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Nas calculadoras da Caixa Geral de Depósito, a subtração tem sido a operação mais executada desde 2016, no que aos balcões diz respeito: fecharam cerca de 300, meia-centena em Lisboa. A última polémica: o bairro do Rego perdeu a última agência bancária, com a mudança do balcão da CGD.
E se muitos já não precisam de “ir ao banco”, fazendo tudo pela internet, a verdade é que esta operação prejudica sobretudo milhares de lisboetas com idade avançada ou problemas de locomoção, forçados a interagirem com novas tecnologias que desconhecem ou a deslocarem-se até o balcão mais próximo… que nem sempre está tão próximo assim.

Em setembro, nove agências da Caixa fecharam: no Areeiro, Santo Amaro, Praça de Londres, Príncipe Real, Quinta dos Inglesinho, nas avenidas António Augusto Aguiar e Duque Loulé, na rua Dom Francisco Manuel Melo e no bairro do Rego.
O fecho do balcão no bairro do Rego é emblemático: a agência da Caixa, na rua Cardeal Mercier, era a última a funcionar numa zona que historicamente se ressente de ausências, uma espécie de “patinho feio” das Avenidas Novas.
Sem bancos e também sem multibancos
Desde outubro, moradores e comerciantes que antes faziam depósitos, sacavam efetivo e pagavam as rendas a poucos passos de casa, agora têm de se deslocar a outras agências. A decisão não afeta apenas os clientes da Caixa no bairro, mas também os de outros bancos que dependiam do único balcão ainda em operação.
A própria Caixa sugere como alternativa a unidade da Avenida Columbano Bordalo Pinheiro, em Sete Rios, mas esta fica a cerca de um quilómetro de distância e muitas estradas para atravessar, do balcão que fechou. O trajeto é cortado pelas linhas do Comboio, a fronteira de aço entre o Bairro do Rego, a Praça de Espanha e a Avenida de Berna.

A pressão da Junta de Freguesia demoveu a Caixa de fechar já as duas caixas Mutibanco que estavam na parte externa da agora antiga agência. Mas só até dezembro. Ou seja, os moradores do Rego vão entrar em 2023 a contar apenas com duas máquinas, ambas no interior do Minipreço e do Auchan, que só estão abertos até às 21 horas.
A maior parte dos serviços à disposição dos moradores do Bairro do Rego fica agora do outro lado. Ou o outro lado da passagem pedonal sobre os carris da CP, com elevadores em ambos os lados, que passam mais tempo avariadas do que a funcionar, restando assim a opção dos quatro lances de escadas, um esforço e uma dor de cabeça.
Ou o outro lado de várias vias rápidas, como mostra a imagem em baixo: a Av. das Forças Armadas, a Av. dos Combatentes, a Av. das Forças Armadas.

O Bairro é servido por uma única linha de autocarros, o 731 e não tem nenhuma estação de bicicletas Gira.
Moradores unem-se para reverter decisão no Bairro do Rego
Os lisboetas do Rego estão historicamente acostumados ao sinal de menos, a subtrair não por opção, mas por imposição e uma dose de negligência. Na esplanada da Pastelaria Bélgica, na Rua Filipe da Mata, é o ponto de encontro proposto pela comitiva dos Moradores do Bairro do Rego.
É um lugar estrategicamente situado no vértice entre a passagem pedonal sobre os carris da CP e o movimentado ponto de táxi, dois sítios que irão pontuar a conversa.
Quem faz as apresentações é Mário Lopes, 67 anos, antigo profissional do ramo editorial, homem dos livros e sabedor do que pode interessar numa narrativa. Sob o chapéu de sol também estão Glória Monteiro e Isabel Verão, ambas aposentadas na área de telecomunicação, e Teresa Furtado, socióloga, a única não reformada do grupo.

