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20 placas guardadas, empilhadas com cuidado numa sala da associação Batoto Yetu Portugal, em Caxias, Oeiras – que trabalha com crianças, jovens e adultos interessados na cultura africana.
Em cada uma das placas está um pouco dessa cultura e história na cidade de Lisboa: Igreja de São Domingos, Basílica de Nossa Senhora dos Mártires, Rua do Poço dos Negros, Campo das Cebolas, Praça do Rossio, Terreiro do Paço. As placas foram feitas de acordo com as raras fontes que permitem reconstituir a influência africana na cidade.
Com o tempo, começaram a surgir nomes nas ruas que relembram essa população esquecida: Rainha do Congo, Preta Constança, Poço dos Negros. Mas não chega. Foi por isso que a associação Batoto Yetu Portugal propôs espalhar 20 placas toponímicas a contar essa Lisboa Africana.
Estes são os lugares de presença africana na cidade – e onde hoje não há propriamente marcas visíveis. “São placas que refletem uma ligação profunda entre o lugar e os africanos, que ainda se mantém nos dias de hoje”, explica José Lino Neves, vice-presidente da Batoto Yetu Portugal. Mas continuarão esquecidos, enquanto as placas que os podiam revelar continuarem guardadas.
Desde 2020 que as placas estão prontas. E um busto de Pai Paulino, brasileiro defensor dos direitos dos negros, famoso caiador do Rossio da Lisboa oitocentista, mas também toureiro e uma presença regular nas procissões da cidade, que será colocado no Largo de São Domingos.
Nessa altura a Batoto Yetu Portugal conseguiu financiamento do programa BIP/ZIP da Câmara Municipal de Lisboa para este projeto e uniu esforços com a historiadora Isabel Castro Henriques, especialista em História de África, e com o Gabinete de Estudos Olisiponenses para avançar. Selecionaram-se os lugares mais relevantes e com mais informações e escreveram-se textos sobre a presença africana em cada um deles.
Mas a construção das placas acabou por ser mais cara do que o previsto e, por isso, neste momento estão paradas em Caxias. Faltam fundos para as colocar nas ruas da cidade.
A Batoto Yetu Portugal já tentou candidatar-se novamente a financiamento, mas a Câmara Municipal de Lisboa não financia duas vezes o mesmo projeto. A colocação de cada placa custa cerca de 300 euros, pelo que a associação precisa de angariar 6 mil euros no espaço de um mês, já que maio é o mês de África.
Neste momento, estão a aceitar doações de pessoas individuais, empresas, mecenas e fundações.
A falta de representatividade no espaço público
Quando andava na escola, Cátia Domingos, gestora de projetos no espaço de Marvila da Batoto Yetu Portugal, não sabia que havia uma outra História para se contar sobre os Descobrimentos. Nas aulas de História de Portugal, ouvia falar dos grandes navegadores que embarcaram em viagens e descobriram um mundo para além das fronteiras. Contavam-lhe que, graças a essas viagens, Lisboa transformara-se com as novas rotas de comércio e o cheiro a especiarias. Escrevera-se a História que ficou gravada nas páginas dos livros.
Mas Cátia sentia-se desconfortável, talvez até se mexesse na cadeira, quando se falava de escravatura. Basta olhar para a cor da sua pele para se perceber porquê. Anos mais tarde, viria a descobrir que aquela não era a única versão que existia da História. Havia muito mais para aprender sobre as suas raízes. “Hoje, sei que há outras perspetivas”, diz.

Sabe-o muito graças à Batoto Yetu Portugal que em 2014 começou a procurar nas danças consideradas portuguesas raízes africanas. É que, se os africanos não deixaram marcas visíveis na cidade, deixaram muito da sua cultura nas danças, nas procissões, na música, na gastronomia. Não foi portanto difícil encontrar o ritmo e o movimento africano… no fado.
O fado dançado abriu portas para a Batoto Yetu Portugal: “Fomos descobrindo mais informação sobre lugares e pessoas escravizadas africanas”, conta José Lino Neves. Foi aí que entraram em contacto pela primeira vez com a historiadora Isabel de Castro Henriques e, recorrendo a fontes históricas, desenterraram essa História da população africana na cidade de Lisboa. O resultado foi um roteiro pela cidade, sobre o qual Isabel de Castro Henriques escreveu, e a partir do qual a associação começou a fazer visitas guiadas.
Nesse roteiro, descobre-se quem é a mulher na base da estátua do Marquês de Sá da Bandeira que se encontra na praça D. Luís I, no Cais do Sodré.
É a “preta Fernanda”, de nome verdadeiro Andresa do Nascimento, mulher cabo-verdiana que levou uma vida boémia pela Lisboa do século XIX, ganhando influência entre os intelectuais.
Andresa – ou Fernanda -, que nunca foi escravizada, abriu bordéis na cidade, toureou na Praça de Algés e há quem diga ainda que terá sido a única mulher que não abandonou a sala quando Almada Negreiros leu o seu Ultimatum Futurista em 1917.

