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A herança do Dia do Pai, do jogo entre cotas e putos na escolinha de futebol, foi um joelho torcido e uns dias no estaleiro, a perna imobilizada, o joelho esfera ferida, uma ruga a rasgar a patela como um sorriso, o joelho um emoji de osso e cartilagem, a rir do cinquentão que tentou ser o super-homem do filho e saiu do relvado amparado, o corpo a sua própria kriptonita.
— Estás demasiado velho — anunciou o miúdo no alto dos seus oito anos, diante do pai sem capa e cabisbaixo, a lamber as feridas sentado à beira do campo, a conhecida honestidade sem maldade infantil, o meu carbono 14, um pai jurássico, um fóssil de calções e meias, um dinossÁlvaro.
Dois, três dias sentado diante da janela do computador, diante da janela do apartamento, a luz do ecrã e da primavera anunciam-se o escape das dores, numa improvisada cadeira de rodas a deslizar entre os cómodos da casa enquanto o incómodo na perna, tal visita desagradável, não decide partir. Foi daqui que ouvi a batida forte vinda do lado de fora.

Um páf! potente e surdo, o açoite ritmado que já ouvira antes, familiar aos ouvidos do antigo cronista desportivo. Mas não poderia ser, não em Alvalade, entre prédios, livrarias, bares, restaurantes, salões de madame e barbearias de indianos, vizinho ao sapateiro em risco de extinção e de mais uma casa de croissant, Lisboa onde se come mais croissant que em Paris.
Não, ali não seria possível. Mas era.
Deslizei as rodas da cadeira do escritório em direção à janela da sala e, do logradouro do prédio ao lado, surgiu com todo o seu esplendor a improvável tenista de Alvalade, a empregada do vizinho, a maid fardada dos filmes do Poirot, a farda branca não por acaso o dress code de Wimbledon e do duelo da tenista de Alvalade com o tapete pendurado no estendal.
Páf!
Lá se foi mais um backhand no tapete, a nuvem de poeira a encobri-la como a névoa de um sonho. A tenista de Alvalade, uma mulher loira, madura, a idade a conferir uns quilos a mais à polaca, à russa, à ucraniana. Claro que poderia ser uma portuguesa, poderia sim, mas se fosse não haveria essa crónica, sobre como um país deixa escapar o talento dos seus imigrantes.
Da janela indiscreta de um prédio em Alvalade, via a improvável tenista em seu duelo, não contra um adversário de carne e osso. O tapete no estendal um simbólico oponente da partida que a mulher loira e madura travava consigo mesma, com o seu próprio destino. A mulher que claramente havia nascido para as quadras e teve de ganhar a vida numa cozinha.
Páf!
O ouvido do cronista conhecia essa batida na relva do All England, no saibro de Roland Garros e, pensando melhor, também aqui em Alvalade. A improvável tenista uma conhecida, de outras primaveras, outros verões, que se recolhia no período chuvoso, pois o tapete persa da madame não pode ver chuva. Mas bastava o tempo voltar a ficar firme para recomeçar o seu grand slam.
Já a tinha visto em ação, mas só agora é que, como um James Stewart de Hitchcock, imobilizado na minha janela indiscreta, a verdade abriu-se para mim como as flores nos vasos no logradouro do prédio ao lado, regado pela tenista-empregada entre um game e outro travado com o tapete pendurado no estendal, um adversário duro de se bater, resistente, dos que nunca entregam o jogo.
E fiquei a ruminar que desperdício para Portugal não ter contado com aquele backhand a defender as suas cores. Apesar do peso dos anos, da lentidão do jogo de pernas, era possível adivinhar a agilidade da tenista de Alvalade em sua plenitude física, vigorosa, imbatível, a brilhar em Sidney, Roma, Londres e Paris.
Em vez disso, a tenista de Alvalade não troca sets com adversários num court, mas sets de pratos na mesa do patrão.
Não houve uma vivalma com a sensibilidade de perceber o verdadeiro talento da polaca – estou cada vez mais convencido ser uma polaca – como acontece com dezenas de milhares de outros imigrantes que chegam ao país com diplomas, experiências e potencial para fazer mais por Portugal do que entregar refeições pela aplicação, gerir uma mercearia ou enfiar a cabeça numa retrete.
Médicos brasileiros, professores de Bangladesh que saberiam lidar com as salas de aula cada vez mais frequentadas por alunos do sul da Ásia, matemáticos da Índia, físicos do Paquistão, químicos da Síria, filósofos do Marrocos, engenheiros da China, bailarinas da Ucrânia, uma infinidade de possibilidades.
A falta de sensibilidade em lidar com esse manancial desperdiçado não é um “privilégio” de Portugal, que fique claro, mas do europeu de uma forma geral. A questão é que ingleses, alemães e franceses, com riqueza e população maiores, talvez possam se dar ao luxo de desperdiçar talentos, embora não deixe de ser desumano e estúpido.
Cá tive lá a minha sorte de topar com uma portuguesa sensível, e não se trata de uma graxa na chefe, mas de reconhecer quem teve a qualidade de ver além do estereótipo do imigrante brasileiro, de perceber que havia ali uma voz diferente e justamente por ser diferente, uma voz valiosa ao projeto diferente que é a Mensagem.
A mesma sorte que faz a bola de ténis bater na fita da rede e cair para um lado ou outro do court e decide uma partida, uma vida.
A sorte que faltou a outros imigrantes que ainda não encontraram um candidato a chefe sensível ao valor de uma voz, de um olhar, de uma escrita, de uma dinâmica, de uma experiência de vida diferentes num ambiente de trabalho, pois a diferença ensina, constrói, faz refletir. Chefes assim, infelizmente, são raros.
Pois para ser um chefe assim é preciso sensibilidade, inteligência e também coragem.
A tenista de Alvalade muda de lado no court do logradouro do prédio ao lado, obrigando-me a arrastar as rodas da cadeira da sala para a cozinha. Mudou também o estilo do jogo, usando o instrumento que se assemelha a uma raquete nas mãos para dar pequenas estocadas no já fatigado tapete. A variação de jogadas só me deixa mais certo do talento dela como tenista.
Penso em assumir por completo o meu papel de James Stewart de segunda classe e procurar o binóculo do miúdo pelo caminho, ter um rosto para essa crónica, mas a partida no logradouro sofre um novo revés que prende a minha atenção: o tempo de início de primavera, desde sempre instável, muda e nuvens negras aproximam-se dos prédios.
Páf! Páf! Páf!
O persa da madame não pode ver chuva e a tenista de Alvalade retoma as batidas com força, infatigável, impiedosa, o tapete contorcendo-se no estendal, antevendo o óbvio desenlace, a derrota iminente. Em poucos segundos, jaz inerte, batido. E a mulher loura e madura deixa o court com o tapete nas costas, como quem carrega um corpo nos filmes de Hitchcock.
A tenista de Alvalade venceu mais um jogo, mas não o torneio. Faltou-lhe sorte até agora, a bola ainda não lhe caiu no lado certo e a vida dela segue a incerta rotina de um eterno matchpoint.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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Texto inteligente e sensível.