— Na visita do Papa vamos ter um altar no Parque Eduardo VII…

— Altar, onde? Não era ali próximo da Expo?

— Esse é o principal. Haverá outros e um deles é no Parque Eduardo VII. 

— No parque Edua… Espera lá, no Parque Eduardo VII?!

— Sim.

— Mas onde, exatamente?

— Lá em cima, claro. Para a multidão de jovens peregrinos se espalhar pelo jardim abaixo, até ao Marquês.

— Não pode. Lá em cima não pode.

— Como “não pode”, agora és especialista em altares?

— Não me ouviste falar do altar de cinco milhões, pois não? É que não sou orçamentista. Nem ouviste falar de pala na margem do Trancão, de palcos e pistas de skate? Não sou arquiteto de exteriores. 

— Agora sobre altares no Eduardo VII já falas… Aí já é arquitetura de interiores, queres ver… 

— Não andas longe, mas nesta conversa é de meter mais interior nela. É interior, profunda como os desenhos que Freud fazia enquanto ouvia os seus clientes no sofá. No alto do Eduardo VII, um altar não vai dar. É demasiado interior, mete psique. 

— Já te percebi, falas do pirilau do Cutileiro. Mas isso, meu caro, já está resolvido. 

— Diz lá como? 

— Simples, a estátua do pénis sai dali provisoriamente, a família do escultor até já autorizou e tudo. 

— Ora, ora, perguntaram-lhes “por ou contra?” e a família quis foi sair o mais rápido possível das polémicas sucessivas sobre a organização da vinda do Papa Francisco a Lisboa.  

Ok, mas o importante é que a estátua sai, o altar faz-se e o fervor religioso nasce… 

— Errado. Tira-se a estátua e, em plena missa, o pirilau volta a galope pelo palco dentro. Um símbolo enorme censura um símbolo insignificante e, mesmo que seja provisoriamente, tudo ganha uma dimensão desmedida. O cálice ergue-se e na cabeça da multidão há um relampejar de imagens do pirilau perseguido. 

— Mas como é que na cerimónia podias ignorar um pénis, ereto, de seis metros? 

— Ah, agora já me perguntas como? Isso comecei eu a dizer-to, não podes, ponto. Ele simboliza – é essa a explicação oficial do monumento – “a virilidade dos autores do 25 de Abril”. E os jovens idealistas que vão ali juntar-se são danados pelos símbolos e pelas causas. Por isso eu preveni-te: altar no alto do Eduardo VII, não dá.

Olha, paciência, decidido que ia lá haver o tal altar já está. 

— É essa a triste sina destas Jornadas Mundiais à portuguesa. Decidiu-se, mal ou bem, e depois é: seja o que Deus quiser. Sobre o que Deus quer, sabe-se o que é: não pagar, como vem na Bíblia. A moeda não é do seu reino. Quanto às autoridades, essas lavam as mãos, como também se diz na Bíblia. Fechar os olhos é a vocação delas.

Não te sabia tão crente. 

— Estou a ser exatamente o contrário: descrente. E, por o ser, cínico. Se se decidiu as Jornadas Mundiais da Juventude em Lisboa, façam-nas em Lisboa. Mas agora quero que quem manda não me endromine continuamente com o “isto já não há volta a dar…” Cada dia, hei de perguntar: e isto que hoje ainda não é irremediável, porque razão não muda para melhor? 

Pelos vistos, só dos gastos exorbitantes é que já não podemos fugir? 

— Nem isso, mas tu é que insistes nos números… Eu vou mais longe, olho as pessoas. No dia seguinte ao Papa Francisco ter sido eleito, assisti à sua primeira saída do Vaticano. É uma tradição irem à igreja de Santa Maria Maggiore, e lá estava eu de plantão. Escrevi para o jornal: “Quem o viu não pôde deixar de se dar conta de algo extraordinário: o novo Papa caminha como uma pessoa comum.” Bastou-me olhar para a pessoa e os seus sapatos. Hoje já todos o sabemos e, para o que aqui falamos, é um bom argumento de autoridade. Este dono da festa não gosta de fausto. E mil bispos num palanque é uma negação deste Francisco.

— Tens é um problema: há contratos já assinados.

— A sério? Achas mesmo que há empresas e donos de empresas negando-se a renegociar, apesar do escândalo já ser notório? Há marcas que não se importam de insistir em passar por gananciosas? Neste caso?! Neste, de jornadas de jovens ungidos pela boa vontade e amor ao próximo? Os políticos, agora sob grande escrutínio – já repararam que é assim que estão, não? – vão continuar a desdenhar do tamanho dos gastos, quando até ao convidado isso incomoda? Não acredito. Quer dizer, pelo menos, hão de fingir mostrar boa vontade em se poupar uns milhões. 