Na estátua, que não tem traços africanos, Andresa segura o filho ao colo com uma grilheta de ferro partido no tornozelo, símbolo do fim da escravatura, pelo qual Marquês de Sá da Bandeira tanto lutou.
Descobre-se também o porquê de ainda hoje o Largo de São Domingos ser ponto de encontro da população africana. “As pessoas pensam que não há História aí, mas há”, diz Isabel de Castro Henriques.
Afinal, é ali que fica a Igreja de São Domingos, onde se criou a Confraria da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que concedeu proteção e ajuda aos africanos durante anos.
Estas e outras histórias despertaram o interesse da população e sobretudo dos estrangeiros. Mas havia um pormenor que causava estranheza a quem percorria a cidade: o facto de não haver placas ou marcos que assinalassem estas histórias e heróis.
A História que não chegou aos livros
A ideia das placas e do busto surgiu aí. É que não basta contar a História a quem a quiser ouvir, é preciso assinalá-la. Nem os próprios africanos que cresceram nas ruas de Lisboa conhecem aquela que é, afinal, a sua História.
Era o caso do escultor Frank Ntaluma, membro da Batoto Yetu Portugal há vários anos, que não conhecia a figura do Pai Paulino até o esculpir.


Ficou a conhecê-lo melhor através da escultura de Bordalo Pinheiro. Mas Ntaluma não se quis ficar por essa representação. “O Bordalo Pinheiro criou uma imagem dele, eu segui-a um pouco, mas como artista e africano, fui pensando que o Pai Paulino não era só isso”, conta o escultor. “Era um indivíduo pensante”. E foi assim que ele o imaginou no seu atelier.
Como Ntaluma, José Lino Neves pouco sabia sobre a Lisboa africana antes destas aventuras: “Sabia que tinha havido escravatura em Lisboa, mas não tinha noção. Na escola não aprendemos nada disto”, afirma.
Ao longo da sua vida, ouvira o pai falar do Poço dos Negros, uma vala para onde se atiravam os cadáveres das pessoas escravas não batizadas na época manuelina, e do Dr. Sousa Martins, o médico, cientista e humanista mestiço representado numa estátua no Campo dos Mártires da Pátria. Pouco mais. Agora, conhece bem essa Lisboa que remete para as suas raízes cabo-verdianas e quer trazer o passado africano para o presente da cidade.

Com estas descobertas, Cátia Domingos já não sente o mesmo desconforto das aulas de História. “Na escola, aprendia-se tudo muito na ótica do descobridor”, diz. Algo que ainda não mudou completamente, como a própria Isabel de Castro Henriques reconhece, mas agora Cátia sabe que a História vai muito para além do que lhe foi ensinado na escola. “Houve influência positiva por parte da nossa comunidade para Portugal e isso traz-nos autoestima”.
Hoje, é possível para Cátia imaginar o bairro do Mocambo, essa “pequena aldeia, lugar de refúgio” criada em 1593, onde vivia a mão-de-obra africana da população mais abastada da cidade e por onde a rainha D. Amália I do Congo dava festas de arromba. Nas proximidades do Martim Moniz explode a folia das procissões, nas quais os africanos participavam com grande alegria.

Mas também consegue imaginar o Chafariz d’El Rei antes do Terramoto de 1755, esse lugar dividido entre brancos e negros, onde as águas de uns e de outros não se podiam tocar. Ou o Jardim Tropical de Belém, onde vive a memória da Exposição do Mundo Português de 1940, quando se reforçou a ideologia colonial ao reconstituir-se a vida das aldeias africanas, trazendo-se população das colónias para serem apresentadas ao público.
A Batoto Yetu Portugal não quer mais esquecer. Já se sente alguma mudança em relação ao passado, claro. Nos anos 1970 a 1990, “era muito difícil romper o silêncio quando se falava dos africanos”, diz Isabel de Castro Henriques.
E estas placas representam apenas uma pequena parte da história africana, mas são mais um passo em direção a essa mudança que já começou. Marcam uma cidade que recorda e que se orgulha dos seus heróis africanos.
Mas, acima de tudo, marcam uma cidade que não quer repetir os erros do passado.
As doações para a colocação das placas podem ser feitas diretamente para o IBAN da Batoto Yetu: PT50 0033 0000 00046237854 35;

Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt
Eu adoro história. Fiquei muito feliz por ler este pequeno grande trabalho, porque também adoro África onde vivi dos13 aos 37 anos. 1953 a 1977
Gostaria de receber mais informação sobre o assunto. Obrigada