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Para Alexa Santos, é dia de conduzir a carrinha. Assim é desde 2014. Do Príncipe Real ao Terreiro do Paço, transporta o sistema de som e aqueles que animam a Marcha do Orgulho LGBTI+. Esse orgulho transporta-o também, desde logo nas meias que usa, com as cores da bandeira lgbti+.
Nem sempre foi assim. Por vezes foi difícil descobrir quem era. Em Loulé, crescer trigémea dificultou-lhe a individualidade. Nem a vinda para Lisboa, para estudar Serviço Social, vivendo num lar de freiras doroteias, ajudou.
Uma ida a Taizé, uma comunidade religiosa no Sul de França, com perto de vinte anos, mudou a vida dela. Alexa conheceu a primeira namorada. “Fomos impelidas uma para a outra. Foi aquele ‘woo, isto é mesmo real’, recorda. O amor deu lugar à incerteza: “Queria muito perceber-me. Ninguém à minha volta era lésbica. Não sabia ser.”
Foi assim que se juntou à rede ex aequo, uma organização de jovens lgbti+. Na rede, Alexa passou a dar formações em escolas e a descobrir mais sobre ela própria.
Ao fazê-lo e vivê-lo, Alexa deparou-se com o preconceito, a agressão e os perigos que ainda persistem em Portugal. “Uma vez, à saída do Bairro Alto, estava sentada com uma mulher, a conversar”, conta. “Um homem vinha de mota e começou a insultar-nos. Saiu para nos bater. Havia gente a ver e ninguém fez nada.”
Por isso Alexa faz parte da organização da Marcha LGBTI+ – e do Clube Safo. Marcha porque sabe a importância da visibilidade: “Não é em casa que existimos. Não somos plenos em quatro paredes. Há marchas em sítios tão remotos como a Covilhã e Bragança e começa a ser inegável que existimos”.
O combate ao medo e à segregação é dos principais objetivos da Marcha do Orgulho LGBTI+. Foi justamente a partir do Clube Safo que se fez a primeira Marcha em Portugal, no ano de 2000. “Uma lésbica um dia lembrou-se ‘vamos sair da penumbra’. Houve uma reunião com vários coletivos e decidiram ocupar o Marquês de Pombal”, conta.
No fim, “é uma coisa benéfica para todos. A liberdade não é como uma fatia de bolo – se tirares uma ficas sem um bocado. Quanto mais liberdade temos, mais o bolo cresce”.
A marcha acontece todos os anos em junho, mês do orgulho LGBTI+. Tudo começou em Nova Iorque, em 1969, depois das intervenções policiais violentas num dos principais bares da comunidade, o Stonewall Inn.
O movimento de revolta e de procura de visibilidade espalhou-se por todo o lado, a partir de 1970. Assim explica Arnaud Gautier-Fawas, representante da organização francesa Inter-LGBT.
Para a semana, há Marcha do Orgulho LGBTI+ em Paris, mas Arnaud não quis perder a oportunidade de participar em Lisboa, tendo organizado uma exposição no Príncipe Real sobre a história da marcha parisiense.
“Somos uns sortudos por marchar. Há tanta gente que em 2022 não pode fazê-lo”, diz. “Não é preciso ir longe. Isso acontece na Europa de Leste – na Hungria, na Polónia, na Ucrânia, na Rússia.”
Lembrar direitos, em família
Em Paris, o orgulho chegou às ruas em 1977. Portugal teve de esperar até ao dealbar do milénio. Fo apenas há quarenta anos, em 1982, que a revisão do Código Penal descriminalizou a homossexualidade. E há 12 foi legalizada a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Em 2016 resolveu-se a questão da adoção.
De Sintra, Catarina Fernandes e Margarida Libório trazem a filha Leonor, de dez meses, ao evento. Porque “não foi há anos luz que podemos estar casadas e ter uma filha.”
Casaram há um ano, precisamente. Antes do nascimento da filha. “Pensámos que seria a melhor forma de evitar problemas no registo”, conta Catarina. “Mesmo assim, fomos forçadas a ir ao registo civil. Não foi possível tratar da documentação on-line. Há sempre questões no que toca a nós”.
Leonor nasceu por meio de inseminação artificial. Catarina relata algum desconhecimento: “Nas consultas tinha de explicar quem era a Margarida e o porquê de me acompanhar”. Hoje, o casal marcha para mostrar que há “famílias de todos os feitios, géneros e formas”.
Juntas, tentam sempre adotar uma posição pedagógica, mesmo no colégio de Leonor. “Em março, perguntaram-nos como queríamos celebrar o dia do pai. Não queríamos. Somos duas mães. A Leonor vai celebrar o dia da mãe a dobrar”, diz Catarina.
Um pouco mais velha que Leonor, Alis, de um ano e quatro meses, agita uma bandeira da comunidade ao colo da avó, Dalva. Veio à marcha com os pais, Luciana e Carlis Lopes, que trocaram o Brasil por Portugal há cinco anos. São uma família heterossexual, e participam para “celebrar a diversidade” e dar mundo à filha. “Estar aqui é fortalecer a liberdade”, diz Carlis.
“Nem todas as famílias têm esta abertura”, lembra Isabel Lopes. Na t-shirt preta oferece “abraços grátis de uma mãe”. Isabel costuma vir todos os anos com o filho, Mateus, desde Montemor-o-Novo.
