
Na escola Mestre Arnaldo Louro de Almeida – ou MALA como é mais conhecida – no Bairro do Rego, nem durante o confinamento e encerramento dos estabelecimento de ensino devido à pandemia estes corredores se esvaziaram.
Transformada em escola de acolhimento para o 1º e 2º ciclos do agrupamento Marquesa de Alorna, a MALA acolheu crianças em situações de risco, de famílias monoparentais ou com dificuldades no digital e filhos de profissionais essenciais (de saúde, alimentação e forças de segurança). Na escola como no bairro, as frentes de trabalho são muitas para dar resposta às desigualdades, agravadas pela pandemia. Por isso, multiplicaram-se também as mãos que apoiam.
O agrupamento Marquesa de Alorna é um dos 14 Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP) da cidade de Lisboa – em parte devido ao bairro do Rego, que abriga três zonas de habitação social geridas pela Gebalis. O rótulo TEIP significa que as escolas notificadas recebem mais recursos para suprir necessidades acrescidas.
Na MALA, o desafio do confinamento traduziu-se em salas cheias de professoras, terapeutas e mediadoras sociais. E num difícil exercício de gestão para compatibilizar aulas síncronas (online), serviços de apoio social e psicológico, apoio a alunos com Necessidades Especiais, terapia da fala (para quem precisa) e vários anos de escolaridade. Novas soluções para problemas antigos.
Diariamente, Maria Jorge Figueiredo, coordenadora do 1º ciclo do agrupamento, visita a escola primária do Rego, a cinco minutos do ISCTE.
“O meu trabalho tem sido muito centrado na resolução de dificuldades informáticas”, explica a coordenadora. “Trabalhámos com a aplicação Teams (no ensino à distância) e muitas vezes nem as crianças nem os pais, principalmente de camadas sociais mais desfavorecidas, estão preparadas para trabalhar com estas plataformas. Conclusão: não basta dar-se um computador, também temos que ajudar.”
“Os pais são sobretudo pessoas de franjas desfavorecidas, minorias étnicas ou famílias em situação de risco – emocional ou social.”
Maria Jorge Figueiredo, coordenadora do 1º ciclo.
São muitas as famílias com iliteracia digital ou mesmo analfabetismo funcional. A falta de competências digitais ou parco acesso à escolaridade dos pais causa desvantagens à partida para estas famílias que, durante o confinamento, não conseguem ajudar os filhos em casa. “Os pais são sobretudo pessoas de franjas desfavorecidas, minorias étnicas ou famílias em situação de risco – emocional ou social”, esclarece Maria Jorge.
“As instalações são ótimas e a população muito heterogénea, o que reduz o estigma de gueto.”
Ana Luísa Pires, coordenadora da escola

O insucesso escolar não é novidade, apesar dos esforços em contrário. E está diretamente ligado a situações de pobreza, assevera Ana Luísa Pires, coordenadora do estabelecimento. “Nesta escola, o nível de sucesso escolar ainda é baixo.”
No entanto, “as instalações são ótimas e a população muito heterogénea, o que reduz o estigma de gueto.” A colega Maria Jorge corrobora. “Temos mais de 50% de crianças com escalão A e B (no 1º ciclo). É muita gente.”
“Estar bem” é uma questão de justiça social
A poucas ruas de distância, noutra mesa de trabalho, também se estudam cronogramas em mapas de Excel. Joana Mouta, Eugénio Silva e Ariana Moreira, responsáveis da associação Passa Sabi, espalham os horários escolares de várias crianças do bairro.
Junto aos prédios de habitação social da rua Augusto Abelaira, no Rego, são muitas as associações no espaço do piso térreo, pintado a toda à volta com graffitis. Aqui, todos se conhecem pelo nome: moradores, funcionários e voluntários – alguns preenchem mais que uma categoria. Foram os moradores, aliás, quem iniciou o projeto, fundado em 2014 por Nélson Gonçalves e pelo próprio Eugénio, e ainda hoje contribuem para o manter.
A proximidade transparece para os papéis de registo: Joana identifica cada criança com uma cor diferente e o nome próprio. “A vantagem das associações é que em qualquer momento se podem adaptar às necessidades reais da comunidade, ao contrário das estruturas estatais”, diz.

