Noite de sábado em Lisboa e no palco do bar Samambaia, na Graça, a batida do pandeiro e o dedilhar da guitarra sugerem o início de um hit do sambista carioca Martinho da Vila, a elencar as diversas mulheres que passaram na vida de um homem.
Mas naquele sábado, naquele samba e naquele palco onde a cantora brasileira Nega Jaci se apresentava, a versão original surgiu na forma de uma belíssima releitura libertadora e empoderada do feminino.
Em vez do “Já tive mulheres de todas as cores” de Martinho da Vila, Nega Jaci entoa o “Nós somos mulheres de todas as cores” da versão criada pelas brasileiras Doralyce e Silvia Duffrayer em 2018 – uma adaptação que reescreve algumas estrofes da letra original e que, desde então, tornou-se um hino da resistência feminina no “patriarcal” universo do samba.
Ouça aqui a atuação de “Nós Somos Mulheres”:
A versão reescrita pela dupla brasileira substitui na letra ainda referências a mulheres “desequilibradas e confusas” por exemplos do expoente da luta feminina do Brasil, como Chica da Silva e Elza Soares. No vídeo gravado exclusivo para a Mensagem junto com os músicos Emile Pereira e Marcelo Mendes, Nega Jaci incluiu uma homenagem a ex-vereadora carioca Marielle Franco, assassinada em 2018.
A nova letra também reposiciona o papel da mulher, desobrigando-a de ser responsável pela felicidade do homem, para no fim concluir, em tom libertário e independente, que a mulher, ao contrário da original cantada por Martinho da Vila, é tudo que um dia sonhou ser.
“As letras do samba costumam ser supermachistas e preconceituosas, olhando a mulher ou como objeto para servir ao homem ou como alguém que precisa ser cuidada, sem dar o devido valor ao poder feminino”, explica Nega Jaci, a cantora brasileira nascida na Bahia como Jacilene Santos Barbosa há 36 anos, os últimos oito deles a viver em Lisboa.
A versão feminista do conhecido samba é obrigatória no set da brasileira e o momento em que Nega Jaci a canta na apresentação é precedido de uma convocação às mulheres na plateia e é para elas que a performance é especialmente dedicada.

“Canto em homenagem às mulheres, mas os homens acabam por ouvir e de sua forma fazerem uma reflexão sobre o tema”, afirma.
Reflexão que tem levado alguns músicos a também buscarem uma forma de se reposicionar. Nega Jaci lembra que nem o próprio Chico Buarque, uma unanimidade entre os músicos brasileiros e aparentemente incontestável, está imune às derrapagens de letras escritas em outros tempos e contextos, mas que agora parecem não encontrar mais espaço no repertório regido pelo politicamente correto.
“O Chico é um dos meus compositores e cantores preferidos, e sendo quem é, atento e sensível, fez uma mea culpa pública e há canções do repertório dele que ele disse declarou que não irá mais cantar e realmente não canta”, lembra a cantora baiana.
Mulheres (Martinho da Vila) | Mulheres (versão Doralyce e Silvia Duffrayer) |
Martinho da Vila Já tive mulheres de todas as cores De várias idades, de muitos amores Com umas até certo tempo fiquei Pra outras apenas um pouco me dei Já tive mulheres do tipo atrevida Do tipo acanhada, do tipo vivida Casada carente, solteira feliz Já tive donzela e até meretriz Mulheres cabeça e desequilibradas Mulheres confusas, de guerra e de paz Mas nenhuma delas me fez tão feliz Como você me faz Procurei em todas as mulheres a felicidade Mas eu não encontrei e fiquei na saudade Foi começando bem, mas tudo teve um fim Você é o sol da minha vida, a minha vontade Você não é mentira, você é verdade É tudo o que um dia eu sonhei pra mim. | Nós somos mulheres de todas as cores De várias idades, de muitos amores Lembro de Dandara, mulher foda que eu sei De Elza Soares, mulher fora da lei Lembro de Anastácia, Valente, guerreira De Chica da Silva, toda mulher brasileira Crescendo oprimida pelo patriarcado Meu corpo, minhas regras agora, mudou o quadro Mulheres cabeça e muito equilibradas Ninguém tá confusa, não te perguntei nada São elas por elas escuta esse samba que eu vou te cantar Eu não sei porque tenho que ser a sua felicidade Você é que se baste Meu bem, amor assim quero longe de mim Sou mulher, sou dona do meu corpo E da minha vontade Fui eu que descobri prazer e liberdade Sou tudo que um dia eu sonhei pra mim. |
Uma voz que já rodou o mundo
Voz conhecida nas cada vez mais frequentes rodas de samba em Lisboa, Nega Jaci correu o mundo a cantar o mais brasileiro dos ritmos antes de aportar na capital portuguesa. Ex back vocal da cantora e atual ministra da Cultura do Brasil, Margareth Menezes, Jaci descolou em voo solitário em palcos italianos, franceses, suecos, noruegueses, dinamarqueses e ingleses.

