Nos últimos tempos, é do que mais se fala em Lisboa: o lixo. Da sujidade, em geral. Há falhas na recolha e na lavagem das ruas. Lisboa produz 900 toneladas de lixo por dia. E é no verão, com menos trabalhadores de recolha, e a cidade cheia de turistas em zonas normalmente não habitadas, que as coisas se complicam.
Recentemente, um grupo de moradores da Graça até se juntou para, civicamente, promover a mudança. Ana Lúcia Reis foi quem deu o pontapé de partida e marcou para dia 1 de setembro uma ação de limpeza na Graça.
O movimento gerou logo reação nas redes sociais, com pessoas a partilhar as suas experiências com o lixo (na Graça e noutros bairros).
Foi por isso que se organizou uma ação de sensibilização pelo bairro (que a Mensagem acompanhou) para que mais pessoas se juntassem para um dia de limpeza. Ana Lúcia e o seu grupo entraram em cafés, tabacarias, lojas de roupa, com uma pergunta: “Tem reparado na sujidade das ruas?”. As respostas foram muitas.
“Eles andam aí sempre a varrer o lixo, mas há muitos turistas, há muita poluição e poucos contentores”, lamentou José Alves, funcionário da Pastelaria Baga. “O problema é a limpeza das ruas, são os animais, são as próprias pessoas”, disse por sua vez João Mindeiro, funcionário de uma loja de roupa.
Ou seja, as especulações são muitas, num sistema complexo, e os dedos apontam para várias responsabilidades.


Afinal, de quem é a responsabilidade pela sujidade (e pela limpeza) das ruas?
Susana Fonseca, vice-presidente da ZERO – Associação Sistema Terra Sustentável, explica que “todos têm a sua responsabilidade, mas elas são diferenciadas”.
Há três responsáveis pela higiene urbana:
- a Câmara Municipal que recolhe e transporta o lixo grande dos contentores;
- as Juntas de Freguesia que lavam e limpam as ruas;
- os cidadãos que têm deveres, como apanhar dejetos dos animais e depositar o lixo no local indicado;
Aquilo que parece estar a acontecer é que todo o sistema está a falhar. Há várias razões para isso.
1. Falhas na recolha, repartição de funções no lixo
O sistema de lixo em Lisboa tem vindo a dar problemas há muitos anos. Basta percorrer notícias dos anos anteriores à covid-19 para se perceber que o período de verão era já sinónimo de caos na cidade há muito tempo. E 2018, com o aumento do turismo, foi caótico.
Este ano, com o turismo a regressar a níveis pré-pandemia e a aumentar a produção de lixo, isso pôs a nu os mesmos problemas que já vêm de há muitos anos: falta de recursos humanos no setor, salários e a descentralização das funções da Câmara Municipal de Lisboa para as Juntas de Freguesia, com várias consequências.
Embora haja um caderno de encargos comum, Lisboa tem 25 sistemas de limpeza urbana diferentes, um por cada Junta de Freguesia. Desde 2014 que a Câmara e as Juntas de Freguesia repartem funções na área da higiene urbana. Ou seja, a CML é responsável pela recolha grande e os caixotes, as Juntas pela higiene das ruas.
Recentemente, o presidente da Câmara, Carlos Moedas, anunciou uma “nova etapa” nesta coordenação. Mas, para Ana Lúcia Reis, esta repartição é um problema: “Os cidadãos veem-se no meio da gestão entre duas partes”. Isto porque, por exemplo, se um caixote grande está cheio e a transbordar, teoricamente o lixo que está na rua é competência da Junta.

