Daniela Pinheiro olha atenta o minúsculo ecrã luminoso da máquina fotográfica. “Já avisei para ele”, diz ela à fotógrafa, apontando na minha direção. “Pode escrever o que quiser, contanto que saia bem na foto”, completa, abrindo um sorriso de aprovação pelas imagens que se sucedem no visor. “Ah, está bom, muito bom, parabéns!”
Jornalista experiente, sabe o poder de uma imagem. E não só. Reconhecer as múltiplas facetas do poder tem sido o métier de Daniela nas últimas três décadas. Nascida em Brasília, o coração da política do Brasil, Daniela travou um constante tour de force com os poderosos, os políticos, os pastores evangélicos e até dirigentes de futebol.
Um confronto nem sempre proporcional.
O último deles, com o clã dos Bolsonaro, acabou por precipitar a saída da jornalista do Brasil, em 2020, quando o deputado e filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, a processou pela publicação de uma matéria na revista Época, da qual Daniela era a chefe de redação, sobre a atuação da mulher do político como coach motivacional.
A querela judicial levou o Grupo Globo – então responsável no Brasil pela revista, inspirada na alemã Focus – a exigir que Daniela se retratasse com o deputado. O que não aconteceu. “Considero que não houve um erro na cobertura jornalística, portanto não havia do que se retratar. Preferi pedir demissão”, resume a jornalista.
Outros dez profissionais seguiram a chefe de redação e demitiram-se da revista que, coincidência ou não, deixou de circular pouco tempo depois.
A demissão e o processo, porém, foram apenas a ponta do iceberg.
Daniela entrou na mira do Gabinete do Ódio, a máquina de difamação e ameaça digital ligada aos Bolsonaro. “Recebia centenas de mensagens com impropérios por dia, outras ameaçavam-me de ser estuprada se saísse à rua”, conta. “A gota d’água, porém foi quando postaram uma foto de minha filha, uma criança, para me atingir.”
O convite do Reuters Institute for the Study of Journalism para estudar em Oxford, foi a oportunidade para Daniela fugir da realidade demasiadamente tóxica no Brasil, após a polémica com a família do presidente. No mesmo ano, com as baterias recarregadas pela estada no Reino Unido, seria a vez de Lisboa.
“Recebia centenas de mensagens com impropérios por dia, outras ameaçavam-me de ser estuprada se saísse à rua.”
Daniela Pinheiro
“Todos se lembram da forma irresponsável que a pandemia estava a ser tratada no Brasil, bem diferente de Portugal. Algumas amigas que viviam em Lisboa sugeriram que ficasse aqui um período, uma espécie de escala até que se percebesse o que aconteceria depois”, explica Daniela, que aterrou na cidade em julho de 2020.
Uma “escala” que já dura há um ano, sem sinais de um novo embarque a médio prazo. “Estou supersatisfeita com Lisboa, adaptada à rotina, à cidade. O mesmo acontece com os meus filhos”, explica Daniela, que voltou a colaborar com o jornalismo brasileiro, assinando uma coluna semanal no portal UOL, o maior do país.
Tempo também para Daniela começar a observar os meandros do poder em Portugal. O suficiente para a especialista no assunto considerar que, apesar do aumento da participação da extrema-direita na política nacional, ainda é precipitado pensar num cenário semelhante aqui ao que acontece no Brasil.
O poder como objeto de desejo
Daniela gira a colher na chávena para arrefecer o abatanado. A mesa no canto do salão interno da pastelaria Dacquoise é um dos escritórios que a jornalista elegeu em Campo de Ourique. “É perfeito, bem em frente à televisão”, diz, apontando para o ecrã ligado num canal noticioso. “Além disso, tem uma tomada por perto para o notebook.”

Nos dias mais agradáveis, Daniela também pode ser vista numa das mesas do quiosque do Jardim da Parada. O vizinho Jardim da Estrela é onde Daniela mantém a silhueta esguia que garante o ar jovial à jornalista de 49 anos, em sessões semanais de exercício em grupo, “camuflada” entre os tantos franceses do bairro.
“No início, pensei que eram aulas de ioga”, explica Daniela. “Só depois, percebi ser algo bem mais intenso”, diverte-se. A jornalista conta que, intrigada, interpelou a professora, uma energética gaulesa, sobre do que afinal se tratava. “Ela respondeu com aquele típico sotaque de francês a falar inglês: é boot camp!”.
