Receba a nossa newsletter com as histórias de Lisboa 🙂
E se Lisboa só se ouvisse? A que soa Lisboa? Este mês no Festival Lisboa SOA, Pablo Sanz, artista sonoro espanhol veio de novo a Lisboa, cidade que ama, para ajudar a responder a esta pergunta. Trouxe de Espanha “duas malas cheias” de instrumentos de captação de som. E trabalhou com mais 13 cidadãos que tentaram encontrar a “beleza” em sons escondidos da cidade – no Tejo, no metro e até em candeeiros.
São hidrofones para “captar a atividade subaquática do Tejo”. Ou o ambisonic, que contém quatro microfones para “captar em esfera sons ambientes de um espaço”.
Para que servem? “Aquilo que fazemos é ampliar os sons da cidade que não ouvimos – do Tejo, de antenas de telemóveis, de candeeiros ou outros fios que existem nos edifícios”, diz Pablo.

A viver entre Madrid e o arquipélago das Canárias atualmente, Pablo Sanz tem um longo currículo na captação de som, para “passeios sonoros (soundwalks) e concertos”. Pelo caminho, fez formação na Holanda e terminou um doutoramento em Belfast, na Irlanda do Norte.
Nesta “geografia fragmentada”, que diz ter, há espaço para Lisboa, onde viveu “cinco meses, há uns anos”.
“Tinha curiosidade e decidi mudar-me para Portugal”, conta Pablo.
Enquanto morou no Alto da Ajuda, encontrou “beleza” num som característica da cidade: o trânsito da Ponte 25 de Abril.
“Os carros que passam pela estrada criam uma espécie de melodia. É impressionante encontrar beleza no barulho.” – a Mensagem já explicou isso mesmo, aqui:
Nestes dias de agosto, Pablo veio para o Festival Lisboa SOA, dirigido pela investigadora Raquel Castro. Apaixonado pela “identidade sonora lisboeta”, Pablo não podia recursar o convite: “Há sons que só se ouvem aqui: o Tejo, o elétrico…”
O objetivo é, nas palavras de Pablo Sanz, madrileno e produtor de som, “construir um soundwalk (passeio acústico) entre o Teatro Romano e a Praça do Martim Moniz”.
Ou seja, um percurso georreferenciado, disponível na aplicação Echos, sob o título de “Soundwalking Lisboa”. Enquanto se caminha pela cidade, de auscultadores, o utilizador ouve outros sons de Lisboa habitualmente impercetíveis ao ouvido humano.
Os participantes encontraram a Lisboa de hoje, claro, marcada pelo trânsito, pelo frenesim dos transportes e pelo turismo. Mas no workshop nas Carpintarias de São Lázaro, no Martim Moniz, em que se reuniram houve espaço para sentir outras facetas da cidade.

Foi o caso da Lisboa romana, do tempo dos Césares. Ou aquela, menos conhecida, que é experienciada nas raves de música eletrónica.
Trabalham num espaço envidraçado e solarengo com vista para o Miradouro da Graça. Agarram em captações que aqui foram feitas trazem ao de cima muitas Lisboas.
Depois das dez da manhã, nas Carpintarias de São Lázaro, Pablo reúne a turma inscrita no workshop. A maioria são designers, pessoas que trabalham no cinema, na música ou multimédia. Mas não é preciso ter formação técnica na área. Outros vinham das ciências sociais ou da pintura.
Em conjunto, fazem um “repasso” dos projetos. E aqui também se debate Lisboa. Afinal, o Lisboa SOA lembra que o som impacta as cidades, a sua organização e a felicidade dos moradores.
A invasão de carros, a gentrificação e a pressão do turismo ouvem-se nos vários projetos. Perto do Cais das Colunas, o “som dos cacilheiros, da maré a arrastar conchas e da corrente do próprio rio”, sobrepõem-se nesta experiência.
Um contraste face ao local de passagem de turistas e carros que hoje é.
A identidade sonora de Lisboa: “Todos os ruídos contêm beleza”
Foi a pensar na Lisboa de 2022 que Marta Fiolić e João Ferreira entraram neste workshop. Casados, trabalham há vários anos com o som. Ela na área do cinema. Ele no mundo da música.
Para “ampliar” a identidade sonora de Lisboa, levaram a banhos, na fonte do Martim Moniz, um hidrofone para captar a passagem do metro.

