Temo-nos tratado assim desde o início, como vizinhos. É assim que o cumprimentamos em cada newsletter, nos nossos eventos e até criamos um para estar mais perto de si: reuniões de vizinhos. Nestas reuniões ou à distância, temos tido a oportunidade de ler e ouvir o que contam a sua rua e o seu bairro. E que história tem você, vizinho/a, para nos contar sobre Lisboa.

Algumas deram reportagens na Mensagem, como esta sobre o mistério do Palácio do Areeiro, o mapa criado pela leitora Cristina para sabermos quantas árvores há na cidade e a história da galeria africana no bairro do Rego que puxa visitantes de todo o mundo a um lugar onde não se esperava ver turistas.

Esta semana, porque se celebram os vizinhos em todo o mundo, decidimos olhar para quem mora mesmo na porta ao lado e desafiá-los a contarem as suas histórias. Estes são os nossos vizinhos: Júlio, Joaquim, Luís Miguel, Yoann e Anastasia.


O pastor alpinista

Chefe de escoteiros, alpinista e pastor, com formação em primeiros socorros: Júlio Carlos Santos é um vizinho dos sonhos, para todas as horas.

Ainda não foi o caso, mas sei que, se um dia tiver um ‘passamento’, precisar de um conselho ou esquecer a porta trancada por dentro, ‘Seu Júlio’ estará por perto com as suas técnicas de reanimação, uma palavra de consolo ou para escalar os três andares do prédio, entrar pela varanda e desbloquear a entrada.

Foto: Líbia Florentino

O meu super-vizinho nasceu em Angola, na província de Cuanza Sul, junto a uma plantação de café e, certamente, deve ter algo de especial naquele grão que, adicionado ao leite materno, garantiu-lhe aos 62 anos a fisionomia e a energia de um jovem.

Pois o ‘Seu Júlio’ não para.

Sobrou um tempinho na agenda e lá vai o meu vizinho escalar a Serra da Estrela, o Gerês ou qualquer outra montanha, pico e cordilheira, seja sobre a rocha ou gelo, assim, fácil, fácil e sem medo, como quem come uma casquinha de baunilha.

Foto: arquivo pessoal

No sábado, ‘Seu Júlio’ conduz o rebanho na Igreja Adventista. O meu vizinho queria ser engenheiro, mas os desígnios de Deus foram mais fortes e terminou teólogo e pastor, a “engenharia do homem”, afirma, sabiamente, “muita mais complexa que a de um motor”.

O que não o impede de manter a fé nos homens e tentar reparar as engrenagens que não giram bem numa cabeça com tantos parafusos a menos.

Foto: Líbia Florentino

Domingo, oito da manhã, e lá está o meu vizinho paramentado de chefe de escoteiros, o laço amarelo e vermelho no pescoço, o símbolo da liderança do grupo de scout “Os Desbravadores”, o responsável pela segurança e treino dos escoteiros dos três aos 30 anos.

“O senhor sabe fazer fogo, ‘Seu Júlio’?”, pergunto, curioso.

“Sei sim”, responde, achando ele que fazer fogo assim do nada, com gravetos e cascalhos, é tão natural quanto o café que tira da máquina de expresso.

E tomo nota para o caso de um dia falhar o gás aqui em casa.

Quando me mudei para o prédio, não sabia a sorte que teria. Menos sorte teve o meu vizinho, que de mim só pode esperar essas mal tecladas linhas de gratidão, em contar com uma vizinhança com o coração de ouro e nervos de aço.

Parabéns, vizinho.

Foto: Líbia Florentino

Taxi-driver em Nova Iorque

Jack é Joaquim Calçada, a vida dele dava um filme e deu mesmo – já falamos disso aqui. Ergue um penteado à Elvis Presley e ocupa uma casa onde laços cor-de-rosa e sóis e girassóis bem amarelos marcam a fachada a que ninguém fica indiferente nas ruas de Alhandra, a 30 quilómetros de Lisboa, uma freguesia filha da mais conhecida Vila Franca de Xira.

É o vizinho sempre com estilo, que nos faz olhar por nós abaixo – umas vezes porque lhe invejamos a vestimenta, outras vezes pela simpatia para com os outros mesmo numa manhã mais rabugenta.

Durante vários meses, quando me mudei para Alhandra, o meu vizinho não era o Jack, era aquela casa da qual eu falava tanto e que até mostrava aos que nos vinham visitar – qual peça de museu numa vila que mais parece deitada ao abandono. No meio de tanta casa vazia, aquela tem toda a dedicação que as outras não tiveram.

Foto: Rita Ansone

Um dia, vi em cartazes espalhados por Lisboa o filme dedicado a um tal de Jack que tinha sido taxista em Nova Iorque, o homem por trás do volante do carro que levou Muhammad Ali e a ex-primeira dama Jacqueline Kennedy.

Era português. O que eu não sabia ainda é que Jack morava em Alhandra, neste sítio que não me parecia digno de estrelas de cinema.