Em Lisboa, há três tipos de recolha de lixo:
- porta-a-porta (em zonas específicas da cidade, para o comércio e a restauração, e nos bairros históricos);
- de proximidade (sem caixotes do lixo, apenas com contentores no bairro – sejam de orgânico seja de reciclagem);
- seletiva pontual (recolha de monos e entulhos);
Neste mapa podem ver-se as diversas zonas de Lisboa de acordo com o sistema diferente de recolha de lixo e a localização dos contentores, ilhas e ecopontos:
Mas a recolhas têm sido feitas com muitas falhas, segundo todos os testemunhos – os comerciantes da Baixa, por exemplo, queixam-se de falhas de recolhas seletivas. Estas falhas deveram-se também à greve de trabalhadores da ValorSul, responsáveis pelo tratamento e valorização dos resíduos urbanos em 19 municípios da Grande Lisboa – sem lugar para pôr o lixo não era simplesmente possível recolhê-lo.
Há falhas também nos recursos humanos – algo que levou Carlos Moedas a reunir com os trabalhadores da área e a ter anunciado os reforços de pessoas. A Câmara anunciou que iria contratar mais 190 trabalhadores para a recolha do lixo, num concurso que foi aberto para 100 vagas, mas que o executivo aumentou para 190 (160 cantoneiros e 30 condutores).
Em julho entraram 63, a 1 de agosto 87. Até 1 de setembro vão entrar 29 e os restantes 11 entrarão mais tarde a seu pedido. Problema: a remuneração é baixa (ao nível do salário mínimo) e com a atratividade dos salários noutras áreas e a dureza deste trabalhos, é fácil explicar a falta de mão de obra.
Além disso, a repartição dos sistemas pelas Juntas também não permite aos trabalhadores rodar funções – algo que era habitual, segundo as nossas fontes.
E se o tratamento e recolha fosse mais eficiente?
Miguel de Castro Neto, diretor da NOVA IMS que fez um estudo sobre o lixo na cidade, apresenta uma outra solução complementar que poderia ajudar a tornar este trabalho mais ágil: a sensorização dos contentores. Em 2019, colocaram-se sensores em 750 contentores subterrâneos e 730 contentores de superfície que avisavam quando o contentor já estava cheio. “Ainda não é uma solução generalizada, mas está a ser feito um caminho”, diz o professor.
Susana Fonseca concorda que esta é uma medida interessante para se ter uma recolha mais eficaz. “Com os sensores, não teríamos carros desnecessários a ir a contentores que não estão cheios, e não teríamos lixo fora dos contentores”. Mas, para isso, é também preciso que haja “capacidade de resposta” por parte do município.
Por enquanto os sensores estão também a ser usados para que não haja tantos roubos de contentores, algo muito frequente.

2. Atrasos nos contratos das Juntas
Mas não só na recolha se verificaram problemas, também o trabalho das Juntas se viu mais comprometido este ano. É que os Contratos de Delegação de Competências relativos à higiene urbana estavam caducados desde setembro de 2020. Com o tempo de espera para a sua renovação, as Juntas viram-se obrigadas a interromper funções.
A renovação dos contratos foi finalmente aprovada por maioria na CML em maio (com os votos contra dos dois vereadores do PCP, que defendem que as funções de higiene urbana deveriam estar centralizadas na Câmara).
De acordo com a CML, serão pagos às freguesias 7,9 milhões de euros para o ano de 2021 (que o anterior executivo não pagou) referentes ao custo da limpeza que foi calculado de acordo com a pegada turística de cada freguesia. E há um montante de 100 mil euros para cada freguesia para a recolha de lixo depositado junto aos ecopontos e às eco-ilhas, num total de 2,4 milhões de euros para o ano de 2022.
Mas, mesmo assim, as Juntas consideram os valores insuficientes, e não concordam com o índice de pressão turística, conforme explica o Público (por exemplo, segundo estes indicadores, Belém será a 6ª freguesia com mais pressão turística, motivo de descontentamento para a Junta).


Em reportagem pela freguesia de Santa Maria Maior, a Mensagem cruzou-se com dois trabalhadores da Junta encarregues de lavarem as ruas. Pediram para não ser identificados, mas contaram que o cenário dos últimos dias era de “muito lixo acumulado” à custa destes atrasos.
3. Pragas de ratos e baratas
Como se esta situação não bastasse, pelos bairros de Lisboa surgia uma outra queixa, agravada pela questão do lixo: pragas de ratos e baratas.
“Já fiz muitas reclamações por causa de ratazanas e baratas, e já vi mesmo, em sol aberto, ratazanas no miradouro das Portas do Sol”, conta uma moradora da freguesia de Santa Maria Maior.
Mas aquilo que parecia ser o resultado do lixo acumulado tinha também uma outra razão por detrás: no dia 26 de agosto, a CNN noticiava que a autarquia estivera entre 1 de junho a 19 de agosto sem um contrato para a prevenção de pragas.

