Ser um sem abrigo. O que é? As pessoas não conseguem imaginar o que é, incluindo eu antes de ter sido um. E escrevo desta forma e refiro-me a mim próprio como “um”. Porque para a sociedade não passamos de um número.

Ser um sem abrigo não significa apenas não ter um teto para dormir. Significa termos de viver vinte e quatro sobre vinte e quatro horas na rua, sem tudo aquilo que durante toda a nossa vida sempre tivemos ao nosso dispor como um dado adquirido. E sem as coisas simples e banais que todas as pessoas possuem.

Imaginem o que é ter de estar constantemente a viver nas ruas sem um sítio nosso para nos sentarmos a descansar um pouco, sem uma casa de banho para nos lavarmos e fazer as nossas necessidades mais básicas e sem acesso pessoal a energia elétrica, sem sítio para arrumar a roupa, guardar a comida, sem nada.

“O meu processo começou três anos antes da primeira noite em que tive de dormir num banco público no Parque das Nações em Lisboa. No dia em que a minha empresa abriu falência.”

Expostos a tudo e a todos, sem privacidade e com uma crescente falta de dignidade. A pergunta mais comum que se faz é: como se chega a esta condição? Como se perde o nosso trabalho, a nossa casa, os nossos amigos e como se vai parar às ruas a dormir em baixo de pontes, em bancos de jardim e nas entradas dos prédios.

É a essa pergunta que vou tentar responder no meu testemunho.

A essa e a muitas mais perguntas. Perguntas essas que para serem respondidas é necessário ter passado pela experiência de ser um sem abrigo. Como eu fui e espero não voltar a ser. Porque viver na rua é uma condição que não deveria ser permitida nem tolerada pela nossa sociedade nem por quem nos governa. Ser sem abrigo é o nível de existência mais baixo a que o ser humano é obrigado a viver. Por isso vou partilhar a minha experiência nestas linhas. Vou partilhar a vivência e o sofrimento que é não ter uma casa para viver. Vou partilhar como se vive e sobretudo como se sobrevive.

Existe sempre o primeiro dia como sem abrigo. Mas este processo, chamemos-lhe assim, começa muito tempo antes. No meu caso, penso que começou três anos antes da primeira noite em que tive de dormir num banco público no Parque das Nações em Lisboa. Começou no dia em que a empresa onde eu trabalhava como técnico administrativo abriu falência. Todo o pessoal ficou no desemprego, incluindo eu que já estava nos quadros da empresa.

Indemnização? Ainda hoje eu e todos os que lá trabalhavam esperamos uma decisão judicial. Compensação laboral ninguém a viu. Recebemos apenas os impressos confortáveis para receber o subsídio de desemprego.

Percebo hoje que é nesse momento que tudo começa. E que ninguém pense que é preciso cair o Carmo e a Trindade, como se costuma dizer, para se chegar a esta condição de sem abrigo. É rápida a queda. Principalmente para um homem com a minha idade, depois dos cinquenta anos.

Nunca desisti. Fui operador de gasolineira, tentei a construção civil. Mas já não servia. Era velho demais, depois dos 50.

Neste país em que vivemos, é muito difícil procurar trabalho depois dos cinquenta anos. Estamos com uma idade em que nos dizem que já é muito tarde para trabalhar. Mas também nos dizem que é muito cedo para nos reformarmos. Em Portugal isto funciona assim, ou seja, existe uma profissão chamada desemprego.

Mas não desisti. Sem trabalho, com a renda da casa, as contas inerentes para pagar e ainda ter de comer… Difícil. Eu aceitava qualquer coisa. De modo que aceitei ser operador de caixa numa gasolineira. Mas ao fim de seis meses, cessou o contrato e contrataram um jovem.

Tentei a construção civil. Sem especialização nenhuma, fui para servente. Passado um mês o diretor da obra veio falar comigo e disse que seria melhor chegarmos a um acordo para sair, pois eu já não tinha idade para fazer certos trabalhos. E tinha razão. Eu já não tinha idade para andar em cima de andaimes nem para carregar sacos de cimento.

E pronto. Tive de entregar a minha casa ao senhorio e alugar um quarto barato fora de Lisboa com a ajuda monetária de uma amiga minha. E aí as coisas começam a piorar.

Emprego não consigo obter. O subsídio chega ao fim. Pago o quarto e o resto do dinheiro com que fico mal chega para me alimentar durante 15 dias. A ajuda pessoal que tinha acaba, a pessoa que me ajudava não pode ajudar mais. Começo a receber o Rendimento Social de Inserção, que não chega nem para pagar a renda do quarto. A renda começa a ficar por pagar…

Quando temos alguma coisa na vida, amizades não faltam. Quando passamos fome, até nas redes sociais nos bloqueiam.”

