Sou um rato. Apenas um rato. Não posso dizer sequer que seja belo. Muita gente insulta-me por ser apenas o que sou. Dizem assim: a porcaria de um rato.

Mas sou igual aos outros. Também tenho sentimentos, angústias, fome. Vivo do lixo, apanhando os restos, roubando o que outros largam. Meto o focinho entre sacos e saio de lá quase a estourar. Sempre que chego antes da recolha, é um regalo, não digo que não a nada. Esgueiro-me para o meu buraco e ouço os carros a voar na ponte 25 de Abril, que viver em Alcântara é assim. Fujo do trânsito para não ser esmagado pelo pneu de um supersónico Fiat Panda que não vá parar a tempo. Tenho medo de motas, porque parecem uma seta que vai decepar a vida ao alvo. O alvo sou eu.

Se eu morrer um dia na estrada, ninguém chorará por mim. O trânsito na rua de acesso à ponte, mesmo antes da Prior do Crato, continuará à maluco e, depois do atropelamento, ainda virão mais quinhentos ou seiscentos. Ao fim do dia, nem um corpo haverá para que alguém chore por mim, só rato em pó espalhado pelo chão ou então a esvoaçar por aí fora rumo ao Tejo. Mas quem ia chorar por este rato? Se me virem depois de levar com um camião em cima, dirão apenas “Que nojo, um rato espalmado.” E, se a roda de uma bicicleta me varrer e eu respirar a custo, vão querer que eu tivesse morrido de uma vez. Ninguém dá nada por mim.

Até a cronista me odeia. Não é ódio, diz ela. É nojo. Como se nojo fosse coisa pouca quando comparada ao ódio. Se fosse ódio, eu ainda podia achar que valia alguma coisa, sempre justificava a minha existência com a ideia do impacto. Mas não. Bem a vejo, quando me vê, cheia de asco. Faz-me sentir que nem para existir sirvo. Conto a história a quem se puder compadecer com este bicho, este bichinho, este mamífero indefeso, de focinho agudo, curioso, patas velozes, pêlo enxuto. Ouçam esta bolinha de pêlo tão linda enquanto a imaginam pousada no pescoço a sussurrar-vos.

Era sábado. Ela via Lisboa e eu também. Empanturrara-me de um panettone que alguém tinha esquecido numa paragem de autocarro, vindo da Gleba, e aquilo para mim foi o Natal a chegar mais cedo. Findo o banquete, a minha barriga parecia de grávido: imaginem mil ratinhos a sair umbigo fora. Mas o corpo pesava-me, tive de ir dar a minha volta. Até por saúde mental, gosto de olhar para o Tejo quando posso. Ainda é um esticão, que um rato não é do tamanho de um humano, mas vale bem a pena ver Almada a olhar para mim. Quando é de noite, os carros param, as pessoas saem e a lua bate na água, parece que não existe mais nada no mundo. Um rato gordo e Lisboa a sós, eis uma história de amor igual às outras.

Mas era de dia, e viver nesta pele de dia é sempre um perigo. Não há sossego, mas como fugir àquele azul-azul do rio? O sol batia-lhe a direito, no mundo sei que não há uma luz igual, e isto sem ter saído de Alcântara. Vi na capa do Público fotografias da Rússia e não gostei.

Eu estava sossegado depois de ter passado a Avenida Brasília. Dantes armava-me em herói, mas agora sou um rato já amadurecido pela idade. Em vez de me arriscar a ser picadinho de mamífero, evitei a Carris e fugi pelo túnel. Eram duas da tarde e houve gente que gritou. Os humanos não percebem que eu sou igual a eles: só quero aproveitar o sol que Lisboa tem.

