Foto: Unsplash

É como se, finalmente, o rio Tejo se revelasse por inteiro num livro. Para contar a sua história, “temos de recuar ao fim do último período glaciar, há cerca de 80 milhões de anos”. É aqui que encontramos “o registo do aparecimento do estuário do Tejo”, o lugar onde o rio e o mar se cruzam. Um estuário que é considerado a mais complexa estrutura estudada pela arqueologia pré-histórica.

Capa do livro de Maria José Costa

Assim conta a obra Estuário do Tejo, onde o rio encontra o mar, escrita por Maria José Costa, que decidiu descortinar milénios e milénios de História de um rio que marca a cidade de Lisboa.

A autora leva anos de experiência para nos dizer com certeza que o estuário do Tejo terá começado “na época em que o nível do mar submergiu a zona baixa do vale do rio e integrou o estuário do rio Sado até há dois milhões de anos”. É professora catedrática reformada da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, investigadora do MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, e uma das 100 cientistas homenageadas pelo Ciência Viva no Dia da Mulher em 2017 e com uma Medalha de Mérito da Ciência recebida em 2022.

A autora Maria José Costa. Foto: DR

Com 80 quilómetros de extensão e uma superfície de 320 quilómetros quadrados – desde o limite a montante em Muge até a jusante na barra de São Julião e Bugio – o estuário do Tejo é uma zona de transição biogeográfica, com floras e faunas de climas mais quentes (Atlântico Subtropical) e de zonas relativamente mais frias (Atlântico temperado).

E, ao longo desta imensa extensão de água, podemos dizer que há tesouros naturais escondidos. É que “é no complexo mesolítico de Muge, o mais intrincado da Europa, que se encontram os concheiros de Muge”. Os concheiros são estruturas “constituídas por grande acumulação de conchas datadas entre 10 mil anos (Neolítico) e cinco mil anos antes de Cristo”. E escreve a autora que “remetem às últimas sociedades de caçadores recolectores do centro e sul de Portugal e da Península Ibérica”.

Mas o que Maria José Costa desvenda também é que o nosso Tejo é um laboratório natural para o estudo de uma das maiores ameaças globais: as alterações climáticas.

No complexo mesolítico de Muge. Foto: CM Salvaterra de Magos

Um laboratório natural para estudar as alterações climáticas

Sabemos que, aqui, no Estuário do Tejo, “a variação das marés ocorre em períodos de 12 horas, com tempo de residência da água doce de 15 dias”. E que “a temperatura oscila entre 8 e 26 graus Celsius e a salinidade é muito variável”. Aliás, “graças a isto é que depende a distribuição da flora e fauna, no jogo das marés que tem um poder depurador”, especifica a autora.

Mas porque importa sabermos isto?

Maria José Costa explica que, num ciclo de maré, a água doce que entra no estuário sai com uma salinidade próxima da do mar, porque se misturou com grandes quantidades de água salgada e esta mistura arrasta consigo os poluentes. E, com esta dinâmica, há também a renovação do oxigénio dissolvido na água do Estuário, graças ao arejamento atmosférico e à mistura com águas bem oxigenadas de origem marinha e fluvial. Os nutrientes variados e a presença de clorofila (resultante da ação das plantas aquáticas) garantem valores de boa qualidade da água, bem como os sedimentos em suspensão. E é na matéria particulada fina que viajam absorvidos os contaminantes orgânicos e os metais pesados.

“As ervas marinhas, plantas rasteiras nas zonas estuarinas e costeiras, asseguram o sequestro de carbono. Por exemplo, as sebas e prados na praia do Samouco sequestram o equivalente às emissões de oito automóveis durante um ano, sendo o mais produtivo ecossistema do planeta. O problema é que são normalmente destruídas pela atividade humana apesar de serem protegidas pela Diretiva Habitats”, conta a investigadora. 

Outras áreas importantes são os sapais – zonas húmidas salgadas que se estendem por cerca de 200 hectares ocupados por vegetação tolerante à salinidade, como a morraça, a salicórnia etc. São os principais produtores primários do Estuário – produção anual de biomassa estimada em 17 790 toneladas por ano.

Também as salinas – uma indústria que remonta ao século III – são de suma importância e chegaram a ocupar mais de mil hectares em laboração até meados do século XX. Hoje, existe apenas uma: as Salinas do Samouco, com 56 salinas centenárias, ainda a produzir de forma artesanal cerca de 120 toneladas de sal grosso por ano e 1 tonelada de flor de sal.

