Há muitos aspectos em que as ruas são como as pessoas: têm uma fachada que as caracteriza, um espírito próprio e, claro, um nome. Algumas são personagens redondas, outras cabem inteiras na esquina de um quarteirão. Dão à cidade de Lisboa um colorido próprio, mesmo quando é difícil rivalizar com a paleta do seu casario. Caminhamos enquanto conversamos?
Antes do olhar em direcção às placas de mármore onde aparecem em caracteres serifados, fazemos um breve desvio neste passeio. Já que a toponímia é o tema – e porque a raiz dos nomes dá coordenadas para a sua compreensão – o que nos diz a própria palavra?
Topos. Território. Uma palavra tão sumarenta que parece difícil de extrair a totalidade dos seus sentidos. Daí chegamos à segunda metade da palavra, onde não é preciso um neo-noir para a entendermos. Estamos a falar da arte de dar nome aos sítios.
Em Lisboa, os nomes das ruas são parte do charme, confundem-se com a história da cidade. Ajudam-nos a visualizar para onde vamos, revelam o à vontade com que nos movemos. Sugerem didascálias religiosas, sociais, naturalísticas, assim como autênticos cultos de personalidade. A nobreza de certas figuras anda de mãos dadas com os feitos belicistas de outros. Só que as pedras da calçada parecem importar-se pouco com isso (a responsabilidade deve ser de quem as pisa).
As ruas precisam de nomes por vários motivos, mas sobretudo para os humanos (e as encomendas da internet) chegarem onde é suposto. Felizmente, um olhar mais atento para estes marcadores verbais permite-nos fazer telepatia com as percepções da cidade.
Confesso que senti alguma desilusão quando voltei a acertar numa rua com nome de navegador. Logo eu, que li e reli A História Trágico-Marítima para afundar de vez a minha percepção datada da exploração Atlântica.
Pensei que este era o preço a pagar pela glamourização do período imperial, onde a coragem ao leme era o maior dos feitos. Lisboa ainda parece flutuar nesta era naútica, mas há cada vez mais remadas contra a maré.
Como gosto de pensar que tenho um ouvido para os nomes – e porque a minha profissão me levou a desenvolver a tarefa do naming (dar o nome) para clientes de grande exigência, tenho alguns preferidos.
A Rua da Rosa, na sua simplicidade e aliteração, parece-me o nome perfeito. E foi para servir de base a uma sitcom. Ou, se preferirem, a uma série melodramática em que uma florista se esforça para enviar os filhos para a universidade, mesmo sabendo que esse será o fim do seu negócio familiar.
A Triste-Feia, pelo quanto é portuguesa, na capacidade de condenar alguém ao ridículo, a começar na sua alcunha. De tão pitoresca, ganha contornos únicos. Destaca-se pela negativa, mas destaca-se.
Certos detalhes toponímicos também nos podem mostrar como o tempo passou, revelando algo do passado que o rosto da rua fez por apagar. Um bom exemplo disso, e um cantinho simpático para fumar cigarros quando não faz vento, são as Escadinhas da Praia, ali em Santos. Ainda há escadinhas, mas a praia já foi.
Outro fenómeno que acho adorável, é o facto de certas ruas ganharem um novo sentido face à evolução das palavras e da própria linguagem. Tenho um exemplo que ajuda a explicar o fenómeno. A Rua dos Fanqueiros, que deveria denominar a zona dos lojistas de fazendas, agora soa-me sempre a uma rua que junta apreciadores de funk.
Há certas ruas que trazem prestígio com elas, outras que trazem chatices e trânsito. Estas percepções ficam coladas aos nomes, como se andassem de mãos dadas com eles.
“Eu estou a viver nas Trinas, pá” – disse-me um amigo, com um orgulho que reconheci ser semelhante ao meu quando dizia que vivia na Travessa da Conceição à Lapa. Perguntei-lhe logo se o Fernando Pessoa ainda subia por lá, para ir namorar a Ofélia e ele ficou a saber mais um desses conhecimentos triviais que saem das ruas para as nossas histórias.
Ainda assim, o cheiro de uma rua pode ser muito mais notável que o seu nome. Havia uma colada ao Bairro Alto em que a laranjeira funcionava como amostra de perfume, toda a gente podia sentir a sua fragrância cítrica.
Outras, conhecidas por uma loja que atrai meio mundo (como os Porfírios que não cheguei a conhecer). O restaurante, pequeno, de esquina, pode trazer-nos mais memórias do que qualquer onomástica. E as pessoas são capazes de transformar ruas aparentemente banais em algo de extraordinário – como se ruas secundárias pudessem ser artérias centrais.
A verdade é que a toponímia já serviu para me salvar – o nome de uma rua conhecida pode ter efeitos de bóia de salvação quando estamos sem bateria no nosso tão recente modelo de smartphone. Mas também me acontece o inverso, o nome de uma rua onde outrora estive perdido pode demonstrar o quanto agora conheço bem uma zona.
Essa é a minha sensação toponímica preferida, sentir que o outrora alheio, agora me é familiar. Ser capaz de fazer o mapa mental de um quarteirão (com ou sem sentido de orientação). Foi também o motivo pela qual escrevi esta crónica, uma esperança de que nesta sensação minha, houvesse uma sensação que alguém, desse lado, também partilhasse.
Espero que seja familiar para quem lê, porque dá espírito ao corpo do tempo. E, sobretudo, dá beleza ao quotidiano de Lisboa. Uma poesia de todos os dias. Afinal, a cidade é um ecossistema vivo, mas também pode ser um dicionário. Sobretudo quando continuamos a encontrar sentidos (e novas histórias) para nomes que nos parecem tão habituais.
* Nasceu em Setúbal, mas sonhou com Lisboa desde cedo. Aproveitou a carreira em publicidade para se mudar para a cidade e entretanto já passou uma década a mudar de apartamentos. É pós-graduado em Artes da Escrita pela FCSH, onde ganhou forças para perseguir os seus sonhos literários. Sente que Lisboa o aceitou e continua agradecidíssimo por isso. Twiter: @infinitogesto