os trilhos perigosos de que os pais o quiseram salvar uns anos antes.

O grupo passou o Afeganistão, Paquistão, o Irão e, finalmente, a Turquia, com paragens pelo meio. “Havia sítios em que ficávamos uns meses, até dar para andar outra vez. Mas vivíamos como sem-abrigo.” Comiam o que as aldeias por onde passavam permitiam, o que se arrancava das árvores (tantas vezes sem saber o que era) e aquelas bolachas que pareciam sempre uma grande refeição. Diz que era a única criança ali e, por isso, de estômago fácil – o que o terá salvado naqueles dias em que a fome chegou mesmo, porque a comida e a água acabaram.

Chegada a Istambul: as seis vezes em que a morte bateu à porta

Os pés preparavam-se finalmente para descansar da travessia, “90% dela a pé”, e Farid já somava 11 anos de vida quando chegaram a Istambul, em 2008.

Alguns daqueles 200 ficaram pelo caminho, quando encontravam a serenidade num outro destino. Mas os que sobraram da caminhada sabiam que não era Istambul onde queriam ficar: o próximo passo seria a Grécia, onde chegaram de barco e onde a morte bateria seis vezes à porta de Farid.

Ilustração criada a partir de inteligência artificial

“Eram aqueles barcos roubados, fraquíssimos. Se calhar, naquilo andam normalmente três pessoas sentadas, a beber uma cervejinha, e nós éramos 50 pessoas.”

Há um rio em Puli Khumri, onde Farid nasceu, que lhe conheceu a rebeldia toda. Conta como, não raras vezes, ele e os colegas fugiam da escola através daquele rio. Nadar era como andar. Ele só não sabia como a habilidade de manter-se à tona o salvaria seis vezes, numa viagem trágica entre Istambul e Grécia.

Homem a colocar a rede de pesca ao longo do rio em Puli Khumri, Afeganistão. Foto: Arquivo da Universidade de Wisconsin

“Não é assim tão normal haver água no sítio onde estas pessoas moravam, então, não sabiam nadar. Muitas, até do pânico morriam. Outros, afundaram-se mesmo. Íamos 50 num barco e depois a polícia só trazia cinco para trás. O resto foi com a água.”

Farid nunca chegou à Grécia.

Foi detido pelas autoridades turcas e ficou à guarda de um centro de refugiados em Istambul. Um lugar que está pensado para ser apenas de passagem, onde num quarto há várias camas e nada mais à volta, para que a vida seja vista como apenas uma noite bem dormida antes de um grande amanhã. E de onde ele tentou fugir várias vezes. “Eu e toda a gente”, adianta. “Pensava em fugir e fugíamos. Alguns chegavam a um lado,  mandavam mensagens no Facebook, mas outros já não chegavam, já sabíamos que estavam mortos. E ouvíamos nas notícias: ‘três pessoas morreram no mar Mediterrâneo hoje’. Eram eles.”

Era por isso que Farid preferia idealizar a fuga sempre sozinho e não fazer amigos. “É que quando vês uma pessoa de quem gostas a morrer custa mais do que se for uma pessoa que não conheces.”

A carta de Portugal

“Chegaram duas cartas.” Em 2012 e cada uma com Farid Walizadeh como destinatário. Só os remetentes mudavam: num envelope, lia-se “Estados Unidos da América”, e num outro lia-se “Portugal”. Portugal que era, na sua cabeça, apenas o lugar de onde Cristiano Ronaldo tinha saltado para o mundo. Já os EUA, esses associava à guerra, a um país que marca presença com tanques. Ambos propunham acolhê-lo como refugiado.

Mas só o país de Cristiano Ronaldo é que ele sentia que poderia ser realmente casa. Pelo menos, por lá, guerra não parecia assunto.

Ilustração criada a partir de inteligência artificial

Foi um Natal tardio. “Cheguei a Portugal dia 28 de dezembro de 2012”, com um inverno frio apenas relativo para as noites ao relento que já passou, confessa.

Ganhou abrigo na Casa de Acolhimento para Crianças Refugiadas (CACR) e, quando fez 18 anos, já um adulto, alugou uma casa com o apoio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

Trabalhou na hotelaria e restauração, para poder chegar ao curso de arquitetura que hoje frequenta. Aquele menino que sonhou ver o país dele a construir de novo no lugar onde a guerra fez vazio está agora a aprender a desenhar outras paredes.