Porque estão as águas do Estuário a melhorar

Com a criação das Estações de Tratamento de Águas Residuais (ETARS), Tejo ficou livre das águas residuais, mas ainda assim a comunidade piscícola só recuperou após os 13 primeiros anos da instalação das ETARS. “Só em finais dos anos 90, notou-se a melhoria da qualidade da água graças ao desmantelamento de certas unidades industriais, à despoluição do Trancão e à reabilitação zona oriental com o advento da Expo 98. Houve também uma maior sensibilização ambiental por parte da população, das autarquias, das próprias regras da União Europeia”, enumera Maria José Costa.

As águas do Estuário do Tejo estão a melhorar. Foto: Maria Pernadas

À lista, poderíamos juntar a monitorização dos efluentes durante anos, um trabalho desenvolvido em conjunto pelas Câmaras Municipais de Lisboa e de Almada que tem garantido a qualidade ecológica da água do Estuário, proporcionando a reação das comunidades de plantas e animais (moluscos, peixes e aves) graças à descontaminação. 

“Apesar de a qualidade da água do Estuário ser hoje considerada muito boa, ainda há preocupações relevantes com poluentes do género TBT (tribultilestanho), alguns metais pesados, arsénio, organoclorados, azoto e fósforo”, assinala a cientista.

A dinâmica da vida estuarina 

“Há que considerar também a sobrepesca, a destruição de habitats, a gestão das barragens e o efeito das alterações climáticas que já se fazem sentir na temperatura da água que aumentou nos últimos 20 anos, causando o desaparecimento de certos peixes de águas frias e o surgimento de novas espécies de águas mais quentes e espécies invasoras como o caranguejo chinês e a ameijoa japonesa”, relata a autora e investigadora.

Até os golfinhos regressaram ao Tejo, ultimamente, devido à abundância de alimentos.

Ainda assim, o estuário conta com muita vida entre as espécies de peixes residentes (biqueirão, cabozes, cavalos-marinhos, charroco e corvina-legítima) e as espécies que utilizam o estuário como viveiro (robalo, linguado-legítimo, linguado do Senegal, sargos e afins, tainhas, sardinha, língua, peixe-rei, faneca, laibeque de cinco barbilhos, ruivo). 

O Estuário também é utilizado como local de reprodução, alimentação e passagem migratória de muitas espécies de aves, sendo uma zona húmida de importância internacional, de acordo com a Convenção de Ramsar (um tratado internacional assinado na cidade iraniana de Ramsar a 2 de Fevereiro de 1971 e que entrou em vigor em 1975).

O Estuário do Tejo é casa para muitas espécies de aves. Foto: DR

Os problemas atuais do estuário 

A apanha de ameijoa japonesa é um dos desafios no Estuário do Tejo, hoje em dia. Foto: DR

Mudanm-se os tempos, mudam-se os desafios. E, no Estuário do Tejo, são vários. “Os problemas que enfrenta hoje ainda são complexos. como a captura ilegal de meixão (enguia), de ameijoa japonesa e de corvina, além da navegação intensa que conduz ao surgimento de espécies exóticas e que obriga também a dragagens permanentes do leito do rio”, enumera Maria José Costa. 

Além disso, “sendo um ecossistema de interface entre o mar e o rio, o estuário depende de ambos e também da quantidade e qualidade do caudal de água doce que nele entra, ou seja, a qualidade da água a montante que vem da Espanha, o que caracteriza um dos principais problemas ambientais da atualidade.”

Mas se pudesse enunciar o mais importante dos desafios do Estuário do Tejo, a autora não tem dúvidas: “atualmente, é a manutenção dos habitats naturais para a fauna e flora e do corredor migratório de aves do Atlântico Norte”. “Importante também é o cuidado com a artificialização das margens do rio para não destruir estes habitats. Se a temperatura da água aumentar, temos de estar atentos ainda à provável entrada de espécies não indígenas tropicais, como o tubarão bicudo, um predador de topo”, assinala preocupada a autora e investigadora do MARE-Centro de Ciências do Mar e do Ambiente.


*Nysse Arruda é jornalista especializada em náutica, autora de diversos livros sobre regatas oceânicas internacionais, fundadora e curadora do Centro de Comunicação dos Oceanos-CCOceanos – a série de palestras livestream e presenciais a abordar os mais diversos temas relacionados com os oceanos, conectando os países de Língua Portuguesa e tornando Portugal um polo de partilha de informação atualizada sobre os oceanos.


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