Na entrada, o queijo gratinado da Laureta derrete na boca. Depois, um bacalhau à Brás como poucos, ou o cabrito de forno que encantou o presidente Marcelo ou ainda o extravagante arroz de lavagante na grelha. Tudo delicioso, mas uma vez no Via Graça, o que encherá a sua boca de água é outra antiga receita: a luz e a vista de Lisboa.
Não uma vista qualquer.
“Antes, tudo isto aqui era um miradouro”, anuncia o que parece mais do que óbvio João Bandeira, o dono do restaurante e da privilegiada vista, que numa panorâmica em 180 graus abarca o Mosteiro da Graça, o Castelo de São Jorge, o Tejo, o Cristo Rei, a 25 de Abril e tem praticamente toda a baixa pombalina aos seus pés.

João Bandeira, um antigo talhante, irmão de talhantes, filho de um talhante que, um dia, entrou pela porta do Via Graça para anotar as encomendas para o talho e saiu na manhã seguinte como proprietário do restaurante. “Era uma daquelas noites complicadas e o dono, João Machado Dias, muito nervoso, olhou para mim e disse: agora, és quem manda.”
Antes de sair porta fora, o antigo dono tirou a gravata do chefe de sala e enfiou-a no pescoço do talhante, como quem passa uma faixa presidencial ao sucessor. Teve tempo ainda de convocar a cozinha e os ajudantes de mesa e repetir em voz alta a sua decisão: “Tomem atenção, a partir de hoje o João é o dono do Via Graça!”.
De talhante a dono de restaurante num dia
O inacreditável desenlace carece de um contexto: há anos, o talhante, sempre que ia ao Via Graça anotar os pedidos para o talho, comentava com o antigo dono: “um dia, isso vai ser meu, um dia, isso vai ser meu”. Porém, nem o próprio João nem o mais famoso dos coaches motivacionais poderia esperar que o mantra recitado várias vezes acabaria por dar frutos.

“Imagine você: um dia, é o gajo de 27 anos que trabalha no talho e, no outro, há um restaurante para dar conta”, recorda-se João. A noite é tão marcante que mantém o dia e a data da viragem de talhante a patrão sempre fresca na memória: uma sexta-feira, 13 de dezembro de 2002. “Não sei como fiquei de pé, as minhas pernas tremiam.”
Com as pernas a abanarem, mas os pulsos sempre firmes, o talhante recém promovido a chefe cumpriu a primeira das noites à frente do Via Graça. No outro dia, voltou ao restaurante para entregar o envelope com o apurado da jornada anterior ao antigo dono. Até então, João pensava que não passava de “um ataque de fúria” do antigo dono, que voltaria atrás na ideia.
Mas o outro João, o Machado Dias, recusou o envelope e reforçou: “Acho que não me ouviste bem: isso tudo, a partir de agora, é teu!”
Então, só aí, ficha de João caiu.
João conta que, desde quando retornou da tropa, então com vinte anos, meteu na cabeça: “Um dia, hás de ter um restaurante, João”. Sem dinheiro para investir, porém, o sonho permaneceu sonho até meados do ano 2000, quando o amigo João Machado Dias, dono do Via Graça e de outras casas em Lisboa, anunciou que gostaria de repassar o estabelecimento.
O problema seguia o mesmo: a falta de dinheiro para investir. O dono do Via Graça chegou até a sondá-lo se não havia alguém que acreditasse nele para entrar de sócio no negócio, enquanto o João do Talho Bandeira, humilde e paciente, repetia, num tom misto de brincadeira e sugestão, apontando para o outro: “Tem sim, tem o senhor João Machado…”.
Dois anos depois, durante um “ataque de fúria”, o João Machado Dias do Via Graça sacou a gravata do chefe de mesa e decidiu confiar no João do Talho Bandeira. E foi assim que o talhante, de um dia para o outro, realizou o seu sonho, em grande estilo. “Sempre soube que teria um restaurante, mas não imaginava que iria começar no topo.”
Literalmente, no topo.
De um miradouro a um moderno restaurante
A vista do “topo” de Lisboa é mérito do antigo dono, João Machado Dias. Em 1988, quando decidiu abrir um restaurante na Graça, conseguiu convencer o presidente da Câmara de Lisboa à época a abrir mão do então Miradouro Café dos Pretos, para que ali fosse erguido o Via Graça – no princípio só com um piso no mesmo nível do miradouro e não os dois atuais.

