Há quase seis décadas que a mente deste homem não sossega sempre que pisa uma rua. Manuel trava o passo, já lento – de quem chegou para admirar o cenário – e deixa o ombro esquerdo descair sobre um dos pilares da colunata que suporta o arco triunfal da Rua Augusta, um marco até para os mais alheios à paisagem de Lisboa. Combinámos partir dali, das portas da capital, onde há décadas se tornou boletineiro. A profissão, agora extinta, consistia ser uma espécie de carteiro que entregava telegramas pela cidade, sempre de fato e em cima de uma bicicleta. Manuel Lopes, 72 anos, barba farta e grisalha, ainda chega de sacola sobre um dos ombros – hábito dos tempos como carteiro -, anda de mãos nos bolsos, olhar atento e sempre alçado para o céu.

Os olhos procuram os nomes das ruas, algumas daquelas às quais deu nome.

Assalta a sua atenção uma estrutura talhada, aparentemente de mármore, pousada no alto, mesmo no arranque da curva do Arco. Tem nela inscrito o nome da rua que aqui começa e sobre ela Manuel Lopes diz saber tudo: de onde vem esta designação, por que razão a placa está afixada neste ponto e como é responsável por demarcar a numeração de cada casa. “90% das pessoas, mesmo as de Lisboa, pensa que Augusta era uma senhora”, lamenta. “Augusta Figura do Rei” é, afinal, o nome completo desta rua: uma homenagem ao monarca D. José I, o mesmo que está na estátua equestre da Praça do Comércio, mesmo diante do Arco.

Manuel Lopes numa das ruas da sua Lisboa. Foto: Catarina Reis

Não é demais dizer que o conhecimento que Manuel Lopes detém sobre ruas nem tão pouco começa e termina nas vielas mais célebres da cidade, e que afinal sabe tudo sobre todas elas. Foi à toponímia que dedicou toda a sua vida profissional, desde que tem 16 anos. E terá sido o maior padrinho de nomes de ruas da Grande Lisboa: suas já lá vão mais de 1300 propostas e acima de 300 oficializadas. Não gosta de as ver sem nome.

“Se uma ambulância quiser ir a uma rua e ela não tiver nome, vai andar perdida. E um segundo que se perca pode corresponder a uma vida.”

MANUEL LOPES

Um desejo que agora recolhe apoiantes na Assembleia Municipal. No início de fevereiro, o grupo municipal do Partido Popular Monárquico (PPM) apresentou, em reunião de Câmara, uma proposta para acabar com as ruas cujo nome é um número. Querem dar-lhes realmente um nome, uma palavra e não um algarismo.

Aline Hall de Beuvink, representante do grupo municipal do PPM, explica que “o que motivou a apresentação desta proposta foi o número de queixas que já foram feitas ao gabinete sobre a dificuldade que muitas pessoas, que habitam em ruas que possuem números e não nomes, vivem”. “O facto de as ruas serem numeradas e não individualizadas com nomes próprios dá azo a que sejam confundidas com os números das portas, o que implica dificuldades em coisas tão simples como receber o correio ou, ainda por cima em tempos de pandemia e confinamento, não chegar a encomenda ou o jantar requisitado por desvios no próprio sistema de GPS. Pior: em caso de necessidade vital, como pedido de uma ambulância ou outro tipo de socorro, a confusão que por vezes provoca é de tal ordem que pode colocar alguém em perigo de vida”, disse, em entrevista à Mensagem.

Ainda com o voto contra do PS, que alegou “questões financeiras”, a proposta foi aprovada por maioria, no início do mês de fevereiro.

Como o Restelo acendeu o rastilho

A paixão que tem por nomes de ruas , que consegue transformar a sua timidez habitual em conversas de horas sobre o tema, “começou por uma necessidade”, recorda.

Para compreender a sua história, como todas as outras, é preciso retroceder até ao início da cronologia. Manuel Lopes nasceu “no monte, nem sequer foi numa aldeia, foi no monte”, no distrito de Castelo Branco. A primeira vez que saiu daquele pequeno mundo de onde só via a vegetação que o circundava, nem imaginando a vida que se erguia para lá daquela muralha verde, foi aos 14 anos, para trabalhar num hospital de Lisboa.

