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As viagens na Linha de Cascais já não são as mesmas. Desde 2019, a batida e as rimas em free style do músico GDM, o “MC da Carruagem”, embalam o ir e vir do comboio, quebrando a monotonia de taciturnos trabalhadores ou dando um tom festivo à viagem dos banhistas em busca de um lugar ao sol.
“Uma boa tarde, senhoras e senhores, sou GDM e trago um pouco de free style”, apresenta-se o músico brasileiro Wellington Cintra, o GDM, uma coluna portátil numa das mãos, um chapéu na outra. “É rima de improviso, quem gostar pode dar um sorriso”, continua, cruzando o corredor. “Mas eu prefiro é dinheiro”, ressalva.
A ressalva é importante, pois as apresentações regulares na Linha são a fonte de rendimento do brasileiro de 32 anos, nascido em Goiás, o berço da música sertaneja e reduto do bolsonarismo, mas que preferiu o RAP como forma de expressão quando decidiu deixar o emprego de lavador de carros em Lisboa e “virar artista”, na pele do master of cerimony GDM.
Um defensor do “amor” como ferramenta política, mas que se define “neutro” quando o assunto é a eleição brasileira. Ou quase isso.
Direita e esquerda: braços de um mesmo corpo
O rapper brasileiro que vem do reduto de maior apoio ao atual presidente do Brasil não tem simpatia por Bolsonaro. Nem pelo seu adversário nas eleições, o ex-presidente Lula da Silva. Nem simpatia por político algum.
“É verdade que a minha região é bem conservadora. Se não é cem por cento Bolsonaro, é quase isso. Mas não vou muito por aí nem por outro lado. Considero essa divisão de direita e esquerda dois braços de um mesmo corpo. No ponto de vista político, e posso até estar a ser meio utópico, alinho com uma postura mais anarquista”, explica.
“Acredito mais na política das pessoas, o que a gente faz entre nós, numa política que se dá de forma horizontal, não vertical, de cima para baixo”, reforça o MC.
O brasileiro GDM nasceu em Goiás, o berço da música sertaneja e reduto do bolsonarismo
Desde 2012 a morar fora do Brasil – primeiro em Itália, depois em Portugal -, Wellington diz que a decisão de migrar não foi movida por nenhuma insatisfação política, mas pelo desejo de viver outras experiências em outros lugares.
Apesar do discurso politicamente “neutro”, porém, deixa transparecer uma sintonia maior com os pensamentos mais à esquerda, ao dizer praticar uma política do “amor” quando está a rimar nos comboios, preocupada em fazer refletir sobre questões sociais. “É verdade que o braço direito costuma ser um pouco mais pesado, mais esmagador que o esquerdo”, reflete.
Um sentimento que pode ter sido alimentado pela situação com a qual se deparou na última viagem ao Brasil, já durante a gestão bolsonarista. “As coisas, incluindo a comida, estão muito mais caras. Muito menos acessível do que costumava ser.”
A dura rotina de uma vida 100Glamour
O primeiro contacto do MC com a música foi entoando os salmos na igreja, levado pelos pais evangélicos na infância, mas que na adolescência se dececionou com a postura de um pastor e elegeu o RAP como meio de expressão. “O pastor queria que só cantasse no templo e para mim isso não fazia sentido”, explica.
A transição não foi pacífica e rendeu problemas em casa. “Meu pai é um crente daqueles, sabe como é. E quando um dia me viu a ouvir rap no quarto, me deu uma surra. Disse que era a música do diabo”, lembra GDM. Quem o ouve a cantar no comboio, porém, certamente não concordará com a opinião paterna.
Pelo contrário. Há nas rimas de GDM um dissimulado tom de pregação, alternando construções frugais sobre a aparência dos passageiros e reflexões de cunho existencial. “Independente do que tem no bolso, agradeça: tem gente que nem tem almoço”, canta o MC e uma senhora que finge não o ver, balança a cabeça a concordar.