De 2019, a última edição antes da pandemia, guarda um episódio marcante: “Tinha um cartaz a oferecer abraços. Foi preciso os amigos de uma miúda tirarem-na dos meus braços. Ela chorava compulsivamente, porque não tinha o abraço da mãe.”
Agora, Isabel vem com mais determinação, com a afirmação do filho como pansexual. Ou seja, Mateus sente atração por pessoas de todos os géneros e orientações sexuais. “Sempre lhe disse que podia trazer a casa namorado ou namorada, tudo era bem-vindo. Mas também sempre lhe expliquei que há gente que não pode ser quem é junto dos pais.”
Sem vergonha de amar
Os jovens Mike Mayxom e Afonso Simiano vivem uma paixão de dois meses. Afonso ainda está a tirar o curso de Engenharia Informática e, desde sempre, vem à marcha. Seguem entrelaçados. Na rua, costumam dar as mãos, mas aqui dizem estar mais à vontade.
Afonso tem uma deficiência auditiva, usa um aparelho e, mesmo assim, não ouve o preconceito. Mike não deixa de estar atento aos comentários maldosos, mas protege sempre o namorado. “No metro, noutro dia, um senhor disse algo muito mau sobre nós, por estamos juntos. Nunca digo ao Afonso”, conta.
A história de amor de Bruno Amoroso e Luís Francisco não é de dois meses, mas de dois anos. Na adolescência, sentiram que faltava “aquele sentimento de pertença” e que lhes roubaram muita coisa. “Não vivemos o primeiro amor. Era tudo às escondidas e com sentimento de culpa.”
Já adultos, não querem esconder-se mais.
O receio existe, ainda assim. “Nós próprios retraímo-nos de agir como casal”, dizem. “Temos medo. Em Lisboa é uma coisa, já damos as mãos mais à vontade. Em Setúbal, onde vivemos juntos, já é diferente.”
Mãos agarradas, partilham sem vergonha os sonhos que o seu amor semeou: “Queremos tudo o que pode parecer aborrecido: casar, adotar, fazer com que as nossas crianças cresçam num ambiente normal sem serem discriminadas por terem dois pais”.
“A nossa comunidade é uma grande família”
Nessa Marcha cabem muitos, sobretudo aqueles que sempre se sentiram diferentes. E há tantos e tão diferentes exemplos.
Carmo Pereira, não binária, uma das responsáveis pela organização, que diz que não se identifica com com nenhum dos géneros. “Noutras alturas, posso identificar-me com um ou com outro. As identidades não são coisas estanques”, explica, falando das inquietações que vivia em Trás-os-Montes, onde nasceu. “Sabia que era muito diferente e não percebia porquê. Tive uma infância e adolescência com muitas dúvidas, bullying e muito infeliz.”
Dali saiu aos 18 anos para o Porto e há nove está em Lisboa Desde então, Carmo participa na marcha. Agora, diz que se sente um “diferente bom”. Mesmo assim, luta contra o “julgamento e invisibilidade que pessoas não binárias enfrentam no dia-a-dia”.
Lembra que a genderização, a bipolarização entre duas terminologias de identidade de género, faz parte de quase tudo: “Se quiser mudar o marcador de sexo tenho de me cingir a duas listas”.
Para Manuel, a Marcha do Orgulho LGBTI+ é um sítio para “expressares quem quiseres ser”. Aos 55 anos, o cabeleireiro deixou o marido de há vinte em casa, pegou em algumas roupas que estava a pensar usar numa situação de Carnaval. Assim vai com um chapéu de chuva rosa, uma botas de cano alto, uns óculos lilases, o peito descoberto e muitas flores. “Representa a primavera, as cores, a liberdade. Sê tu”, diz.
Também para Manuel era impossível aparecer assim na aldeia onde cresceu, perto de Sintra. “Esta é uma forma de meteres cá para fora o que gostas de fazer. No meu caso, é o transformismo. Como não consegui fazer quando tinha 20 anos, faço agora.”
Não esconde que há comentários: “Perguntam porque vou a uma parada mascarado, isto não é um Carnaval. Mas quero ser assim”.
Gonçalo Barbosa, de 23 anos, homem trans, cresceu aprisionado num corpo que não era o dele. Na escola, sofreu de “bullying verbal e físico”. Obrigavam-no a escolher o balneário das raparigas. Tudo melhorou quando começou a transição, há seis anos. Há nove meses começou o tratamento hormonal.
De mão dada com a namorada, Inês, que conhece há dois anos, param para dar um beijo na testa. Já vivem juntos e contam que querem “muito ter filhos”. “Queremos ser felizes, mais nada. É o que mais queremos”. Gonçalo nunca pensou sentir-se completo. No meio daquela multidão diz emocionado que ali está “uma grande família”.
“Aqui pertenço,” diz.
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* João Damião é aluno do mestrado de Jornalismo da Universidade Nova de Lisboa/ FCSH. É um tanto idealista. Acredita que o melhor futuro é pautado pela educação, informação, beleza e tolerância. É isso que o move a contar histórias. Está a estagiar na Mensagem de Lisboa. Este texto foi editado por Catarina Pires.
Pena ainda não se verem políticos, lideres sindicais, figuras publicas na marcha, ainda há muito armário.
Bom dia, vários dirigentes e organizações políticas marcaram presença na Marcha em Lisboa. Entre eles, o Bloco de Esquerda, o Livre, o VOLT e a Juventude Socialista. A Iniciativa Liberal já anunciou que participará na Marcha do Porto, no próximo dia 25.