— No começo da conversa estavas tão cheio de certezas, mas acabas por aceitar que todo este escândalo vai descambar em fingimentos. 

— Entre nós o balanço final das contas públicas só o conhecemos quando já nos esquecemos das parcelas. Suspeito que estas Jornadas Mundiais em Lisboa vão dar contas tortas. E, sim, elas vão dar contas tortas. Mas só o confirmaremos mais tarde, e tarde. Com os milhões, de facto, as perdas são irremediáveis, mas agora não sei a quem as cobrar. Já os pormenores que entram pelos olhos dentro e agora já evidentes, gosto de comentar. 

— Tais como? 

— Vou-me repetir. Se me dizes: vai haver um altar no alto do Parque Eduardo VII, eu digo: “Não, não vai.” Pensava eu que ficava tudo dito, não precisava de discussão. É evidente. No alto do Parque Eduardo VII há um pénis como monumento e pôr-lhe um altar ao lado, iria dar sarilho. Deu. 

— Mas já te disse que se resolveu, o pirilau de Cutileiro vai ser retirado provisoriamente… 

— O sarilho é esse, retirá-lo por causa do altar. Quem hoje passa pela obra de João Cutileiro só dá por ela porque os vendedores de curiosidades, ali à volta, dizem que ali há um pénis.  Com os peregrinos seria a mesma coisa. Depois de estarem dez segundos a olhar abanavam a cabeça em várias línguas e iam embora sem pensar mais no assunto. 

— Olha que já vi turistas a olhar com mais atenção.

 — Esses é porque apanharam um vendedor mais culto que às vezes anda por ali. “It´s a penis like a big rocket, un carajo muy derecho…” Aí o turista olha com mais atenção o obelisco de forma fálica, de seis metros, e repara que há oito traves de granito a aguentar aquela virilidade ereta. Um ou outro, às vezes fica com um olhar levemente preocupado. São homens que acabaram de se dar conta que teria sido mais prudente trazer pílulas azuis para este país de trolhas sem farmácias. Mas acho que os jovens das Jornadas Mundiais não são grandes clientes de Viagra. Portanto, na boa, as Jornadas até conviveriam bem com o pirilau vizinho. 

— Estás a contradizer-te…  

— Não.  Eu sabia é que os organizadores cairiam na tentação. Ousavam porque achavam que os indígenas engoliam a palavra santa: “provisoriamente”. 

— E não é santa? 

— Esse é já um domínio que me escapa. Prefiro as palavras simples e mais uma vez recorro ao argumento de autoridade que é Francisco, ele próprio. Este Papa é mais de altares módicos, pois deu-se o nome de São Francisco, o santo da pobreza como modo de vida. Mas isso já referi. 

— Estás esgotado de mais argumentos. 

— Não, ainda há outro. Há uma cidade americana com o mesmo nome do Papa, que pode dar-nos uma lição sobre as escolhas esquisitas que andamos a fazer. Em São Francisco há um monumento fálico, comparado ao de Lisboa ainda mais ostensivo. Tem 64 metros e é a melhor vista sobre a cidade. Por outro lado, em São Francisco, quase todas as pessoas que saem da missa nas 54 igrejas católicas (e 282 evangélicas e 17 ortodoxas e…) não podem ignorar a Coit Tower, a Torre do Coito. E não consta que, provisória ou definitivamente, alguém tenha arranjado um pretexto para a esconder. 

— Precisaste de ir longe para te explicares…

— É que mais perto tenho exemplo demasiado maroto. Vai à velha Sé Catedral de Lamego e na fachada passeia os olhos pelo pórtico. Ele é homens e mulheres, animais e bestas imaginárias medievais, em pedra, expondo o sexo e vícios que fariam corar o escultor João Cutileiro, infelizmente já no Paraíso. E, já agora, lembro que uma nossa rainha, Dona Teresa, a mãe do fundador, viúva, fornicava sem vergonha com condes galegos. Então, o bispo de Lamego proibiu-a de entrar na catedral. Provisoriamente? Não sei. Mas é uma tradição portuguesa, tomarmos decisões beatas e tolas. Claro que Dona Teresa preferia ficar à porta da Sé Catedral de Lamego.

*Este artigo foi publicado em janeiro de 2023 pela primeira vez.


Ferreira Fernandes

Nasceu em 1948 em Luanda. Jornalista – um ponto é tudo.

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