Para Maria Manuela Maia, há percursos de Lisboa que são difíceis de esquecer, como aquele que liga a sua casa à paróquia. Mas há outros que a memória vai ofuscando. “A Manuela anda mais ou menos autónoma”, diz Orlando, o marido. “Mas o problema é quando muda de ruas. Aí, já não sabe identificar onde fica a nossa casa”.

Nessas vezes, perde-se. E quando encontra outras pessoas idosas, sem-abrigo ou solitárias, fala com elas. “Precisa de alguma coisa? Pode vir a minha casa que eu ajudo”, diz ela, tentando ajudá-las. O marido, Orlando, acalma-a: “Esse senhor não precisa de nada, não te preocupes, vamos andando. Vamos andando”, diz ele, guiando-a pelas ruas.

Maria Manuela e Orlando conheceram-se há mais de 50 anos quando Orlando cumpria a tropa em Angola. “Correspondia-me com 22 raparigas”, conta. Dessas 22, só escolheria uma: Maria Manuela.

Passados tantos anos, o campo de batalha agora é outro: a doença de Alzheimer, o tipo de demência mais frequente, e que leva a uma deterioração progressiva das funções cognitivas. Uma delas, a memória.

Os esquecimentos de Manuela não se ficam só pelo mapa de Lisboa. Há alturas em que, olhando para o marido que lhe segura a mão, lhe pergunta: “Quem é o senhor?”.

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Maria Manuela e Orlando conheceram-se há mais de 50 anos. Hoje, é ele quem cuida dela. Foto: Inês Leote

Maria Manuela foi diagnosticada com Alzheimer quando tinha cerca de 60 anos. Começou de forma lenta, o marido não se apercebeu logo: eram as memórias da mãe, que julgava viva, uma certa confusão, a ideia de que todos passavam fome e de que precisavam de ser ajudados.

É esse o caminho da doença de Alzheimer: um caminho gradual.

Um caminho gradual, e muitas vezes silencioso, que a associação Alzheimer Portugal conhece bem, travando todos os dias essa batalha para desmistificar a demência na comunidade.

Cada vez mais velhos, cada vez mais com demências

Em Portugal, dados do INE apontam que entre 2018 e 2080 o número de idosos passará de 2,2 para 3 milhões. Em Lisboa, segundo a Pordata, viviam em 2021 cerca de 128 mil idosos, 23,5% da população da cidade. À medida que se envelhece, aumenta a probabilidade de se desenvolver demência, embora cada vez surjam casos mais cedo (a partir dos 30 anos).

Segundo dados da Alzheimer’s Association:

  • A probabilidade é de 5% para pessoas entre os 65 e 74 anos;
  • A probabilidade é de 13% para pessoas entre os 75 e os 84;
  • A probabilidade é de 33% para pessoas com mais de 85;

De acordo com um estudo publicado este ano, em 2050 estima-se que serão cerca de 350 mil as pessoas com demência no país.

No centro de dia, na Quinta do Loureiro, e onde Maria Manuela passa o tempo, procura-se que os utentes vivam integrados na comunidade.

“Somos um centro virado para fora”, diz Filipa Alexandra Gomes, diretora técnica. Ou seja, para além das atividades que se realizam dentro de portas (crochet, culinária, puzzles…), organizam-se atividades na cidade.

Uma das aventuras mais recentes foi um passeio à vela. “A ideia é mostrar que as pessoas com demência podem fazer atividades na comunidade e sentir prazer”, acrescenta.

“O diagnóstico de demência não é uma questão de tudo ou nada, é uma perda gradual das capacidades”, esclarece Marisa Mendes, assistente social da associação. “Com estimulação e intervenção farmacológica, consegue-se pôr um travão na doença. E é claro que, numa fase inicial, há autonomia: fazem a sua higiene sozinhas, alimentam-se sozinhas…”.

Mas nem sempre é fácil promover a inclusão. Por um lado, há o estigma, o desconhecimento. Por outro, o próprio planeamento dos espaços, as acessibilidades. “Ainda há um longo caminho a percorrer”, diz Filipa Alexandra Gomes.

Comunidades amigas das pessoas com demência

“Eu creio que as pessoas não se apercebem”, diz Orlando Maia em relação às pessoas que Maria Manuela aborda na rua.

Nos anos 1990, o mundo começou a despertar para o problema da demência, com o Japão a criar as primeiras “comunidades amigas das pessoas com demência”.

A ideia acabaria por chegar à Europa: Inglaterra, País de Gales e Bélgica foram alguns dos países que responderam mais rapidamente, treinando os seus lojistas para lidar com pessoas com demência. E em 2017 Londres anunciava mesmo o seu objetivo em tornar-se “a capital das cidades amigas das pessoas com demência”.