Foi uma experiência curta, motivada por algumas “asneiras”, aquelas “que a idade exigia”. Por isso, regressou à terra. Bisou a viagem em direção a sul não muito depois, já aos 16 anos. Corria o ano de 1964. Desta vez, era contratado como boletineiro, uma palavra desconhecida para os tempos modernos, profissão de ninguém atualmente.

Ser boletineiro foi, durante os anos em que a distribuição de telegramas existiu, a paragem obrigatória antes de arrancar para uma carreira como carteiro. “Era um contrato temporário com a empresa: no dia em que fizéssemos 21 anos, acabava. Ou passávamos a carteiros ou íamos embora”, lembra Manuel. E para ficar “bastava um comportamento razoável”. E o que era um comportamento razoável estava também adaptado a outros tempos: não contestar, por exemplo, usar o smoking todo o dia, sem nenhum acrescento ou subtração (nem um cachecol a mais no Inverno, nem sem gravata no Verão), e era assim que pedalavam em cima de uma bicicleta pelas ruas da cidade. Manuel admite ter barafustado algumas vezes. “Tinha frio, não ia pôr um cachecol?”.

Entrou para a profissão com “a cunha de um tio, que lá trabalhava nos Correios”. Era, aliás, com cunhas que se entrava naquele prefácio de carreira, conta. Não por acaso “os boletineiros da altura eram quase todos da Beira Baixa, nomeadamente de Malpica [do Tejo] e Monforte, alguns de Monsanto”. Um ia trazendo o outro, reforçando o ciclo geográfico fechado.

Ainda na Rua Augusta, Manuel olha para trás e recorda como a viagem começou exatamente ali, no Terreiro do Paço, onde tomou posse pela primeira vez.

Conseguimos adivinhar a sua mente em maratona pelas memórias daquele tempo, enquanto fixa um olhar vazio no local onde alguns turistas olhavam o rio Tejo, antes de a pandemia voltar a confinar a cidade e o país. Para Manuel, o Terreiro do Paço esvaziou por segundos, não há elétricos vermelhos a içar bandeiras de mil e uma cores e feitios, apenas passos regrados em direção à cerimónia, apenas a vida daquele dia em 1964 que já não é.

Para trabalhar, partia todos os dias da Praça D. Luís, onde existia o quartel general, que intercetava uma zona conhecida, na altura, como o Aterro – como, aliás, lembra Eça de Queirós n’Os Maias, no relato do primeiro encontro fatídico entre Carlos da Maia e Maria Eduarda. Não durou muito por estas bandas, porque passados uns meses estavam a convidá-lo para cobrir uma outra divisão, mais deficitária em recursos humanos – Algés. Lá foi, sem saber que seria ali que ouviria pela primeira vez a palavra “toponímia”. “Até aqui, era uma palavra completamente desconhecida”.

Um meio urbano desorganizado e um caderno. Foi assim que começou a sua jornada. Já ao serviço em Algés, Manuel depara-se com um problema resistente na zona do Restelo, “na altura a mais rica de Lisboa”, onde tinham morada inúmeros doutores e engenheiros.

O pronome de tratamento que seguia inscrito no destinatário dos telegramas comprovava-o. “Dr. Qualquer Coisa, Restelo. Eng. Qualquer Coisa, Restelo. Os telegramas só vinham com esta indicação”, sem pista da rua, casa ou andar em que o destinatário morava, ainda que as ruas já tivessem nome pelo menos desde 1955, lembra. Manuel “andava às aranhas para entregar aqueles telegramas, se não tinha nenhum colega mais velho para orientar”.

Não tardou até comprar um pequeno livrete, onde gravou um roteiro, apontando as ruas e o número da porta correspondente a um nome. Fê-lo com letra delicada, perfeitamente demarcada entre as linhas, sem que a ponta de uma única sílaba se revoltasse borda fora, como se tratasse do projeto da sua vida. “E foi com isto que comecei a desenrascar-me.”

Manuel Lopes começou por registar o nome das ruas num pequeno livrete que ele mesmo comprou.