“Não ignoramos a Lisboa de hoje, cheia de barulho e de gente. Todos os ruídos contêm beleza, todos são timbres e fontes de riqueza sonora. A arte não tem de criar bem-estar, são sentimentos”, consideram Marta e João.
“Tentamos realçar os sons de Lisboa e torná-los percetíveis às pessoas”, contam. Durante a noite, gravaram inclusivamente o som que os candeeiros produzem e que, garantem, é “intenso”.




Ao contrário de Marta e de João, Pedro Leitão e Rita Correia não fazem do som profissão. Pedro é pintor e Rita vem de Antropologia. Ao festival, trazem dois olhares diferentes sobre a cidade de Lisboa e um tanto contrastantes – um foca-se na comunhão com a natureza, outra na música eletrónica e a sua relação com a cidade.
“Vamos calar Lisboa. Quero ouvir o que os romanos ouviam”
Pedro Leitão não tem dúvidas: “Não é preciso formação técnica para participar no Lisboa SOA. A técnica vem dentro de ti”. Pintor, procura reproduzir nas suas obras a “natureza e a paisagem”. Assim nasce a sua admiração pelo som: “É curioso como qualquer ritual com a natureza começa sempre com música ou dança”.
E é isso que, agora, procura fazer no Lisboa SOA. Em conversa com o filho Henrique, de 11 anos, perguntou-lhe o que gostaria de ouvir. Ele respondeu: “Vamos calar a cidade. Quero ouvir o que os romanos ouviam”. Porque a “História de Portugal não nasce com Afonso Henriques”, lembra Pedro.

A história do projeto, que desenvolve durante os dias do festival, 23 e 27 de agosto, cruza-se com uma ida à Letónia, em 2021, para participar numa residência de artistas sonoros locais. Aí captou alguns sons de florestas e de “festivais pagãos e animistas, que cantam às árvores, às flores e ao amanhecer,” e persistem no país. Um som que, acredita, se aproxima à Lisboa romana.
O objetivo não é apenas recriar a Lisboa de outrora. Pedro acredita que a arte, sobretudo aquela que envolve o som, tem um poder “terapêutico”.
“Como todas as cidades, Lisboa é barulhenta. O ruído também está dentro de nós, por isso todos precisamos de criar um espaço de conforto e de sensibilidade.” Ouvir uma floresta da Letónia pode ajudar a entrar nesse estado de pacifismo.

As emoções de uma cidade cabem na música eletrónica
Em oposição à paz que Pedro procura, Rita Correia, antropóloga, recria o barulho e uma “raiva, mas uma raiva alegre”, que sente em Lisboa. Todos os sons que gravou são acompanhados por música eletrónica, numa espécie de “experiência autobiográfica” que exprime a sua ligação à cidade.
Há seis anos, Rita descobriu as festas de rave, com música eletrónica – que “acontecem, muitas vezes, fora da cidade, no campo. E, antes da pandemia, no Cais do Sodré”.
Ao som das fortes batidas, encontrou várias emoções nas ruas de Lisboa: “A música que ouço é uma expressão da cidade, da industrialização, da pressão, do desconforto, da exaustação, da decadência…”
E quando dança, diz, há uma força que a leva a “pisar o chão com toda a força” e a agir como se “estivesse a rasgar o ar”. É uma “raiva alegre”, conclui, que identifica em “vários lugares e emoções” do quotidiano: “passar por um beco e sentir-me insegura, passar pela polícia e ter medo, ver a pobreza e a decadência, a pressão do turismo”.

Emoções que Rita quis deixar, nesse olhar muito próprio sobre a cidade.
Assim foi o Lisboa SOA, o festival que promete continuar a ouvir Lisboa. As muitas que existem e que aqui se pensam.
*A Mensagem é Media Partner do Festival Lisboa SOA

João Damião
É aluno do mestrado de Jornalismo da Universidade Nova de Lisboa/ FCSH. É um tanto idealista. Acredita que o melhor futuro é pautado pela educação, informação, beleza e tolerância. É isso que o move a contar histórias.