Esta é uma história sobre a lucidez de autarcas incógnitos que travaram – felizmente – o engenho excessivamente progressista de um dos mais notáveis nomes da arquitetura modernista em Portugal. Apesar disso, podemos considerar o arquiteto Luís Cristino da Silva como um Grande Afacinha, pois foi autor de alguns dos mais emblemáticos edifícios de Lisboa, como o conjunto da Praça do Areeiro ou o Cineteatro Capitólio.
Mesmo a propósito do recente projecto do PALCO-ALTAR no Parque Eduardo VII, cujo único desenho divulgado mais parece uma (con)fusão de estilos entre o Brutalismo Soviético e o monumental do Estado-Novo.
Cristino da Silva também foi protagonista de vários episódios que se estenderam em polémica. Mas aqui ao contrário, polémicos porque acabaram fechados numa gaveta de gabinete autárquico contrariando o entusiasmo que os desenhos produziram na opinião pública da época.
Desde a década de 1920 que o Parque Eduardo VII estava sem conclusão, era assim uma espécie de paradigma à la Martim Moniz, embora numa escala temporal bem mais reduzida. Em 1930, era Cristino da Silva ainda um jovem arquitecto, quando se atreveu à iniciativa de propor na Câmara de Lisboa um Estudo para o prolongamento da Avenida da Liberdade para além da Rotunda do Marquês – ainda sem a estátua.
O desenho, que não passou de um papel exposto ao público no I Salão dos Independentes na Sociedade de Belas Artes, traçava um prolongamento em estrada com várias vias, cortando todo o Parque Eduardo VII até acima.
Resultado:
Foi chumbado por apresentar “proporções grandiosas e grande teatralidade, em divórcio completo com a escala e caráter da cidade”.
Não satisfeito, seis anos depois, em 1936, Cristino da Silva regressa com nova solução onde idealiza uma versão 2.0 do mesmo: acrescenta ao prolongamento da Avenida para além da Praça do Marquês de Pombal (o monumento é inaugurado em 1934) mais duas novas praças, a primeira a 100 metros ao norte do Marquês de Pombal, que iria ter uma estátua a Camilo Castelo Branco e a segunda nova praça no topo mais alto, (mais ou menos onde hoje está o “pirilau” de João Cutileiro) e que seria pontuada por uma gigante estátua equestre de Dom Nuno Álvares Pereira, sugerida ao escultor do regime Leopoldo de Almeida.
Em resposta, a Câmara chumba, repetindo o mesmo argumento do exagero pelas proporções grandiosas.

Até 1961, outras propostas visionárias deste modernista foram simultaneamente apresentadas e igualmente desconsideradas.
Seria Francisco Keil do Amaral, discípulo do modernista holandês Willem Marinus Dudok , de linguagem formal mais prosaica e modesta, quem se iria dedicar a transformar o Parque Eduardo VII no espaço que hoje conhecemos.

Vivenciar a amarga experiência de ter grandes projectos de arquitetura ou engenharia chumbados era normal naqueles anos, bem como nos dias de hoje salvo, claro, as discrepâncias de orçamentos pagos antes das adjudicações.
Que não fique a ideia de que não admiro o trabalho de Cristino da Silva. Admiro e muito. É parte da superfície cutânea da cidade que percorro. Filho e neto de artistas plásticos, Cristino da Silva foi também um virtuoso desenhador. A sua obra foi alvo de uma importante exposição na Fundação Calouste Gulbenkian que detém o seu espólio.
Podemos ainda hoje observar a sua melhor e maior “ilustração” e até caminhar sobre ela: a Rosa-dos-Ventos que ornamenta o terreiro de acesso ao Padrão dos Descobrimentos.

Obra do Modernismo que, aproveito para alertar, tem vindo a degradar-se por causa das artísticas derrapagens das trotinetas desta Lisboa Moderna.

Nuno Saraiva
Lisboeta empedernido, colaborou praticamente em toda a imprensa nacional. Cartunista político, o seu traço é o traço de Lisboa, é o autor das imagens das Festas de Lisboa de 2014 a 2017, criador dos troféus das marchas, e há 10 dos seus murais nas paredes da cidade. O seu livro Tudo isto é Fado! ganhou o prémio do Festival internacional de BD Amadora. Dá aulas na Lisbon School of Design e na Ar.Co. São dele todos os desenhos na homepage da Mensagem.