GDM discretamente lê a frase tatuada no braço de uma jovem em pé na carruagem. “Olha, eu vou falar: o senhor é meu pastor e nada me faltará”, entoa, reciclando a mensagem tatuada como mote da rima. Os tempos de idas à igreja ajudam-no a fechar a estrofe. “Rimo toda hora para vocês, isto está escrito lá no salmo vinte e três.”
A velocidade de raciocínio, motor do improviso, impressiona ainda mais por Wellington ter passado parte da vida a trabalhar não com a cabeça, mas com os braços. Antes de Portugal, o brasileiro viveu em Itália entre 2012 e 2015. Lá como cá, abdicou da criatividade para biblicamente ganhar o pão com o suor do próprio rosto.
Até se transformar em GDM, Wellington ergueu muros, limpou casas e vendeu chocolates nas ruas, antes de polir carros numa garagem em Lisboa. Em setembro de 2019, o patrão convocou os funcionários para informar que não havia dinheiro para honrar o salário do mês. O brasileiro já não voltou para o trabalho depois do almoço.
Naquele mesmo dia, Wellington teve uma epifania. “Já andava a escrever alguma coisa e, sempre que mostrava aos manos do trabalho, diziam que deveria voltar a cantar”, recorda o músico. Sem palco, mas munido da necessidade de se expressar – e pagar a renda – o antigo lavador de carros decidiu apresentar-se no comboio.
“A primeira nota que pousou no chapéu foi uma de vinte euros. Na hora pensei: é o universo a conspirar a meu favor.”
GDM, rapper
“A primeira nota que pousou no chapéu foi uma de vinte euros, dada por um gringo”, lembra, reflexivo. “Era claramente um sinal e na hora pensei: é o universo a conspirar a meu favor.” Conspiração universal que continua desde então e tem garantido ao agora GDM uma receita mensal maior do que a que recebia a lavar os carros.
A decisão de ganhar a vida com a música levou GDM a traçar um planeamento estratégico, que inclui a parceria com uma produtora musical, a também brasileira Adelaide Zigiotto, do estúdio Griot Lab. “Aprendi que é preciso dividir as tarefas para valorizar o tempo e concentrar no que é o meu verdadeiro trabalho”, explica.

O primeiro contacto da Mensagem com o GDM foi através do perfil no Instagram. Disciplinado, o músico sugeriu que tudo fosse tratado com a produtora. “Não tenho jeito para administrar rede social nem para esse lance de entrevistas. É a Adelaide que insiste nessa tecla, de ser preciso criar a minha persona como músico”, explica.
Os conselhos da produtora também renderam ao músico a parceria com o DJ Lord Ícaro, responsáveis pelos ensaios em estúdio e os beats da persona off-comboio de GDM. Juntos, subiram ao palco principal da Festa do Avante, em 2021, depois de ganharem o concurso de novos valores realizado pela organização do evento.
“Mano, foi uma loucura. Deu um friozinho na barriga subir naquele palco enorme. Foi até hoje a maior e melhor experiência da minha vida”, confessa. No final, GDM conta que a organizadora do Avante veio cumprimentá-lo, prometendo a participação em 2022, o que não ocorreu. “Sabe como político é, né, mano?”, resume.
Apesar do glamour da primeira apresentação num palco principal, o MC da carruagem sabe que a vida de artista exige paciência e trabalho. Ao lado do parceiro Lord Ícaro, GDM começa a soltar no Spotify as músicas que compõem o primeiro EP, inspirado nas reflexões que o músico faz da sua trajetória como rapper e imigrante.
Não por acaso, o EP tem o sugestivo título 100Glamour.
Cala-te e deixa o gajo cantar!
A menção à falta de glamour não se resume aos tempos em que GDM ganhou a vida a vender chocolates, erguer muros e a lavar carros. As primeiras idas e vindas na Linha de Cascais foram igualmente marcadas por nada glamorosos episódios de preconceito e perseguição por funcionários da Comboios de Portugal e também de agentes da PSP.