As ações preventivas continuaram a ser realizadas pelo “Serviço de Controlo Integrado de Pragas (SCIP)” dependente da Divisão de Limpeza Urbana, e a CML terá contratado serviço externo para apoio e realização de operações de prevenção, que terá dado resposta a 1836 solicitações.
Marvila, Lumiar, Belém, Campo de Ourique e Olivais terão sido as freguesias mais afetadas pelas pragas.
Entretanto, entrou já em vigor um novo contrato que prevê o pagamento de 552 mil euros à empresa LUTHISA – Lusitana de Tratamentos de Higiene, Lda. que operará no terreno nos próximos três anos.
4. O turismo
Em Lisboa, há uma outra questão que nos últimos anos mudou as regras de quase tudo na cidade: o turismo.
Mais turismo, mais dinheiro – certo? Era isso que indicava a taxa que passou a ser cobrada. Ou seja, poder-se-ia esperar que o turismo pudesse potenciar melhorias na limpeza na cidade, sobretudo tendo em conta que se passou a cobrar uma taxa a cada turista que se hospeda na cidade.
Mas a verdade é que o valor para o reforço da estrutura da cidade – que incluirá a limpeza, ou o trânsito – num orçamento feito para 2016-2028, num fundo de desenvolvimento turístico que vale 104 milhões de euros, é de apenas 415 mil euros.
Corresponde a menos de 1%. A escolha do município e da ATL que gere este fundo foi a de aplicar o valor na promoção e melhorias da experiência turística em Lisboa – o grosso do orçamento foi para o Palácio da Ajuda, para a renovação e a exposição das Jóias da Coroa (onde foram investidos 17,6 milhões de euros).
Ora, o turismo, quando vem, não atinge Lisboa por inteiro.

No estudo que o professor da NOVA IMS Miguel de Castro Neto realizou sobre a produção de lixo durante a pandemia, a principal conclusão era essa: nas áreas com grande intensidade turística, a produção do lixo diminuíra significativamente.
Poder-se-á então inferir que o turismo é também um dos causadores do que hoje acontece? “Eventualmente podemos extrapolar que agora a produção de lixo se pode ter agravado por causa dos níveis de turismo”, diz o professor.
“Haverá dificuldades dos próprios serviços, nomeadamente das Juntas de Freguesia, em responderem ao aumento exponencial do turismo”, confirma Susana Fonseca, da ZERO.
Como se resolve um problema destes que, neste momento, faz parte da vida da cidade, sobretudo do Centro Histórico?
Susana Fonseca defende que tem de haver trabalho com os alojamentos turísticos. Se os hotéis têm de responder a várias questões relacionadas com o lixo quando querem aprovar os projetos – tratamento, seleção, reciclagem… -, os Alojamentos locais, não. O sistema é bastante mais desorganizado, e, por outro lado, são usadas as mesmas regras que as habitações normais.
A tarifa de resíduos urbanos está indexada à da água – ou seja, isso pode fazer com que os AL não paguem o lixo que produzem, uma vez que o valor pago relativo aos resíduos urbanos é calculado em função do volume de m3 de água faturada. E, no caso de uma utilização errática da água, como acontece com turistas, isso pode não corresponder à produção de resíduos.
Para a ZERO, a resposta passa por estabelecer contacto direto com os alojamentos turísticos. “Temos de assegurar que quem está a usar determinado espaço cumpre regras”.
5. A cidadania
De uma maneira ou de outra, de volta à cidadania. É isso que defende Ana Lúcia Reis, líder do grupo da Graça. “A responsabilidade é das instituições, mas as pessoas podiam ser mais sensíveis”. E se é verdade que este movimento foi criticado nas redes sociais por estar a fazer uma função que tem de ser do Estado, ela dá exemplos do contrário: o lixo no chão, a produção desmesurada de resíduos… tudo isso parte também da cidadania.
Até porque, tal como se pode ver pelo mapa, a distribuição de ecopontos pelo território de Lisboa parece ser equitativa (com a exceção da Baixa, onde o único ecoponto surge na rua da Madalena). No caso das zonas sem ecoponto, há recolhas portas-a-porta, mas há ainda zonas que conjugam os dois: ecopontos e recolha porta-a-porta.