O quarteto é o responsável pela mobilização dos moradores no dia último 22 de setembro contra o fecho do balcão da Caixa Geral de Depósitos no bairro, organizada em tempo recorde e que conseguiu a proeza de unir partidos de campos opostos pela mesma causa, o PSD, que encabeça a Junta de Freguesia, e o PCP, que tem dado voz a esta luta em toda a cidade.
“Reunimos 681 assinaturas em três dias”, diz Mário. “Contamos com a adesão dos comerciantes e até da comunidade cigana”, reforça, fazendo referência ao Bairro de habitação social que termina o bairro, ao pé do Gemini.
A mobilização teve como resultado imediato forçar a Junta de Freguesia a pressionar a Caixa em manter em funcionamento pelo menos os dois multibancos no exterior da agência, até dezembro.
“A maioria dos moradores é idosa, com dificuldades de movimentação”, diz Mário, apontando para uma senhora que lentamente se desloca de andarilho para o táxi na paragem vizinha à pastelaria.
Mário, entretanto, confia em que a Caixa reabra o balcão, nem que seja noutras circunstâncias. “Talvez a junta ou a câmara disponibilizem um espaço sem ónus para que o banco mantenha um ou dois funcionários a trabalharem”, conjetura.
A preocupação gira em torno das limitações de uma boa parcela dos moradores do bairro, com idade avançada e falta de intimidade com o ambiente digital.
“São pessoas que ainda usavam cadernetas de poupança em papel para organizar suas contas, sem cartões multibanco e smartphones, que resolviam tudo no balcão e que agora terão que usar parte da renda, que já é pequena, para pegar um táxi até uma outra agência.”
Mário Lopes

Uma dessas pessoas é Isabel Verão, há 70 primaveras no bairro do Rego, onde nasceu, numa “moradiazinha em estilo português”.
Da bolsa surge uma caderneta de papel, agora também reformada, e o novo cartão de plástico que a substitui e ainda não conhece a “nova” agência, em Sete Rios. “A distância não é o problema, mas o trajeto”, diz Isabel, apontando para a linha férrea que corta o bairro.
Isabel recorda que os comboios sempre delimitaram as fronteiras do Rego, cercado pelo tráfego intenso da avenida das Forças Armadas e do eixo Norte-Sul. Um bairro constrangido pela intransigência dos carris e a fluidez dos automóveis, característica que historicamente levou os moradores a resolverem a vida intramuros.
A moradora lembra-se também do dia em que o anterior presidente da Câmara, Fernando Medina, inaugurou a passagem pedonal sobre os carris com os novos elevadores, a promessa de menor esforço e dor de cabeça aos moradores do bairro abafada pelo ruído dos comboios.

“Hoje, o elevador passa um dia a funcionar, outro parado”, garante Glória Monteiro, 73 anos, uma reformada nascida no Minho e que chegou ao bairro no início do século, quando ainda quatro bancos serviam o Rego.
“Além da Caixa, havia o BPI, o Espírito Santo e o Bilbao-Vizcaya”, diz, forçando a memória.
Glória conta que, aos poucos, cada um dos bancos fechou as portas, até restar apenas a Caixa Geral de Depósitos, que de certa forma beneficiou-se dos clientes deixados “órfãos” após a partida dos concorrentes. Tanto que recentemente trocou de sede, onde hoje funciona uma pequena tasca, por um prédio maior, do outro lado da rua.
“Não faz sentido algum mudarem-se para um sítio maior e depois fecharem as portas”, insiste Mário. “Há no fecho outras razões que a razão desconhece”, filosofa.
“Há um pequeno comércio de proximidade que funcionava em torno do balcão e dos caixas de multibanco, dos saques dos clientes e depósitos em numerário dos patrões, e que agora também pode ficar em situação delicada.”
Mário Lopes
Uma dessas comerciantes é Maria do Céu Araújo, que há 17 anos mantém a loja de arranjo de roupas próxima da antiga agência da Caixa, e que abrigou sob o balcão de vidro do negócio uma das folhas para a recolha das assinaturas dos vizinhos.