“No início, os picas me perseguiam até a última carruagem, crentes de que não tinha comprado o passe. Quando viam que o passe estava ok, ameaçavam-me tirar do comboio, dizendo que mendigar era proibido. Olhava nos olhos deles e respondia: mano, não estou pedindo esmola, estou trabalhando, fazendo arte”, relembra.
GDM conta ainda que um agente da PSP passou meses a ostensivamente persegui-lo, incluindo revistas e acusações falsas. “Um dia, o cara disse que era impossível ganhar tanto dinheiro com música e me acusou de estar a vender drogas”, recorda. O polícia ainda insistia em lembrar de que sabia a validade da residência do brasileiro no país.
“Sei que estás a fazer algo de errado”, ameaçava o polícia. “Um dia ainda te pego, zuca.”
Mas não pegou. A perseguição conheceu um fim (até agora) quando o mesmo polícia o abordou na saída do supermercado na estação de Cais de Sodré, para revistar o saco onde GDM transportava uma pequena compra. A situação foi tão constrangedora que levou um segundo agente, que fazia dupla com o primeiro, a intervir.
“Ele falou para o cara deixar com aquilo. Disse que já havia me ouvido cantar no comboio e que eu fazia um trabalho legal, fixe”, conta.
“O polícia disse que era impossível ganhar tanto dinheiro com música e me acusou de estar a vender drogas.”
GDM, rapper
A recepção do público também nem sempre foi pacífica. No início, havia desde o tradicional “volta para o teu país” a quem sugerisse que GDM fosse procurar um trabalho. “Foi a única vez que interrompi uma apresentação. Era uma senhora. Aí expliquei, com paciência, que aquilo que estava a fazer era justamente um trabalho.”
Meses depois, a rotina anda mais pacífica na Linha. “Os picas até me dão bom dia e desejam um bom trabalho”, ri-se o brasileiro. Quanto ao público, GDM revela que o natural agora é que a maioria dos passageiros o defenda dos mais raivosos. “Quando alguém começa a reclamar, os outros gritam: cala-te e deixa o gajo cantar!”
Um rapper que anda sempre na linha
Deixarem o gajo cantar é aquilo com que mais sonha GDM, um MC que contraria a imagem do movimento hip hop, sedimentada sobre o rapper como um produto da cultura urbana, e não esconde uma idílica nostalgia pela vida no campo em Goiás. E se até agora ainda não teve a curiosidade de perguntar, vem desse sentimento o nome artístico dele.

GDM é o acrónimo de “Gangster do Mato”, uma alcunha dada por um dos amigos do músico, ao cansar-se de ouvir Wellington referir-se à saudade da tranquilidade da zona rural. “Sou uma pessoa tranquila. Gosto da paz do interior, daquele silêncio que permite meditar sobre os temas que canto”, explica o gangster do mato da metrópole.
Ainda em busca de uma improvável paz do campo em Lisboa, GDM desfruta da rotina um pouco menos atribulada do Miratejo, onde vive. Sem as obrigações do expediente nove-às-cinco, aproveita a liberdade para organizar uma rotina mais tranquila. “Acordo cedo, medito um pouco, faço as minhas orações e escrevo”, resume.
As performances nas carruagens da Linha de Cascais acontecem geralmente nas tardes de segunda, quarta e sexta-feira. Isso não impede a ocorrência de apresentações extras, sempre que o dinheiro terminar antes do mês. O expediente não é muito rígido, mas GDM tenta manter o horário de trabalho da uma às cinco da tarde.
“Sou uma pessoa tranquila. Gosto da paz do interior, daquele silêncio que permite meditar sobre os temas que canto.”
GDM, rapper
“Fui testando quais os melhores horários. Mas pela manhã notei que as pessoas estão a viajar mais desanimadas”, observa o rapper que, pautado numa “psicologia de comboio”, reserva apresentações diferentes para o inverno e o verão. “Com o frio, os passageiros ficam introspetivos e mudo a abordagem e até o beat da música.”
No verão, porém, a resposta acompanha o clima e é sempre calorosa. Na boleia que a Mensagem tomou ao som de GDM, foi possível ouvir trabalhadores a balançarem a cabeça ao ritmo da batida e banhistas a dançarem, esticando o braço com o punho fechado para cumprimentarem o MC da Carruagem com um fist pump.
A psicologia de comboio também levou GDM a observar o comportamento de outras linhas do sistema. “Na Linha de Sintra, a recetividade dos passageiros é mais calorosa, só tem mano”, diverte-se. “Embora, no final, o caché acabe sempre sendo menor”, diz.

GDM elogia a acústica dos comboios da Fertagus mas, ao contrário dos picas da CP, na Linha de Setúbal ele ainda não é tratado como um artista. “Como é o comboio que pego para vir trabalhar, sempre arrisco um free style para ganhar um troco para o almoço. Mas os funcionários não são lá muito simpáticos”, diz.
O próximo passo do músico é aventurar-se em direção a Azambuja. “Mesmo que as outras linhas não rendam o mesmo que a de Cascais, vale o investimento. É uma forma de divulgar o meu trabalho”, analisa GDM, o MC das Carruagens, com a segurança de quem ganha a vida como um rapper que anda sempre na linha. Ou nas linhas.

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Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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