Daniela explica ainda que a atividade entre os franceses a ajuda a manter em forma também o idioma, um dos quatro que fala, além do italiano e o inglês, uma aprendizagem fruto dos tempos em que viveu em França, Itália e Estados Unidos, durante temporadas sabáticas entre as trocas de redação.
E não foram poucas.
Em três décadas, Daniela circulou pelos mais respeitados órgãos de comunicação do Brasil, entre eles o Jornal do Brasil e a Folha de São Paulo, e as revistas Veja, Piauí e a já citada Época. Trabalhou em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Brasília, ou seja, uma constante vizinha do poder, o seu objeto de desejo jornalístico.
“O poder sempre me chamou e ainda chama a atenção. Tenho curiosidade em perceber a cabeça dessas pessoas encasteladas, acostumadas ao comando e pouco acostumadas em serem contrariadas”, diz, por entre pequenos goles no abatanado.
“O poder sempre me chamou e ainda chama a atenção. Tenho curiosidade em perceber a cabeça dessas pessoas encasteladas.”
Daniela Pinheiro
Entre os entrevistados icónicos, o pastor Silas Malafaia, atual financiador e braço-direito do presidente, com quem recentemente circulou no funeral da rainha da Inglaterra. Outro poderoso entrevistado foi Ricardo Teixeira, antigo presidente da Confederação Brasileira de Futebol, banido do futebol pela FIFA por corrupção.
Política, religião e futebol, a tríade do poder brasileiro, representada no Congresso Nacional – o equivalente à Assembleia da República em Portugal – por deputados das bancadas da Bíblia, da Bola, da Bala (armas) e do Boi (agronegócio), base do chamado “Centrão”, o núcleo político sem o qual é praticamente impossível governar o Brasil.
Confrontar esses parlamentares exige disposição digna das sessões de boot camp no Jardim da Parada. Mesmo assim, Daniela garante não ter sofrido nenhum tipo de constrangimento. “Nunca corri risco algum, pois existe uma relação entre os poderosos e a imprensa: nós precisamos deles e eles precisam de nós”, diz.
Para ilustrar a teoria, a jornalista lembra da entrevista ao pastor Silas Malafaia, o precursor mundial na cobrança do dízimo através das maquinetas de débito automático. “Não pode haver duas pessoas mais diferentes do que eu e ele. Escrevi um texto enorme sobre as contradições dele e houve apenas uma única crítica”, conta.
Qual?
“Numa parte do texto, citei que os móveis da casa dele pareciam demasiadamente grandes para o tamanho do imóvel”, diz, entre risos. “Parece que a esposa do pastor não gostou muito de ter lido. Para ela, é como se eu tivesse chamado a casa deles de cafona. Paciência”, completa.
A capacidade de transitar entre os poderosos com poucos efeitos colaterais não lhe rendeu imunidade completa. “Houve até hoje três processos judiciais, dois deles curiosos: um de uma profissional de reiki e outro de um integrante da Sociedade Brasileira de Geografia”, explica.
O terceiro, porém, não teve graça nenhuma.
Lições de jornalismo em “família”
Daniela lembra que o primeiro contato com a rotina de um jornalista deu-se ainda criança, após receber um gravador de cassetes do pai. “Era um modelo daqueles antigos, horizontais, de repórter mesmo”, explica. “Gravava tudo o que os meus pais diziam. Se a minha mãe prometia uma mesada, depois tinha como provar.”

Os primeiros passos como profissional também envolveram alguns “parentes”. Numa Brasília ainda em crescimento – a capital federal foi inaugurada em 1960 – era natural que os primeiros moradores, quase todos funcionários do governo, se conhecessem e a primeira saída como repórter foi justamente para investigar um “tio”. Ou quase isso.
“Era nova na sucursal da Folha de S. Paulo em Brasília quando estourou um escândalo e um dos principais envolvidos era o pai de uma colega da escola, que durante muito tempo me levou de boleia para a aula. A intimidade era tanta, que o tratava por tio. E ao vê-lo na televisão da redação, gritei: Gente, olha o tio Zé Carlos!”, conta a jornalista.
“Foi o turning point da minha vida de jornalista. Desde então, não mais acredito em ninguém.”
Daniela Pinheiro.
O diretor de redação da sucursal era o jornalista português Rui Nogueira, que prontamente a enviou para a esquadra da polícia. “Naquele tempo era tudo mais simples. Cheguei lá e disse que queria falar com o José Carlos. Apresentei-me como a filha da Alice. Aí o polícia entrou, saiu e deixou-me entrar”, recorda-se a jornalista.