Combinamos uma conversa, ele não se importou de me receber em casa e… enviou-me a morada por WhatsApp. Confirmei a rua e o número da porta várias vezes. Não podia ser. Ou será que era?

Estaria eu finalmente a conhecer o rosto que guarda a casa que faz de Alhandra museu?

Já não era só porque tinham feito um filme biográfico, sobre a vida dele: eu queria conhecer o Joaquim que todos os dias entra numa porta com laços cor-de-rosa e sóis e girassóis bem amarelos à volta, aquela casa a caminho do mercado da vila que rouba sempre a atenção à lista de compras que estou a passar a limpo na minha cabeça. “Tomates, feijão-verde, rabanetes… Quem viverá lá dentro?”

Foto: Rita Ansone

“Não sei se tens horas de gravação suficientes”, disse-me quando nos encontrámos. Quase não tivemos.

À porta, outra vizinha alertava: “Cuidado, que ele pode ficar horas a conversar”. Que mal viria ao mundo saber o menino que Joaquim foi, nascido em Alhandra, filho de pais analfabetos, trabalhadores precários nas fábricas da zona e, naquele tempo, sem um único brinquedo? A criança que foi encontrava-os na rua, latas de conserva para fazer pequenos carros a trilhar a terra batida ou de paus, quando a brincadeira era mais séria e deles nasciam pistolas faz-de-conta.

Mas a infância foi curta. Com 13 anos, o pai põe-no a trabalhar na antiga fábrica Cimianto, em Alhandra. Ali, arregaçou as mangas para, durante um ano, dar seguimento a telhas de fibrocimento, um material à base de amianto – que agora todos sabem ter propriedades cancerígenas. Até que, também através do pai, chega às OGMA – Indústria Aeronáutica de Portugal, com apenas 14 anos. “Porque, em Portugal, havia só três possibilidades de evitar ir para a guerra colonial: ir para a pesca do bacalhau, ir [trabalhar] para o material de guerra ou ir para as oficinas gerais.”

Era ele e mais “48 moços”, crianças com idade para o serem apenas.

Depois de seis meses à experiência, foi encaminhado para um hangar onde se consertavam aviões da British Air Force e da U.S. Navy. Foi o primeiro contacto com estrangeirismos, sem imaginar que estrangeiro seria, um dia, para ele, o seu Portugal.

Terá sabido pelo dentista como a vida era boa nos EUA. Então, Joaquim aprendeu inglês com um amigo, na mesa de um café de Vila Franca de Xira, e lá foi. Em 1972, aterrou na cidade de Newark, no estado de Nova Jérsia, vizinha de Nova Iorque, com 300 dólares no bolso.

Tornou-se porteiro de condomínios, funcionário de limpeza, ajudante de mecânico e, depois, taxi-driver naqueles carros amarelos dos filmes, das cinco da tarde à meia noite, na cidade que nunca dorme.

Houve vezes em que trocou o amarelo do carro por limusines, onde levava corretores de bolsa para as suas vidas boémias, depois e antes do trabalho nos escritórios. Apesar dos vidros fumados, Joaquim diz ter-se habituado a ver de tudo lá atrás. “O que eu gostava daquilo. Cada dia era diferente.”

Foi o amor, ou o fracasso que ele pode ser, que o trouxeram a Portugal, de novo. Entretanto, reformou-se de quase tudo, menos do penteado.

Sempre que Joaquim passa, vemos Jack e aquele pedaço dos EUA, onde um dia todos os sonhos foram possíveis.


O guardador de chaves

Quando se muda de morada, muda-se de tudo, e a primeira mudança é a fechadura. Aquela chave que carregámos meses, quem sabe até mesmo anos, acaba devolvida e o nosso porta-chaves vê-se livre de um membro, só para ganhar um novo. Há dois meses, quando me mudei para a Encarnação, vi-me, pois, obrigada a acolher uma chave com um novo feitio: uma chave que, assim que duplicada, teimava em não rodar.

Foram umas quatro visitas para cá e para lá à loja das Chaves dos Olivais, mesmo atrás do meu novo prédio. 

Por trás do balcão, estava um senhor de olhos azulados, que ocupava os dias com aquele som metálico de quem raspa e torce chaves. “Devem estar a fazer alguma coisa mal”, disse-nos ele. O desfecho da saga da chave duplicada terminou com o senhor Luís Miguel a vir lá a casa, no mesmo dia em que o IKEA entregava a mobília que finalmente dava corpo a um apartamento vazio.

Foi assim que o conheci, o vizinho do bairro.

Foto: Ana da Cunha

A história da paixão de Luís Miguel pelas chaves começa aqui mesmo, na Encarnação, esse bairro construído durante o Estado Novo e que albergava uma grande população militar, como eram os seus pais. E aquilo de que ele bem se lembra é do irmão mais velho, Adriano, que muitas vezes o acompanha ao balcão desta loja de chaves, e que na década de 1970 mostrava-se já hábil na arte da marcenaria, que lhe transmitia.