“Estou solidária com a causa dos vizinhos, pessoas de idade que levantam a reforma de uma só vez e andam por aí o mês todo com o dinheiro na carteira”, diz Maria do Céu, a fita-métrica a fazer de colar, uma experiente costureira ciente da medida exata das consequências do fecho do banco para os moradores e o seu próprio negócio.
Isabel Verão acolhe as palavras da vendedora com um sorriso breve. Está apressada, precisa de ir ao Multibanco, enquanto ainda pode contar com ele.
Já seguiu o conselho da Caixa e foi à nova agência, em Sete Rios?
“Ainda não fui, nem vou”, responde, em tom de rebeldia. “Vou a qualquer outra, mas não àquela. E não vou só porque é difícil de lá ir, mas por uma questão de resistência, de luta”, completa.
Comissão de Trabalhadores da CGD fala em assédio e descaso
Luta também tem sido a palavra de ordem na Comissão de Trabalhadores da Caixa Geral de Depósitos, desde que o banco acelerou o processo de fecho das unidades, na última década. Cada porta que se encerra é o sinal de umas linhas a mais no rol de problemas que a entidade tem tentado resolver nos últimos anos.
O coordenador da comissão, Jorge Canadelo vê o problema sob dois prismas, o dos clientes e, claro, dos trabalhadores. Às vezes, as perspetivas se encontram. “Quando a Caixa fecha uma unidade e sugere que se use o atendimento digital, está a repassar a rotina e a responsabilidade do banco para o próprio cliente”, analisa.
“No banco, quando algo ocorre mal, a responsabilidade é do funcionário. Na aplicação, o erro recai sobre o cliente.”
Jorge Canadelo
“O problema é que a esmagadora maioria dos clientes não está preparada para tal”, continua Jorge.
Jorge garante que não há uma justificação plausível para os fechos dos balcões em Lisboa, nem mesmo sob o aspeto financeiro. “Muitas das agências que se encerram apresentavam balanços bastante positivos. Na prática, o encerramento reduz a capacidade de captação de clientes e de recursos do banco, o que não faz sentido. Quem fecha uma porta para que o dinheiro não entre?”, interroga. Para ele, o fecho do balcão no bairro do Rego é um exemplo “gritante” de desrespeito com os lisboetas.
“A Caixa como um banco público tem o compromisso registado na sua missão institucional de garantir os serviços bancários aos portugueses.”
Jorge Canadelo
Contatada pela Mensagem, a Caixa Geral de Depósitos não respondeu, embora Paulo Macedo já tenha explicado que o fecho dos balcões responde à pouca procura dos clientes – inserido-se no plano de recuperação da entidade, negociado com Bruxelas. O banco não se pronunciou a respeito da situação específica do bairro do Rego e se pretende repensar a situação no caso específico da localidade.

O coordenador da Comissão de Trabalhadores não se espanta com o silêncio do banco. “A nós também não nos respondem”, garante Jorge.
Oposição cobra atual e antigo presidentes da Câmara
O termo “descaso” consta no glossário do vereador do PCP na Câmara de Lisboa, João Ferreira, desde o início uma voz que se juntou ao coro dos moradores do bairro do Rego contra o fecho dos balcões.
“O bairro do Rego é um caso exemplar da falta de planeamento e do descaso do poder público com a cidade de Lisboa. É um bairro central, em plena freguesia das Avenidas Novas, com habitações, serviços e comércio de proximidade, que fica de uma hora para a outra sem o serviço básico de um banco”, diz o comunista.