A pandemia veio estragar-lhes os planos para 2020 e rapidamente tiveram de se adaptar a novas exigências. Iniciaram o projeto “AntiVírus”, financiado pelo programa Bip/Zip, de conexão virtual no apoio ao estudo, para chegar onde a escola não é capaz de atuar.
Distribuíram 18 tablets de um doador privado a crianças a que equipamentos ainda não tinham chegado. E criaram uma Mercearia Social que auxilia 384 famílias, firmaram um sistema de pontos que recompensa reciclagem – de que a Mensagem já deu conta.
Se o insucesso escolar atinge valores elevados nos alunos do 1º e 2º ciclo da zona, a situação é ainda pior para os mais velhos, explica Joana. “Temos aqui crianças com sete negativas na pauta. É por esta altura, 7º, 8º ano, que eles começam de facto a ficar para trás e a sentirem-se esquecidos.” Muitas delas têm familiares com trabalhos essenciais e, na fase crítica da pandemia, as crianças mais velhas ficaram em autogestão. “Hoje, 20 minutos podem significar um grande apoio mais tarde na educação destas crianças.”
A cria mais jovem do bairro do Rego
Para compreender como o bairro chegou a este ponto, é preciso viajar no tempo. O bairro Santos ao Rego nasceu em 1180, de uma expansão dos campos que o rodeavam. Em 1890, mais de sete séculos depois, a construção da Linha Férrea de Cintura, onde se integrava a estação Rego-Lisboa, fomentou o crescimento e a prosperidade das Avenidas Novas. Mas os trilhos do caminho de ferro separam-na, fisicamente, do Rego e o bairro, uma bolha no centro pulsante de Lisboa, fecha-se sobre si próprio.

“O Rego é o parente pobre da freguesia”, atesta, simplesmente, Ana Luísa Pires, coordenadora da MALA. Este ano marca duas décadas desde a implantação do Programa Especial de Realojamento (PER) no Rego, em três zonas de intervenção. Em maio de 2001, a Gebalis, que tinha a Habitação Municipal de Lisboa, iniciou o realojamento das zonas de Quinta das Freiras, Avenida Santos Dumont, Quinta José Alvalade e Quinta das Covas em casas de habitação social no Rego. Ou seja, até há escassos 20 anos, as famílias que hoje habitam nestes prédios viviam em barracas.
Ainda antes de haver casas para morar, já havia Passa Sabi. “A expressão, em crioulo, significa estar bem, mas também um local de encontro, um sítio onde se estava bem!”, explica Joana. Este já era o nome que se dava ao lugar de convívio do “bairro antigo”, ainda no tempo das barracas. Foi este conceito que Nélson e os outros fundadores quiseram apropriar e que a associação atual quis manter.
“A pobreza em Portugal só se quebra em cinco gerações. A única forma de pular este elevador social é através da educação.”
Joana Mouta, associação Passa Sabi.
Nas traseiras da associação, um graffiti sintetiza a missão. “O letreiro foi feito em parceria com artistas do Festival Iminente. Foi um projeto incrível, com as crianças, que ajudaram na pintura. E foram elas que escolheram o slogan. Pedimos-lhes para pensar no que queriam escrever, no que achavam que era mais importante e resumia tudo isto. Ainda vieram umas ideias sobre igualdade racial, mas, no final, Todos cuidamos de todos foi o mote vencedor. É o que elas acham que se faz aqui”, diz Joana.

Afinal, o que mudou nas últimas duas décadas? “A pobreza em Portugal só se quebra em cinco gerações. A única forma de pular este elevador social é através da educação”, diz Joana. O espírito de entreajuda que é fabricado aqui, diariamente, pelas mãos das crianças (às vezes, com tinta à mistura), é parte da receita de um pedaço de bairro onde todos moldam um pouco.
* Luzia Lambuça é vilafranquense de coração e lisboeta por opção. É estudante de Ciências da Comunicação e está a estagiar na Mensagem ao abrigo da parceria Repórteres de Bairro. Este texto foi editado por Álvaro Filho.
Excelente artigo!
Parabéns pela publicação, que vou partilhar, não só para acabar de ler, como para divulgar.
Excelente artigo Luzia Lambuça, vamos ouvir falar muito de ti.
Santos era um construtor civil que por volta de 1930/1934 construiu muitas das casas no bairro do Rego que hoje tem o seu nome, de modo que escrever que o Bairro Santos ao Rego nasceu em 1180 é um disparate sem pés nem cabeça. Por outro lado, a avenida chama-se Santos Dummont, aviador brasileiro, e não Santos Drummont.