Começou ali uma pequena obsessão por ruas e pelos seus nomes – ou a falta deles. Não há dúvida de que cada rua merece o seu, opina. “Pelo lado histórico-cultural, por uma questão de preservação e divulgação da cultura. De outra forma, não saberíamos quem teria sido um Elias Garcia”, exemplifica. Jornalista, professor, político republicano e coronel no Exército Português.  “Pelo lado da funcionalidade, posicionando-nos antes de haver GPS, se uma ambulância quiser ir a uma rua e ela não tiver nome, vai andar perdida. E um segundo que se perca na viagem de uma ambulância pode corresponder a uma vida.”

Assim como um boletineiro e um carteiro trabalhariam sem qualquer bússola na hora de entregar o papel. E conta a seguinte história: “Em Tunes, no Algarve, andava lá o carteiro e não precisava de nomes de ruas nem nada, porque já conhecia toda a gente. Um dia, teve a infelicidade de adoecer e puseram lá outro, que não conseguiu entregar carta nenhuma. Foi remédio santo, porque passado pouco tempo estavam lá os nomes das ruas.” Quantas cartas não ficaram perdidas por falta de um nome? Suspira.

O batismo da primeira rua

O 25 de Abril trocou as voltas a Manuel e a todos os que trabalhavam na sua área. “Tudo mudou”. Quando irrompe a revolução, “as câmaras quiseram mudar o nome das ruas” e, “só de uma vez, num espaço de um mês ou dois, foram 100 e tal ruas que a Câmara Municipal de Lisboa alterou.”

Já como divisor na área de distribuição de telegramas, e não um mero boletineiro, nessa altura um colega propõe a um chefe que seja Manuel a agarrar a pasta urbanística. “Tu que gostas tanto destas coisas”, terá dito. “Comecei a ter contactos aqui e ali com a Câmara Municipal de Lisboa, ainda na Praça do Município, ia lá falar com um senhor com quem tinha várias reuniões e, um dia, ele diz-me assim: ‘Ouça lá, porque é que você não propõe nomes? Anda sempre a dizer que aquela e aquela não têm nome’. Foi então que fiz uma proposta lá para o Bairro dos Sete Céus.”

Uma ata municipal datada de 1987 oficializou a vontade: “Proposta n.º 273/86, submetida à votação e aprovada, por unanimidade, em reunião camarária realizada em 22 de Dezembro último, dando o nome de Ruy Cinatti a uma rua de Lisboa”, em homenagem ao poeta, nascido em 1915 e 1986. Na mesma, a autarquia emitia “parecer favorável” sobre outras seis ruas no bairro cujo nome foi proposto por si: Rua João Lourenço Rebelo, Rua Vasco de Lima Couto, Rua Joaquim Cordeiro, Rua Maria Júdice da Costa, Rua António Aleixo.

Foi em 1987 que ficaram registadas, em ata municipal, as primeiras ruas às quais Manuel deu nome, no Bairro dos Sete Céus.

Assim começou uma fase da sua vida que duraria além da reforma, e que faria dele reconhecido entendido da toponímia – embora se consagre apenas como um entusiasta – e parte integrante de algumas das maiores revoluções na área, como a origem do código postal, em 1978. Trabalho que só adensou o interesse por ruas.

O município quer dar mais nomes de mulheres a ruas, praças, parques e edifícios célebres na cidade. A presença de nomes femininos ainda é rara.

“Não queríamos publicar uma lista de código postal com ruas sem nome. E foi aí que eu me comecei a aperceber que, afinal, não era só em Lisboa. Só em Sesimbra, era à volta de 650 ruas sem nome. Na freguesia de São Domingos de Rana, eram umas 300. O código postal assim não ia a lado nenhum. Por isso, comecei a fazer propostas a torto e a direito.”

O proibido na hora de dar um nome

O que é que acontece a partir do momento em que se propõe o nome de uma rua até este ganhar forma numa placa? “Pode ir um grande passo. Depende dos sítios. Na cidade de Lisboa, vai um grande passo. Em Almada, é rápido, por exemplo. A comissão de toponímia da Câmara de Lisboa costuma ter em carteira mais de três mil nomes para ruas, enviadas pelos cidadãos. Depois, aprovar pode levar meses ou anos.”

Em parte, explica, devido à cerimónia de inauguração de um novo nome na cidade. Ridiculariza: “Não percebo essa necessidade de destapar o pano, tirar umas fotografias, fazer uma festa. É um dever da autarquia dar nome às ruas.”