“Aconteceu o mesmo com as agências dos CTT, os centros de saúde e as esquadras de polícia. É um crescente esvaziamento dos serviços de Lisboa pelo Estado”, continua.
O PCP levou à CML uma moção contra o fecho dos balcões da Caixa Geral de Depósitos. “Mesmo sendo uma decisão da Caixa, ela tem como acionista único o Estado, que muda tudo. O presidente da Câmara da maior cidade do país, da capital do país, tem um peso político próprio e poderia exercer essa influência em nome do interesse dos lisboetas. Mas não o vemos nem o ouvimos a falar sobre o assunto”, critica.
As críticas apontam também Fernando Medina, atual ministro das Finanças, ministério ao qual o banco público está vinculado. “Ambos não têm o direito de se alienar do que está a acontecer.”

João Ferreira ainda crê que a situação no bairro do Rego pode ser revertida, isso se, insiste, a Câmara de Lisboa unir-se à luta dos moradores do bairro e convencer o banco público a deixar de pressionar apenas a tecla de subtrair da sua calculadora.
Isso bastaria para aliviar a sensação de isolamento de um bairro que, no fundo, está tão no centro da cidade.

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Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
Há uma pequena imprecisão no vosso artigo: Fernando Medina é ministro das Finanças e não da Economia.
Um banco não é só uma instituição financeira, tem um papel social. A Caixa mais ainda. O Estado tem a obrigação de lembrar a Caixa desse papel. Um banco público não pode fugir… do público.
Eu vivi no bairro durante os últimos 40 anos e mesmo antes era visita frequente pois um familiar próximo habitava num res do chão na rua Francisco Tomás da Costa. É a história dum bairro abandonado pela CML, que durante anos a fio isolou crescentemente a zona, dificultando as acessibilidades e abandonando a sua sorte uma população mais idosa.
Nos anos 90 o bairro foi convertido numa espécie de bairro social albergando uma significativa concentração de habitação social. Algumas moradias foram renovadas a expensas dos moradores mas sem a CML melhorar a mobilidade. Numa área dominada por uma população idosa em vez de melhorar os passeios e facilitar o interface com os bairros circundantes, construíram um túnel sob a linha do comboio sem passagem para peões e um passadiço com uma altura de 3 andares em que o acesso aos ascensores encerra as 19h. Zonas de estacionamento críticas para os habitantes foram convertidas em pistas para trotinetes. A parte residencial mais tradicional (extra habitação social) tem vindo a ser convertida em residência de estudantes universitários. Se por um lado isto trouxe uma renovação etária tem um impacto negativo no espírito de comunidade.
Apesar da notável resiliência desta comunidade o despotismo iluminado que inspira algumas correntes de urbanismo está a destruir um certo equilíbrio que se havia construído. A política anti-automóvel / transporte individual escamoteia o quão importante é este meio de transporte para assegurar a autonomia dos grupos etários mais idosos. E simultaneamente a ameaça e o risco que veículos eléctricos (sobretudo trotinetes e velocípedes) representam para os peões ao invadir a seu belo prazer os espaços pedonais.
Ainda recentemente o isolamento do bairro foi reforçado com os arranjos na Praça de Espanha que tornaram ainda mais difícil o acesso para quem vem da av Calouste Gulbenkian. Depois da saída da CGD vai seguir-se a estação dos CTT e interrogo-me sobre o gradual desaparecimento de outras âncoras em termos de comércio e serviços como veio mostrar o encerramento do antigo centro comercial Gemini. Qual será o futuro de referências históricas como a Adega da Tia Matilde?
A dimensão humana da cidade está para além da curiosidade antropológica suscitada pela comunidades africana, cigana e europeia da cidade – é sobretudo a capacidade de internação e vivência em harmonia destas comunidades. As histórias de espaços como o cinema Bélgica, que após o 25 de Abril foi cinema Universal e marcou a geração do Rock Rendez-Vous, O edifício da Soeiro Pereira Gomes que foi ponto focal de muitos telejornais. Tudo isto se vai esvair como água na areia se persistir a pseudo-modernidade da mobilidade “doce” que na realidade não passa duma mistificação pois exclui vastos grupos da população e desvia recursos que deveriam ser empregues na melhoria dos transportes públicos.