Mas, no entender de uma moradora da freguesia de Santa Maria Maior, faltam “políticas que sensibilizem” para a produção de menos lixo.
Uma conjugação das duas coisas?
O caminho, para Susana Fonseca, é “criar um contexto que facilite aos indivíduos, sejam eles gestores do comércio, da hotelaria ou cidadãos, a participação nestes temas”, diz.
Isto é, são precisas políticas para que as pessoas alterem os seus comportamentos. O aumento da recolha porta-a-porta, por exemplo, seria uma forma de assegurar que as pessoas reciclam mais.
Com a campanha “Lixo não é água”, a DECO tem vindo a lutar para que a tarifa de resíduos seja aplicada em função da quantidade de resíduos recolhidos, e não da água consumida. Uma luta que terá visto vencida com o Decreto-Lei 102-D/2020. O decreto teve uma atualização em 2021, momento a partir do qual os municípios passaram a ter cinco anos para implementar este sistema.
“Estamos num período transitório, em que o município se tem de preparar”, explica Susana Correia, da DECO. “Já há alguns projetos, mas ainda não são a maioria”. Até 1 de julho de 2026, também Lisboa terá de funcionar com um sistema em que os resíduos urbanos terão de ser cobrados em função “ou do peso, ou da quantidade, ou do volume”.
Isto refere-se ao lixo indiferenciado, já que o tratamento e a recolha do lixo reciclável é pago pelos produtores através do chamado “ecovalor” (uma taxa através da qual se atribui responsabilidade ao produtor pelos impactos ambientais que advêm dos seus produtos).
Já em 2023, entrará também em vigor o Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro, que estabelece o cronograma para a separação, recolha seletiva e encaminhamento para reciclagem dos biorresíduos (resíduos biodegradáveis de jardins e parques, resíduos alimentares e de cozinha das habitações, da restauração, do comércio, etc.) que compõem 38% dos resíduos indiferenciados.
A ideia é reciclá-los através da compostagem doméstica e comunitária ou da recolha seletiva e do seu transporte para instalações de compostagem e digestão anaeróbia.
Isto é, aquilo que se espera, em 2026, é pagar apenas por aquilo que é mesmo lixo. Um projeto piloto na Maia, no Porto, já faz isso: é o “Recicle mais, Pague Menos”, em que a tarifa de gestão de resíduos urbanos é calculada em função do volume de lixo indiferenciado recolhido – aplica-se a 10 mil munícipes, que assim pagam apenas pelos resíduos que não reciclam.

Outras lutas também continuam em espera, como a implementação dos “Deposit Refund Systems”, sistemas que consistem no pagamento de uma caução para depois se devolverem embalagens recicláveis.
Uma boa forma de se evitar o lixo à noite nas ruas que foi aprovada em Portugal com o Decreto-Lei n.º 152-D/2017, mas que ainda não entrou em vigor.
Moradores e especialistas referem-se à necessidade do aumento da fiscalização, que noutras cidades é bem apertada: em Calgary, no Canadá, considerada a cidade mais limpa do mundo, são aplicadas multas bem altas se se deitarem beatas de cigarros ou lixo no chão. O mesmo acontece em Singapura.
O espírito de cidadania
Tanta confusão pede mudanças. Mas as mudanças só se conseguem com um forte espírito de cidadania. Talvez seja o lado positivo de tudo isto: a forma como os moradores se estão a unir para solucionar o problema.
“Apenas com o envolvimento de todos e uma cidadania mais ativa, conseguimos ultrapassar este problema”, diz Miguel de Castro Neto.
Pelo mundo, há exemplos de cidades que se unem para limpar as ruas: em Kigali, a capital do Ruanda, promove-se mensalmente um evento em que a comunidade (“umuganda”) se junta para limpar as ruas. É o umunsi w’umuganda (“contribuição feita pela comunidade”), onde todas as pessoas com capacidade física entre os 18 e os 65 anos são obrigadas a participar.

Ottawa, no Canadá, tem programas para manter a cidade limpa, como o Spring Cleaning the Capital, que se realiza entre 15 de abril e 15 de maio e em que mais de 60 mil voluntários se juntam para limpar os parques, as ruas, os espaços verdes e os passeios da cidade.
Em Lisboa, as vozes estão a fazer-se ouvir nas ruas. No dia da ação de sensibilização do bairro da Graça, Elisabete Ferreira, dona da tabacaria-papelaria Havaneza Bandeira, disse logo: “Vou juntar-me, acho que esta situação é inacreditável”.
E contou ainda uma pequena peripécia: “Há um ano, houve uma reunião na Junta e eu perguntei: ‘por que é que cada estabelecimento não limpa o seu pedaço de rua?’. Todos se viraram contra mim. Mas se cada um de nós fizer um bocadinho de trabalho, eu sei que pagamos impostos, mas já que ninguém faz nada…”.

Perante a ineficiência do sistema, Elisabete Ferreira escolhe agir. Ela e muitos outros. Dia 1 de setembro, pelas 19h, os moradores da Graça vão unir-se numa ação de limpeza a começar na Voz do Operário. A seguir à Graça, será a vez de as pás e as vassouras devolverem o brilho às ruas de Arroios.

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Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt
Parabéns à A Mensagem! Já são duas reportagens sobre assuntos muito relevantes para a cidadania em vez das publireportagens mal diafarçadas.
Infelizmente, o lisboeta é muito porcalhão de uma maneira geral.
Todavia, isto não atenua as falhas por parte do poder público.
Artigo muito interessante sobre as minas da Ajuda. E bem documentado. Obrigada,