Em Portugal, também foram empreendidos esforços.

Em 2018, lançou-se a campanha “Amigos na demência”, uma iniciativa da associação Alzheimer Portugal, com o objetivo de se criarem comunidades locais amigas das pessoas com demência. Campanhas de sensibilização, conferências, congressos e uma inscrição como “pessoa amiga da demência” foram algumas das ações desta campanha.

Mas os resultados não foram os esperados: “O número de pessoas a inscrever-se como ‘amigas da demência’ não foi tão elevado quanto isso”, denuncia Filipa. “O que para nós é indicativo de que há muito a fazer na área da sensibilização”.

No centro de dia da Alzheimer Portugal, procura-se dinamizar atividades na comunidade. Foto: Inês Leote

Entretanto, projetos como o Na Primeira Pessoa: Projeto de Empoderamento de Pessoas com Demência, que realizava atividades para pessoa com demência no contexto de museu com a colaboração do MAAT e do Museu de Lisboa, ou o Café Memória, um local de encontro para pessoas com demência e os seus familiares, procuraram continuar este trabalho.

Mas o problema arrasta-se para lá de tudo isto. Para Marisa Mendes, o grande problema é um: a segurança. “Quando saímos com utentes, temos alguma dificuldade a nível das acessibilidades, e, como alguns têm a mobilidade condicionada, há o risco de queda”.

Filipa Alexandra Gomes não precisa de ir tão longe: “Aqui, nas nossas instalações, que são instalações do munícipio, levámos imenso tempo para que fossem melhoradas as acessibilidades “, diz. “Estamos a falar de um equipamento específico!”.

Ruas seguras?

Segundo a Organização Mundial de Saúde, as cidades amigas dos idosos devem contemplar:

  • espaços verdes;
  • vias pedonais;
  • bancos;
  • passeios cuidados e largos;
  • passadeiras adequadas;
  • ciclovias separadas para ciclistas;
  • serviços nas proximidades;
  • edifícios com elevadores;
  • rampas, corrimões, escadas…;
  • zonas de descanso;
  • casas de banho públicas;

São elementos que nem sempre se encontram na cidade. Basta pensar na calçada portuguesa, muitas vezes em mau estado e suscetível a causar acidentes, ou nas escadas rolantes do metro da Baixa-Chiado, há muito tempo inativas.

Por isso, organizar atividades para lá destas portas é sempre complicado. A ida a museus, que já se tornou frequente, implica sempre uma visita prévia: “Vamos ver como é: se tem escadas, se tem elevador…”, diz Ana Sofia Gomes, responsável do serviço social.

Em 2004 um estudo publicado no Journal of Urban Design apurava quais as melhores soluções de planeamento urbano para cidades “amigas das pessoas com demência” tendo como ponto de partida passeios realizados com pessoas idosas com e sem demência. A principal conclusão: “o exterior deve ser familiar, legível, distintivo, acessível, confortável e seguro”.

Algumas soluções propostas pelo estudo

  • Acessibilidades a curtas distâncias (os participantes com demência não conduziam nem usavam transportes públicos);
  • Ruas com atividade (praças urbanas com lojas, escritórios, cafés e parques, lugares mais fáceis de identificar);
  • Letreiros simples e reconhecíveis nos estabelecimentos;
  • Marcos históricos, como edifícios, memoriais de guerra, igrejas e torres são úteis para as pessoas com demência se orientarem;

Recentemente, em Dronten, uma cidade holandesa, a questão do planeamento urbano foi mais longe ainda. Aqui, construiu-se um percurso adaptado a pessoas com demência que liga uma casa de utentes com Alzheimer a um centro comercial.

Sem muitos sinais mas com indicações claras, neste percurso os passeios são todos iguais e os bancos da mesma cor (verde) para serem mais facilmente reconhecíveis. Para além disso, foi construída uma ciclovia separadamente para não causar confusão.

São ajustes que não são só úteis para as pessoas com demência, mas para a população em geral: mais espaço, mais bancos para descansar, mais segurança para os pedestres.

Em Lisboa, nada parece estar previsto. “Não conheço de facto que esse assunto esteja a ser tratado do ponto de vista do planeamento urbano”, diz Filipa. O que é um problema, claro. “Diz-se que as pessoas devem ficar na sua própria casa. Mas, para ficarem nas suas casas, é preciso que as ruas e comunidades estejam preparadas”.

Por agora, Maria Manuela ainda se perde nos seus passeios diários: ao supermercado, a casa das filhas, ao médico. É o marido quem a ajuda a reencontrar-se. Mas um dia, talvez, também as ruas de Lisboa se lembrem daqueles que se esquecem.

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Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

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