Na falta de proatividade dos representantes camarários, os cidadãos tomam o seu papel. Manuel Lopes garante que é a pessoa que mais apadrinhou placas de ruas. Entre as mais de 1300 propostas, para lá de 300 já foram aprovadas. A vasta maioria no concelho de Lisboa, Sintra e Cascais, outras em Almada, Setúbal.

Manuel tem na ponta da língua as regras do jogo: que nomes podem ser impressos em ruas? Há um regulamento, explica, que ele próprio adaptou, quando ainda integrava os CTT, e que distribuiu pelo país. “A maior parte das câmaras do Norte de Portugal, nomeadamente Trás-os-Montes, nem regulamento tinham.”

Dita este documento que devem ser, “de preferência, figuras de relevância nacional ou local”, no máximo também internacional. “O importante não é só um doutor ou engenheiro: um sapateiro de uma determinada freguesia pode ter sido uma pessoa importante.” Para si, a importância não é uma ciência, mas uma dança de nuances. Em princípio, continua, “não se dá nomes de pessoas vivas”, regra perante a qual se opõe, adepto do prazer que daria a alguém chegar a ver, em vida, uma rua designada com o seu nome.

Conjugar Lisboa mais no feminino

É com estas regras em mente, mas pronto para as quebrar sempre que for preciso, que vagueia pelas ruas incógnitas à procura de um título. Um passeio já não é só um passeio. Sempre que dá corda aos sapatos porta fora, Manuel não vê a calçada portuguesa, edifícios altos e baixos, de pedra ou de betão. Não são as janelas que aprecia, nem tão pouco as pessoas de hoje que lhes atravessam em frente e ali ficam refletidas. Manuel vê os poetas, músicos e políticos que contam a história das cidades nas suas páginas mais envelhecidas, recorda-lhes a vida e grava-os na memória para que, talvez um dia, possam vir a dar nome a uma rua.

Segue para uma biblioteca, os dias que forem necessários, para folhear a história de Portugal à procura de tudo quanto mais conseguir saber sobre o nome que lhe assaltou a mente. Daqui, segue uma biografia que anexa à proposta oficial. “Não basta dar nome, é preciso saber porque é que ele lá está”.

A partir da década de 90, a preocupação começou a ser outra: incluir mais mulheres no processo. Atualmente, apenas 15% das ruas em Portugal está no feminino. Em Lisboa, “já foram menos”, aponta.

“O ditado diz que atrás de um grande homem está sempre uma grande mulher, mas, a meu ver, é ao lado que ela está sempre – mas ele é que ficou com a visibilidade. Se formos comparar algumas das biografias das figuras masculinas com as figuras femininas que estão ao lado dele, a mulher fez mais do que o homem, mas ele é que ganhou o título.” Além disso, a biografia que precede uma proposta “demora tempo a escrever e é dos homens que vamos encontrando mais informação disponível”. Conjugar mais a cidade no feminino está nos planos da autarquia.

A Câmara Municipal de Lisboa anunciou, no final de 2019, o I Plano Municipal para a Igualdade de Género, onde inclui dar mais nomes de mulheres a ruas, bem como praças, parques e edifícios célebres na cidade. O plano entrou em vigor no ano passado e deverá durar até setembro de 2021.

Manuel tem 30 mil biografias preparadas para que sirvam de base para a nomeação de outras ruas na cidade.

Mas não são só os nomes por dar que cativam a atenção e o tempo de Manuel. Admirador nato das placas que não significam mais do que uma bússola para a maioria dos transeuntes, ainda era ele um trabalhador ativo nos CTT quando começou a escrever a biografia dos nomes que já tinham rua atribuída. “Comecei também a olhar mais para os nomes das ruas que já existem e a perguntar cá para mim: ‘quem foi o tipo que dá nome a esta rua?’. Arrancou, ainda não existiam computadores.

Hoje conta com quase 30 mil biografias. Fá-lo apenas pelo prazer de descobrir, porque o destino desta obra ainda não o adivinhou.

E depois de tanta dedicação à toponímia, tantos batizados corporizados nas ruas portuguesas, Manuel já seria merecedor de uma placa sua? “Eu? Não sei. Depois de morto, talvez…”.

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Catarina Reis

Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.

catarina.reis@amensagem.pt

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2 Comentários

  1. Relato extraordinario.
    Parabens, Manuel Lopes pela tua dedicação à causa.

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