Amigos? Sim, tentei pedir ajuda, mas as pessoas afastam-se de nós a pouco e pouco quando se apercebem que estamos em dificuldades. Quando temos alguma coisa na vida, amizades não faltam. Quando passamos fome, até nas redes sociais nos bloqueiam. Enfim, mas isso seriam outros desabafos… Apoios sociais? A sociedade onde estamos inseridos ajuda quem está a subir. Quem está a descer, leva mais um “empurrão” para descer ainda mais…

Até que chega o dia! O dia em recebo o ultimato. Ou pago as três rendas em atraso ou vou ter de sair do quarto. Eu já não tinha dinheiro para comer, quanto mais para pagar as rendas em atraso.

Numa madrugada conduzido pela vergonha, saio de “mansinho” de casa do meu hospedeiro. Sim, pela vergonha. Porque eu penso que eu ou qualquer pessoa tem sempre vergonha da situação de pobreza, da admissão de miserável. E de manhã estou sentado na estação de comboios a caminho da Gare do Oriente em Lisboa, com duas malas apenas com o essencial dos meus pertences, basicamente roupa, sem dinheiro no bolso e sem saber o que fazer. Só sabia que viria de novo para Lisboa. Não tinha outro sítio para onde ir. 


Jorge Costa

Jorge Costa

Morreu aos 55 anos em abril de 2022. Nasceu em Lisboa, cidade onde sempre viveu. Na Mensagem, partilhou a sua experiência da vivência nas ruas, sem teto para viver e para dormir. Foi sem abrigo durante 8 meses, até maio do ano passado. Escreveu sobre esta “difícil experiência, indigna e quase desumana”. Publicou um livro póstumo, Diário de Um Sem Abrigo, na Oficina do Livro.

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19 Comentários

  1. É vergonhoso, completamente inadmissível os governos deixarem as pessoas viverem na rua. De todas as injustiças, esta é a que mais me revolta. Viver na rua? E o presidente da república ainda ajuda na distribuição da esmola de uma refeição? Não devia sair de casa com vergonha. Porque isto é uma vergonha para quem governa

  2. Obrigado. Eu neste momento posso dizer que sou um homem feliz. Ainda vivo com muitas dificuldades, mas sempre lutando para que o dia de hoje seja melhor do que o de ontem.

  3. Partilho da sua opinião, Angela. Viver na rua não deveria ser tolerado por nenhum governo. Seja quem for ou qualquer que tenha sido o seu processo de vida, ninguém merece passar por tal experiência. É melhor estar detido numa prisão, como ouvi das bocas de alguns homens com quem vivi na rua.

  4. E nós, agradecemos imenso o que tem feito connosco! Bem Haja!

  5. Muito obrigado. É minha intenção com estas crónicas dar voz a todos nós. E ainda digo nós, porque nunca me vou esquecer aquilo que passei durante oito meses. E ainda há muita gente a viver nas ruas. Quero dizer como vivemos, onde vivemos e como sobrevivemos. Porque no nosso mundo, um mundo à parte, não se vive. Não é vida. É sobrevivência. Eu é que agradeço esta oportunidade.

  6. E ainda há quem pense que os sem-abrigo são delinquentes, bêbados, drogados. Nada disso e falo por experiência própria. Qualquer pessoa pode ficar sem-abrigo. Até a pessoa mais rica pode ficar na miséria de repente e com isso ir parar às ruas. Não me venham com coisas que os sem-abrigos são pessoas que vivem de rendimentos, que não querem fazer pela vida. A vida é que não quer fazer por nós.

  7. Bruno, o nosso maior problema é precisamente esse. Se já viveu nas ruas sabe que vamos parar a um mundo onde há de tudo. Deliquencia, droga, alcoolismo e não só. É uma autêntica selva. E as pessoas reúnem-nos a todos com um rótulo. Espero que o meu testemunho contribua para para, pelo menos, informar as pessoas do que é este viver assim. Obrigado pelo seu comentário.

  8. Jorge é um orgulho lê-lo. Também foi muito gratificante acompanhá-lo neste processo. O Jorge e muitos outros provam que é possível a mudança de ciclo, muitas vezes não como se pensa ou como a maioria das pessoas julgam que é, mas sim à medida da especificidade de cada homem, mulher… parabéns pela lição de vida.