“Em 1970, havia muita construção aqui no bairro, e eu e o meu irmão íamos às obras roubar madeiras e fazíamos as nossas casas, as nossas barracas, onde brincávamos”, recorda Luís Miguel. “Houve mesmo uma barraca do Adriano que a Câmara teve de mandar abaixo com um caterpillar!”.

São memórias que os unem ao bairro das primeiras brincadeiras com as tábuas e o chispar da madeira, e os unem aos dois também, aos irmãos que fizeram desse mesmo bairro palco de experimentação.

Com o tempo, a vida foi encontrando outras moradas para Adriano, que se mudou para Oeiras, numa altura em que trabalhava na área dos móveis. O irmão acabaria por juntar-se, naquele que foi um percurso que se tornou dos dois. Os móveis, as carpintarias, as fechaduras e, finalmente, a oportunidade de abrirem um espaço deles, no bairro que os vira crescer. Desde 2006 que fazem chaves nos Olivais, onde hoje moram os dois. 

Logo pela manhã, com a Encarnação a acordar, já há quem espere pela abertura desta loja, mas talvez não seja uma chave que queiram arranjar. Para muitos, será um ponto de passagem para se dar os “bons dias” e trocar dois dedos de conversa com os velhos vizinhos. Aqueles que eu conheci mal cheguei a uma nova casa, que hoje tem uma chave brilhante, cujo clique me permite aterrar nesse lugar a que chamo lar.


Os chefs franceses

Quando entro no restaurante, faltam dez minutos para as três, a hora é de fecho e acaba de sair o barbeiro que tem loja no fundo da rua. Fico a pensar que terá passado apenas para dizer “olá” – é também isso que o bom vizinho faz. As duas últimas mesas do almoço estão a terminar e Yoann e Anastasia já se preparam para fechar. Afinal, pode ser que, mesmo na Lisboa turistificada e gentrificada, ainda haja lugar para a vizinhança.

Estamos na freguesia de Santo António e é aqui que vive e trabalha este casal francês há três anos e meio.

Yoann e Anastasia na pequena cozinha do seu restaurante. Foto: Frederico Raposo

No meio do trânsito de pessoas esbaforidas desta rua íngreme, que liga a Praça da Alegria ao Príncipe Real, ainda há lugar aos bons dias entre vizinhos e à troca de dois dedos de conversa. Tenho vindo a testemunhá-lo e é isso mesmo que me diz o casal proprietário do restaurante.

“Conhecemos toda a gente aqui”, diz Anastasia.

Chegaram a ter data de abertura marcada para abril de 2020 – a altura precisa em que a pandemia nos trancou as portas. Na parede, fazem questão de manter o panfleto que desenharam com a data da abertura que nunca aconteceu – o dia das mentiras.

Com o azar a fechar-lhes a porta, tiveram de improvisar o início de uma forma não planeada: a vender refeições para fora. Não correu bem. “Os vizinhos não nos conheciam.” Foi só quando puderam abrir que as coisas começaram a funcionar. Foi na “última oportunidade”, conta Anastasia. E correu bem.

Hoje, é comum terem casa cheia ao almoço e ao jantar.

Foto: Frederico Raposo

Apesar de franceses, conheceram-se em Montreal, no Canadá. Yoann há muito que está acostumado à cozinha. O pai tem um restaurante em França e, por isso, cozinha desde os 20 anos. A proximidade de Anastasia à restauração não era a mesma: antes de se mudar para Lisboa e abrir o negócio com o namorado, era gestora de conta.

Mas, na primeira viagem a Lisboa, foi aqui que decidiram apostar tudo. Junto à Praça da Alegria, encontraram espaço para viver e trabalhar. Foi “um achado” num bairro que está “muito caro”, assume Yoann.

O chef faz o que gosta – “comida que é para partilhar” – e para os dois esta é a primeira experiência à frente do próprio espaço. De seis em seis meses, mudam a ementa de inspiração mediterrânica, acompanhando a sazonalidade dos ingredientes locais.

Entre hotéis, unidades de Alojamento Local e espaços de cowork para nómadas digitais (é assim mesmo que se lê na janela de um recém aberto espaço da rua) é pela rua do restaurante Instant Crunch que a procissão de turistas (e não só) sobe com esforço. Para chegar ao prometido Príncipe Real, há que ultrapassar a forte inclinação e duas assustadoras escadarias – é comum ouvir o lamento de turistas ainda antes do primeiro degrau.

E, numa rua onde a maioria das pessoas é turista – estas contas são minhas, de cabeça – Yoann e Anastasia alcançam o feito de metade da sua clientela ser lisboeta.

Por mim falo, a comida, caseira e generosa, faz-me voltar, mas também a vontade de me sentir próximo de vizinhos num bairro de poucas caras conhecidas.


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