Receba a nossa newsletter com as histórias de Lisboa 🙂
Todas as casas novas contam a mesma história de sucesso, mas cada casa devoluta esconde uma infelicidade única. Esta paráfrase da conhecida frase de abertura de Anna Karenina poderia aproximar-se ainda mais — e perigosamente — do original, pois trata-se quase sempre da infelicidade de alguma família.
Os mais informados preferem explicar a abundância destas casas invocando causas estruturais, como as décadas com excesso de construção, os senhorios descapitalizados ou os planos camarários bem intencionados e frustrados de usar as casas devolutas para mitigar o problema da habitação. Outros lembram as causas próximas, apostando numa falência ou desavenças na altura das partilhas.
Mas quando caminho pela rua e dou com uma dessas casas, a cabeça é assaltada por infinitas causas: o jogo, o álcool, outras drogas, uma vigarice, um amor louco, uma ganância desmedida, um corte de relações, um despedimento depois dos 50, a febre da última moda em investimentos promissores, uma doença degenerativa e um mau seguro, uma epifania que leva à renúncia do capitalismo e da vida burguesa…
Este exercício torna-se irresistível quando, ainda não perfeitamente entaipadas ou já com um princípio de ruína, parte do interior fica à vista. Então os quartos pintados com cores diferentes e os azulejos fora de moda da casas de banho intrometem-se na paisagem pública e, mesmo despertando algum pudor, formam um cenário onde é irresistível não colocar os antigos inquilinos imaginados, como num teatro em que a “quarta parede” foi literalmente quebrada, mas desta vez não pelos actores, que lá vão executando uma qualquer rotina doméstica como se ninguém os observasse.
Uma casa devoluta é uma pequena ferida na cidade e, pelo menos enquanto as praias permanecerem públicas, o maior trunfo citadino de quem não endeusa a propriedade privada. Não terá sido por acaso que, além dos movimentos de reforma agrária, os movimentos de ocupação de casas e prédios devolutos, sobretudo a partir do final dos anos sessenta do século passado, sejam os casos com maior significado político de violação da propriedade privada (ou do Estado) por grupos de esquerda ou libertários, como não será coincidência que tivessem surgido em cidades de países ricos com uma cultura democrática amadurecida, como a Alemanha, a Dinamarca, a França, a Holanda e o Reino Unido, ou que atingissem grande expressão em cidades com uma cultura política vigorosa, como Barcelona. Este movimento okupa também existiu em Portugal, mas parece ter perdido a pouca força que teve.
A reabilitação urbana de Lisboa, alimentada pelo sucesso da cidade como destino turístico, terá criado a impressão de que o problema das casas devolutas está resolvido. Mas basta andar pelas ruas para deparar com uma casa abandonada. E sabemos há que em Lisboa essas casas serão cerca de 48 000. A Câmara Municipal de Lisboa (CML) é proprietária de 2 mil das 48 mil casas. Que casas são estas? O que está pensado para elas? E quanto às outras 46 mil casas, o que foi feito depois de, há um ano, Filipa Roseta (vereadora da Habitação na CML) ter afirmado que era fundamental “incentivar os privados a porem as suas casas no mercado”.
Perante a complexidade destes processos, o tom vago das declarações não justifica grande entusiasmo. Mas 48 mil casas são habitação para 200 a 300 mil pessoas e, sendo provavelmente a habitação o principal problema da cidade, surpreende que nenhum cidadão ou associação de cidadãos tivesse criado um observatório das casas devolutas que as mapeie e produza uma estatística que possa ser usada como instrumento de pressão.
Conhecemos o tempo médio de espera para uma determinada consulta, mas ninguém sabe o tempo médio que uma casa fica desabitada. E se é verdade que uma das soluções passará por penalizar por via de impostos os cidadãos que mantêm uma casa abandonada e a degradar-se, também as câmaras devem ser politicamente responsabilizadas pela morosidade com que gerem estes processos. Tal só se consegue com estatística detalhada.
E agora que já ninguém okupa casas, alguém terá de passar a okupar-se das tarefas de monitorização que o Estado não assegura.

Vasco M. Barreto
É biólogo. Nasceu em Lisboa, cresceu nos Olivais Sul durante os anos 70 e 80, viveu uns anos no Lumiar e depois seguiu para Paris, onde se doutorou, e a seguir Nova Iorque. É casado e tem duas filhas. Árvores plantadas. Livro a caminho.

Lia Ferreira
Nasceu em Lisboa em 1974 e ali cresceu e fez a sua formação artística. É pintora, ilustradora e retratista. Mãe de 4 filhas, leva a vida na Arte.

O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz dantes pagava-se com anúncios e venda de jornais. Esses tempos acabaram – hoje são apenas o negócio das grandes plataformas. O jornalismo, hoje, é uma questão de serviço e de comunidade. Se gosta do que fazemos na Mensagem, se gosta de fazer parte desta comunidade, ajude-nos a crescer, ir para zonas que pouco se conhecem. Por isso, precisamos de si. Junte-se a nós e contribua:
Em arroios, são quatro páginas A4 com moradas de prédios entaipados.
Uns em ruínas pelo tempo em desprezo que se encontram, outros fechados, porquê.
Não contam as casas, que estão devolutas…. são muitas, essas não tenho quantificação. Até a CML e SCM, têm andares vagos…anos e nada …
Moradora à 50 anos o problema não se resolve