  9. Que orgulho é ver uma Pessoa não desistir de ser Pessoa!
    Parabéns, apesar de todas as adversidades, manteve-se uma Pessoa que soube, sabe, e saberá o que quer para a sua vida….
    Espero acompanhar as suas crónicas, e consigo, continuar a acreditar que é possível!
    Obrigada pela LIÇÃO de VIDA!

  10. Muito obrigado pelo seu comentário Teresa. Tem razão de facto. Na generalidade a maioria das pessoas olham-nos como um todo, rotulando-nos. Mas é graças também a pessoas como você, que hoje muitos de nós têm a oportunidade de nos reafirmarmos como pessoas, reenserirmos-nos na sociedade e, o mais importante, sermos felizes! Porque o seu trabalho e de toda a sua equipa que está a fazer quase há um ano no Pavilhões de Apoio aos Sem abrigo tem sido e está a ser notável. Não se limitou meramente a dar-nos uma casa para vivermos. Colocou-se ao nosso lado, deu-nos a mão, tratou-nos como seres humanos que somos e reestruturou-nos como pessoas! Olhos nos olhos, diariamente, dando tudo de si e quase gastando toda a sua energia, fazendo dos nossos problemas os seus problemas. Eu sei do que falo e quem acompanhar este meu testemunho aqui na Mensagem, constatará na minha reta final o que estou aqui a dizer. Bem haja, Teresa Bispo! Tenho o maior orgulho em conhece-la e ser seu amigo.

  11. Obrigado pelo comentário Madalena. A Madalena orgulha-se. E agradece-me por uma lição de vida. Não sei se esta crónica é uma lição de vida. Eu vou contar a verdade. Para tentar dar meu contributo. Para ver se posso ajudar de alguma forma a acabar com o flagelo que é viver nas ruas. Mas Madalena, eu não estaria nunca a escrever esta crónica se não fossem pessoas como você, como a Teresa, como a Dina e todo o pessoal que fazia e faz parte da equipa no Pavilhão do Casal Vistoso. Eu lembro-me de si. E do trabalho de todos vocês. E é graças a vocês que eu tenho hoje um sofá e internet para escrever esta crónica. Caso contrário, continuaria nas ruas sabe-se lá até quando. Muito obrigado Madalena! É um orgulho conhecer-te!

  12. Muita força e sorte. Quem só lê não consegue, de todo, imaginar. Ainda bem que através deste meio o Jorge pode ter uma voz sobre este tema. Que tudo lhe corra bem!

  13. Muito obrigado Catarina. Sabe, ainda pouco escrevi. Quase nada.

  14. Parabéns vencedor! porque vencedor para mim não é o que não perde, mas sim o que não desiste, o que acredito que seja muito difícil, não desistir durante os tempos difíceis que passou ou que ainda pode estar de alguma forma a passar. Tinha um amigo dos amigos por quem eu tinha mais estima, e embora ele felizmente nunca passou pela atrocidade de ser sem abrigo, nem nunca ter tido dificuldades financeiras, ele nunca teve casa própria, vivia com a senhora que o “adotou” ainda muito jovem quando veio a Portugal tratar de problemas do coração. embora como referi, o Édi não tinha uma vida difícil, mas ele sonhava em ter um cantinho dele, para ter outro tipo de privacidade, e possivelmente para sentir possivelmente um sentimento de autonomia a realização. Ter o seu próprio cantinho era para o Édi uma felicidade maior que ter uma mansão de luxo com piscina e um carro cheio de cavalos na garagem. Não podendo eu em condições normais realizar esse desejo do Édi, sempre pensei que se um dia ganhasse uma lotaria, a primeira coisa que fazia seria dar uma casa ao Édi. Infelizmente nunca poderei dar uma casa ao Édi, pois o Édi morreu o ao passado arrebatado por um ataque fulminante no seu postigo na gasolineira onde trabalhava. Já não poderei dar uma casa ao Édi, mas se um dia poder irei comprar a casa do Édi, e a casa do Édi servirá exatamente para pessoas como o Jorge Costa, pessoas que sempre tiveram uma vida normal e por algum azar da vida se veem sem chão e sem teto de um momento para o outro, para evitar que essas pessoas tenham de vir a ter a triste experiencia que o Jorge costa teve, que a casa sirva de abrigo a várias famílias durante os tempos mais tempestuosos que elas enfrentem, como os diversos casos que infelizmente tenho tomado conhecimento por causa desta famigerada pandemia. Um grande abraço ao Jorge e que a sua história sirva para mais pessoas terem alento para sair da rua e para as que possam serem mais solidárias perante o infortúnio dos outros.

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