Lisboa deu-lhe isso, mas não só. Nesta cidade, Farid reencontrou-se com a família que perdeu quando tinha apenas um ano.

Chegado a Portugal, recorreu à Cruz Vermelha para que o ajudassem a seguir os passos da mãe e do pai. A investigação acabou bem sucedida, Farid ouviu a mãe falar do outro lado, soube que já não tinha pai, mas que tinha outros muitos irmãos, o mais novo com 18 anos. E trouxe-os para junto dele, há cinco anos. “Estamos a conhecer-nos”, sem falar muito no passado, confessa.

A mãe tem aulas de português, já está no nível intermédio da língua. Os irmãos trazem na bagagem contextos de literacia avançada que tornaram a integração mais fácil, conta. Tinham voltado ao Afeganistão, onde eram engenheiros, bancários e professores de filosofia. As irmãs estão a estudar relações internacionais e farmácia.

Ele, além de estudante de arquitetura, está a tentar pela segunda vez alcançar os jogos olímpicos. Vai este ano chegar o mais longe que já chegou, a partir de um pequeno ringue em Campo de Ourique.

Farid vai aos jogos europeus já em junho deste ano. Foto: Inês Leote

O soco que abraça o mundo

Pousar em terra foi bom, mas o passado ainda pesava em Farid. Pensou que um ginásio poderia ajudar a resolver e, por isso, quando ainda estava no centro de acolhimento para refugiados, pediu que lhe indicassem um. Começou ali, em Arroios, onde encontrou o boxe. E até ouvir falar de Paulo Seco, treinador de campeões, foi apenas um pequeno passo.

A história de refugiados não é nova na academia de Paulo, que o próprio já contou ter servido de teto a tantos dos recém-chegados. Mas este, Farid Walizadeh, o menino com nome de “amigo de Deus”, este “é diferente”, confessa o treinador.

É pela garra e pelo sentido de abnegação. Farid é reto nos princípios e nas regras que sabe que tem de seguir para atingir os objetivos. Como se todos os dias exigissem a mesma força que a travessia de dois anos entre o Afeganistão e a Turquia exigiram.

Foto: Inês Leote e Rita Ansone

Na hora de combater, o boxe chega a ser família, terapia e o solidificar de todos os princípios em que Farid acredita. Às vezes, diz ele que parece até “mágico” como “tu estás a sangrar do nariz e boca e depois consegues sentar à vontade à vontade com o teu adversário e dizer: ‘irmão, vamos tomar um café’. O boxe é um desporto tão lindo, que não tens essa raiva, não crias esse ódio. E por isso é que aqui também não há racismo”.

Paulo treinou-o tanto, que Farid tentou a qualificação para os jogos olímpicos no ano passado. Este ano, integra a equipa europeia olímpica de refugiados que o levará aos jogos europeus em Cracóvia, já no final do mês de junho, na categoria de Boxe -57 kg. E que o pode ajudar a qualificar, agora sim, para os olímpicos.

Nem as cores de Portugal nem as do Afeganistão servirão a bandeira com que Farid vai entrar em combate. Levará a do comité olímpico – é o protocolo. “Mas as bandeiras também já não me dizem nada. Eu nasci no Afeganistão, passei por muitos países, mas vi o melhor e o pior em todos.” Se fosse possível, a bandeira que levaria como representação do que considera ser realmente uma casa seria a de Lisboa.

“Para qualquer lado que eu vou, sempre fico com saudades de Lisboa. Sou mais lisboeta do que outra coisa. Onde crias a tua ligação e encontras a tua paz, a comunicação com pessoas, com o povo, crias amigos ou famílias, é aí que tornamos casa. E Lisboa é a minha casa.”

Esta reportagem faz parte da “Mensagem Rádio”, um programa que passa quinzenalmente na RDP África (do grupo RTP), à terça e sexta-feira, e em permanência: no site da Mensagem, em rdpafrica.rtp.pt e no Spotify.
Produção: Catarina Reis (Mensagem de Lisboa) e Isabel Leonor (RDP África)
Voz e edição: Catarina Reis


Catarina Reis

Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.

catarina.reis@amensagem.pt


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