Passei as docas de Santo Amaro. Gosto sempre de ver ali gente a emborcar batatas fritas. A satisfação que têm é igual à que me dão quando deixam duas ou três em cima do prato, mas a minha vida é o baque do costume: já sei que, se alguém me vê a surripiar o que ninguém quis, tenta matar-me. Ainda passei a minha pequena língua de rato pelos meus lábios de rato, deliciado, mas admito que me preocupei mais em evitar as centenas de pés que pareciam querer assassinar-me à vez. Sou ágil e safei-me, pouco depois já via casais a jogar padel, e em cima de nós a ponte zumbia como se o céu nos fosse cair em cima.

Parei em frente ao rio. Não há humano que ame tanto um rio. Os meus quinze centímetros de corpo suavam como não vejo suar muitos. Para além do esforço, este tapete que tenho em cima aquece o tempo todo.

E então ela chegou. A cronista vinha com um pasmo que era meu. Olhava para os das raquetes e sorria. Nem devia conhecê-los, mas bastava que fossem da mesma espécie para ela lhes querer bem. Quis ser assim, livre, feliz, sem ter de evitar quem era igual a mim.

Parou também em frente ao Tejo. Nos olhos dela, bem vi o mesmo amor. É impossível não amar um rio igual ao céu. Inspirou fundo como quem recebe o mundo nos pulmões. Ser humano era aquilo, ter direito ao sol.

Bebeu água, mexeu no telemóvel. Comeu uma barrinha de cereais e deitou fora o plástico sem sequer uma migalha deixar para mim. Que iria ela querer com este rato? Os humanos querem lá saber se o mundo é deles, se há quem tenha de se safar na vida só com o que nos deixam, fugindo ao que nos roubam. Voltou a montar na bicicleta e, naquele momento, viu-me ali.

O ar de pânico que lhe deu. Ela nem tinha noção de que o medo devia ser meu. Eu não ia poder nada contra ela. Eram 15 centímetros de bichinho contra 173 de uma montanha humana. Ela dava-me um pontapé e eu era pitéu de sardinha.

Encheu de novo os pulmões de ar, reteve-o lá. O medo de mim era tal que nem conseguia respirar. Em cima da bicicleta, já nem conseguia pedalar. Paralisei-a com os meus olhos de Rat Pitt. Mas quis acalmá-la, ser cavalheiro, deixá-la à vontade junto de mim.

Disse-lhe “Boa tarde, senhora, não tenha medo”. Lisboa, ali em pleno, existia só para nós. Pensei que a minha voz lhe seria carícias nos ouvidos, mas acho que ela ouviu apenas “nhic nhic iii”, que é o que a espécie dela gosta de dizer que a minha diz.

Avancei para ela tão depressa quanto pude. Descontrolando-se, a cronista mexeu-se, enfim. Tão desvairada estava, voltou a desmontar e pôs-se atrás da bicicleta. Dei a volta e de repente a ordem era esta: ela, a Rockrider, eu, o nosso Tejo. Não sei bem como, que foi num ápice, mas a bicicleta foi atirada quase contra mim, falhando por um triz, que para um rato é muita coisa, e caindo na água. Eu ainda zonzo por quase ter levado com aquilo e triste por ser tão triste e mal amado. O que mais me doía era a auto-estima.

Procurei-a com os olhos, com o meu focinho de rato a farejá-la. Lá corria ela em direcção a Belém. Aquilo já não era cronista, era atleta, que o medo e o asco dão mais velocidade do que o treino. Correu dez minutos sem parar. No fim, disse-me o Mickey, lá parou, avisando os trauseuntes sobre o perigo que andava à solta. O perigo à solta era eu. Não havia solução para aquilo. Telefonou para os bombeiros, a polícia, a protecção civil, a mãe. Ligou para toda a gente a ver se alguém me matava.

Ninguém quis ir, e eu também já tinha escapado para o buraco. Não há dor maior na vida do que ser rato. Damos amor e recebemos coisa pior do que a indiferença. Por umas vezes, um humano lá finge que é nosso amigo, mas já sabemos que o prato de queijo que nos deixa tem arsénio em cima. Continuamos a fazer o que podemos: de vez em quando, fugindo aos perigos, queremos pelo menos a paz de ver a luz de Lisboa.


Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.


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