A filha da Alice deparou-se com um “tio Zé Carlos” em prantos na cela da esquadra, jurando inocência. Foi com essa história que retornou à redação. No outro dia, porém, a concorrência estampou justamente o contrário. Aprendeu a lição. “Foi o turning point da minha vida de jornalista. Desde então, não mais acredito em ninguém”, conta.
Menos sorte tiveram outros dois “tios” da jornalista, igualmente metidos em escândalos, um deles antigo chefe da mãe, a famosa Alice, funcionária do Senado Federal. Escaldada pela primeira investida frustrada, ambos tiveram o tratamento de uma repórter incrédula e fiel apenas aos dados do próprio apuramento.
Apuramento que Daniela faz à antiga, com uma caneta e um bloco de papel. “Por causa disso, cultivo há anos um calo no dedo”, diz, estirando a mão. Uma escrita que conta com a ajuda das técnicas de taquigrafia, adquiridas num curso ainda na adolescência, por insistência dos pais que desejavam ver a filha passar num concurso público.
Em Lisboa, agora como colunista do portal UOL, desde o início de 2022, Daniela segue freneticamente a tomar notas, a despeito do calo no dedo. Os poderosos continuam no radar da jornalista, embora as histórias de prosaicos brasileiros tenham ganhado espaço na coluna digital, uma forma de traduzir esse Brasil fora do Brasil.
A realidade política no Brasil e em Portugal
Uma das suas últimas colunas teve como personagem uma cabeleireira – a mesma responsável pelo look da jornalista nas fotografias da matéria – uma imigrante brasileira eleitora de Bolsonaro. “Há um perfil de imigrante brasileiro que, apesar de tudo, identifica-se com o atual presidente. Penso que ele volta a vencer em Portugal.”

Em Portugal, sim, mas no Brasil, nem tanto. Anos a cobrir eleições ensinaram a jornalista a prestar atenção nas sondagens eleitorais, que desde o início estabilizaram o principal concorrente de Bolsonaro, o ex-presidente Lula da Silva, no patamar dos 45 por cento, a poucos pontos percentuais, inclusive, de uma vitória na primeira volta.
Daniela também tem conversado com antigas fontes no Brasil sobre o risco de o atual presidente não aceitar os resultados das eleições, caso seja derrotado. “Não acredito num golpe ou algo que o valha. Muito se falou que ele tentaria durante os eventos de celebração da Independência e nada ocorreu. É um governo de bravatas”, explica.
“Mesmo que Lula vença, levará um bom tempo para desatar os nós deixados por Bolsonaro.”
Daniela Pinheiro
O que Daniela prevê é a impossibilidade de o cenário brasileiro ser revertido em pouco tempo. “Mesmo que Lula vença, levará um bom tempo para desatar os nós deixados por Bolsonaro, a desenterrar toda a sujeira que está muito bem escondida. Não vejo como o Brasil mudar em menos de dois anos”, analisa.
Em relação a Portugal, Daniela acha difícil que se repita aqui a atual experiência de “bolsonarização” brasileira, mesmo com o aumento da presença da extrema-direita no cenário político português. “No Brasil, a política é centrada no culto da personalidade e isso é bem claro agora na disputa entre o bolsonarismo e o lulismo. Em Portugal, o cenário ainda é diferente”, analisa.
“Há esse culto de personalidade apenas nos extremos da esquerda, na figura de Jerónimo de Sousa no PCP, e na direita, com o André Ventura no Chega”, continua. “Mas tanto na esquerda mais moderada como na direita democrática, ainda continua a valer a força do partido e de uma certa ideologia”, acredita.
A perspetiva de uma certa estabilidade política é apenas um dos motivos que a levam a pensar em esticar a “escala” em Lisboa. A adaptação à vida lisboeta passa ainda nas novas relações, seja sentimental – com um diretor de fotografia português – ou de amizades, com jornalistas, escritores e empresários, que a têm apresentado às facetas do poder português.
Daniela se confessa também seduzida pelo Lisbon way of life – aos dias longos, às esplanadas, ao bom vinho e aos passeios por Campo de Ourique -, que lhe tem permitido viver uma rotina menos frenética do que a brasileira, recarregando as baterias antes de decidir pelo regresso ou não.
Uma tranquilidade interrompida apenas quando a professora gaulesa convoca para mais uma sessão de boot camp no Jardim da Parada.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
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