Um miradouro com vista de cinco das sete colinas de Lisboa, para onde todas as mesas do Via Graça debruçam-se. Um privilégio, portanto, dos 40 clientes que a casa comporta, todos protegidos da chuva em dias hostis pelo imenso espelho de vidro, janelas que podem ser abertas nas tardes e noites amenas, para que a cidade também seja convidada à mesa.
Os janelões de vidro são fruto da grande reforma que o Via da Graça sofreu em 2020 e que, um ano e um milhão de euros de investidos depois, remodelou praticamente toda a casa. “Do restaurante anterior, ficou só a vista, o que não é pouca coisa”, diz João Bandeira, que teve de esperar duas décadas para que o seu sonho finalmente tivesse a sua cara.
O Via Graça de hoje surpreende pela decoração moderna e elegante, refletindo o mesmo cuidado com os detalhes dos pratos servidos à mesa. Para não concorrer com a luz de Lisboa, há um tom de sobriedade nas cores dos móveis e das paredes, pontualmente cortadas pelas vívidas pinceladas dos onze quadros do pintor Diogo Navarro que adornam as salas.

Se hoje pode dar-se ao luxo de grandes investimentos, os primeiros anos foram bem diferentes, de dinheiro curto e trabalho de sobra. “Eram dezasseis horas por dia, no mínimo”, recorda-se João, as poucas horas de sono tantas vezes tiradas no carro estacionado em frente às grandes superfícies, para ser um dos primeiros a aceder aos melhores produtos.
Naquele tempo, boa parte do faturamento era destinada a honrar a compra do Via da Graça ao antigo dono. “O João Machado tinha um coração enorme e montou uma operação de venda de pai para filho, dividindo o saldo a ser pago em oito anos”, explica João. Tempo em que o antigo talhante dedicou-se também a aprender o novo ofício.
As importantes lições aprendidas por João
Além de praticamente “herdar” o Via Graça, João recebeu ainda um par de “presentes” do antigo dono e amigo, dois experientes funcionários da casa, o chefe de sala Álvaro, e a cozinheira Ricardina Santos, que o ajudaram a aprender os meandros do novo ofício em áreas cruciais da restauração: o salão e a cozinha.

O experiente o chefe de sala ajudou-o ainda a perceber o métier de um chefe de sala que, diferente de um empregado de mesa que só anota os pedidos, consegue adivinhar, nas primeiras trocas de palavras com os clientes, exatamente o que sugerir da ementa e carta de vinhos.
Já Dona Ricardina revelou ao talhante os mistérios da cozinha.
“A dona Ricardina era uma mulher de tacho, cozinhava divinamente. Levou um tempo para que, pouco a pouco, confiassem em mim e, daí, um certo dia, começou a dizer: ‘senta aqui para aprender como se faz‘”, lembra.
João aceitou a convocação, sentou-se ao lado da experiente cozinheira e aprendeu como se faz. Durante dez anos, esteve enfiado na cozinha do Via Graça, à frente do forno e das panelas. “Até hoje, se for preciso, volto lá. Sei preparar todos os pratos da ementa”, garante o patrão, eternamente grato à dona Ricardina, agora reformada.
A cozinha hoje está nas mãos dos chefs Miguel e Vasco, que além de irmãos, são gémeos, o que garante um resultado de qualidade idêntica.
A confiança no trabalho da dupla permite a João dedicar-se à “diplomacia” de um restauranteur, passando as tardes e noites entre os convidados, ouvindo algumas histórias, contando outras, a memória de um (literalmente) delicioso dia em Lisboa, registada numa selfie ao lado do dono do restaurante, a maravilhosa vista da cidade como pano de fundo.
Uma foto que regista também o sorriso do antigo talhante que batalhou por um sonho, conseguiu realizá-lo e hoje recebe o mundo de braços abertos, com Lisboa aos seus pés.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt

O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição:
Ainda bem que revelam neste artigo a história do edifício do Via Graça, que desconhecia. De facto, é reveladora do modo como alguma classe política é exímia em alienar património público a troco sabe-se lá do quê. O mesmo presidente da CML que também esteve envolvido no desbaratar dos terrenos públicos envolventes ao Palácio da Ajuda. É o que se chama coerência.
Há aqui um pequeno lapso. O edifício do restaurante foi construído em 1988 e não 1998. O presidente à altura era Krus Abecassis, um homem de muita acção mas que deixou um fardo pesado e sequelas que ainda hoje se sentem. Basta ver o impacto que deixaram no Martim Moniz os dois horrendos centros comerciais lá construídos nessa época. E foi também no ano de 1988 que ocorreu o incêndio do Chiado.
Obrigada!