Foi justamente em Londres que conheceu o seu marido, o fotógrafo português Francisco Rivotti. A união motivou a mudança para Lisboa.
“Costumava passar férias em Lisboa e sempre achei a cidade linda, o astral ótimo. Mudar acabou por ser um movimento natural”, explica Nega Jaci, que além de mulher é mãe e, como tantas profissionais, às vezes vê-se obrigada a levar os filhos ao trabalho.
Não raro, os pequenos Salvador e Matheus, de 6 e 3 anos, são vistos em incursões no palco durante as apresentações. O mais velho, Salvador, já canta alguns refrães e tem tentado convencer a mãe a deixá-lo fazer parte da banda D’Ori. “Ele está aprendendo violoncelo e vem pedindo para tocar com os outros músicos”, diverte-se.
O único senão da rotina em Lisboa é um problema que costuma fazer parte do rol das lutas femininas, a remuneração baixa, embora no campo musical ele pareça afetar negativamente tanto a homens quanto a mulheres.
“Ao contrário dos outros países onde vivi, a concorrência aqui entre músicos brasileiros e de músicos maravilhosos é imensa, o que acaba por refletir num cachê bem mais baixo do que em outros sítios da Europa. Nem todos em Lisboa têm a proposta do Samambaia, de reverter o total da bilheteira aos músicos”, reflete.
A nova receita da feijoada de Chico Buarque
Autoras da nova versão do antigo sucesso de Martinho da Vila Mulheres, a pernambucana Doralyce e a carioca Silvia Duffrayer contam que a ideia de adaptar o samba surgiu após serem criticadas durante uma apresentação no Rio de Janeiro, quando uma mulher da plateia protestou por achar a letra extremamente machista.

Foi justamente o que levou o músico paulista Manoel Vitorino Júnior, o Mannu Jr, a escrever a versão mea culpa de um dos grandes sucessos de Chico Buarque, Feijoada Completa.
A letra original escrita por Chico Buarque acaba por relegar à cozinha a mulher que apenas ouve o companheiro a dizer que vai levar uns amigos para conversar, enquanto ela, entre outras obrigações, está encarregada de servir “cerveja estupidamente gelada prum batalhão” e a “fritar um montão de torresmo pra acompanhar”.
“Tocava num grupo chamado Samba na Cozinha e no dia em que estávamos fechando o repertório, alguém sugeriu a música do Chico”, recorda-se Mannu Jr. “Daí, uma das mulheres da banda vetou a música na mesma hora, por achar muito machista.”
Manu Jr conta que o ocorrido levou-o a refletir numa solução. “Como gosto muito da música, pensei que talvez houvesse uma forma menos radical de resolver a questão do que cancelá-la. Sentei e daí saiu a Feijoada Correta”, conta.
Feijoada Completa (Chico Buarque) | Feijoada Correta (versão Mannu Jr) |
Mulher, você vai gostar Tô levando uns amigos pra conversar Eles vão com uma fome que nem me contem Eles vão com uma sede de anteontem Salta cerveja estupidamente gelada prum batalhão E vamos botar água no feijão Mulher, não vá se afobar Não tem que pôr a mesa, nem dá lugar Ponha os pratos no chão, e o chão tá posto E prepare as lingüiças pro tiragosto Uca, açúcar, cumbuca de gelo, limão E vamos botar água no feijão Mulher, você vai fritar Um montão de torresmo pra acompanhar Arroz branco, farofa e a malagueta A laranja-bahia ou da seleta Joga o paio, carne seca, toucinho no caldeirão E vamos botar água no feijão Mulher, depois de salgar Faça um bom refogado, que é pra engrossar Aproveite a gordura da frigideira Pra melhor temperar a couve mineira Diz que tá dura, pendura a fatura no nosso irmão E vamos botar água no feijão | Mulher, você vai gostar Tô levando uns amigos pra conversar Eles vão com uma fome Que nem me contem Eles vão com uma sede de anteontem Salta a cerveja estupidamente gelada prum batalhão E vamos botar água no feijão Mulher, não vá se afobar Não tem que pôr a mesa, nem dá lugar Eu ponho os pratos no chão e o chão tá posto E preparo as linguiças pro tira-gosto Uca, açúcar, cumbuca de gelo, limão E vamos botar água no feijão Mulher, eu vou fritar Um montão de torresmo pra acompanhar Arroz branco, farofa e a malagueta A laranja-bahia ou da seleta Jogo o paio, carne seca, toucinho no caldeirão E vamos botar água no feijão Mulher, depois de salgar Faço um bom refogado, que é pra engrossar Aproveito a gordura da frigideira Pra melhor temperar a couve mineira Diz que tá dura, pendura a fatura no nosso irmão E vamos botar água no feijão |
Na nova letra, que costuma ser ouvida nas apresentações de Manu Jr nas noites de Lisboa, o homem pede para a mulher não se afobar e logo avisa: “Eu ponho os pratos no chão e o chão tá posto e preparo as linguiças para o tira-gosto”, anunciando ainda que caberá a ele jogar o paio, a carne seca e o toucinho no caldeirão, além de fazer o refogado, aproveitando a gordura da frigideira para engrossar a couve mineira.
“Parece um pormenor, mas faz diferença chamar as ações para a primeira pessoa. É melhor continuar a cantar com as alterações do que retirá-la definitivamente do repertório. São os ajustes de uma transição provocada por um assunto muito sério e que deve ser feitos”, diz Mannu Jr.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt

O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição: