O passageiro entra no táxi, esbaforido, com aquele sorriso meio vitorioso, meio exaurido, de quem acabou de terminar uma maratona.
– Para onde? – quer saber o motorista.

– Teatro romano, na Rua de São Mamede – responde o passageiro, ainda a recuperar o fôlego.
– Teatro romano? Na São Mamede?
– Sim.
– Não estou a ver um teatro romano na São Mamede…
– Mas há, sim.
– Mas este teatro está lá há muito tempo?
A resposta poderia ser: “há pelo menos dois mil anos…”.
Um teatro que abriga um sítio arqueológico e um museu, uma máquina do tempo rumo à Lisboa dos césares, quando a então Olissipo era um importante entreposto da Lusitânia e, como tal, ostentava um monumental teatro com quatro mil lugares no topo da colina, o imponente cartão de visita para os viajantes que chegavam pelo Tejo.
O diálogo em tom de anedota – mas verídico – travado entre o taxista e o diretor adjunto do Museu de Lisboa, David Felismino, é uma forma de a coordenadora do Teatro Romano, Lídia Fernandes, ilustrar o desconhecimento de alguns lisboetas sobre um equipamento que guarda um passado importantíssimo da história de Lisboa.
Entretanto, nem só de passado vive o Teatro Romano.

Dois mil anos depois, uma intensa agenda cultural tem reforçado os laços com a Olissipo, entre elas o ciclo de palestras gastronómicas À Mesa no Teatro Romano – a história do que comemos como nunca nos contaram, uma oportunidade de comprovar – e provar – que é possível, sim, estar-se em Lisboa, como os romanos.
“Há matrizes da cultura romana que ficaram até hoje, inseridas em traços do nosso quotidiano, como a gastronomia. A proposta é apresentá-las aos lisboetas com um ponto de vista mais leve e inovador, menos professoral, mas sem perder o foco no caráter científico”, explica Lídia Fernandes.

O ciclo de palestras gratuitas acontece desde abril e estender-se-á até março de 2022, trazendo mensalmente um tema relacionado com os hábitos dos romanos e que elucida a o atual comportamento dos lisboetas, como o uso de vinho e azeite pelos olissiponenses de ontem que perdura até hoje e o consumo de fungos e cogumelos.
Os encontros acontecem no sítio histórico do Teatro Romano, por entre as escavações, colunas e pedras, um enorme espaço coberto em plena via pública e que, desde 1970, é bastante visível – embora o citado taxista diga o contrário – a quem passe pelos lados da Sé de Lisboa.
César e Augusto
Em agosto, o tema do ciclo dedicado à gastronomia romana foi o Garum, um tempero preparado à base da lenta decomposição de peixes, especialmente, da sardinha. Uma iguaria tão apreciada pelos romanos que era confeccionada em Tróia – não a grega, mas a das margens do Sado – e enviada numa longa viagem de navio para Roma.
Lídia lembra que os romanos construíram uma enorme linha de produção de extração de sal na vizinha costa de Setúbal só para conservar os alimentos que seriam consumidos nas mesas romanas. “A indústria conserveira criada pelos romanos tem uma ligação estreita com a tradição da técnica de conserva portuguesa”, explica.
A diferença é que, à época, em vez das atuais diminutas latinhas em conserva, a produção romana era despachada em enormes ânforas. Algumas delas foram resgatadas em naufrágios na costa portuguesa e, como explicou a arqueóloga Inês Vaz Pinto, convidada do evento, traziam o nome do cliente pintados na parte externa.
“Dois traços fortes da cultura lisboeta, a conserva e a sardinha, já eram apreciadas pelos romanos ainda antes de Cristo. Foram hábitos que resistiram ao tempo, assim como o carnaval – derivado da lupercália romana – e a troca de presentes no Natal”, explica a coordenadora do Teatro Romano.
Ou seja, se o gosto pela sardinha e a comida em conserva fosse o atributo que definisse o morador de Lisboa, tanto Júlio César como Augusto poderiam ser considerados lisboetas de gema.
Tempero romano made in Sado
Outro convidado no evento de agosto foi Victor Vicente, do projeto Selo de Mar, uma inventiva iniciativa de recriar o Garum dos romanos nos dias de hoje. A primeira experiência, produzida em cozinha industrial, vem sendo testada no seu restaurante, o Can The Can, na Praça do Comércio, e segundo Victor, tem sido aprovada.

“Servimos o prato à mesa e esperamos que o cliente o experimente. Depois, perguntamos se ele deseja provar o Garum. Com apenas uma pequena dose, já percebem a diferença e dizem que só acreditam que é o mesmo prato porque tudo foi feito diante deles”, explicou.
O Garum esteve disponível para ser degustado em plenas ruínas do Teatro Romano. O tempero com um intenso sabor a sardinha e sal recomenda, realmente, o uso comedido nos pratos. A maioria dos presentes, porém, esperava experimentar algo mais rústico, já que originalmente a especiaria tem fama de beirar o intragável.

Victor explica que o tom mais palatável deste Garum se deve à preparação em cozinha industrial. A expectativa de se obter o sabor mais próximo do original está na nova leva da iguaria, que vem sendo preparada desde maio nas ruínas onde os romanos o produziam, no Sado, numa complicada e delicada experiência científica.
Para resumir o processo, as sardinhas são esventradas e imersas na mistura de água e sal para impedir que se estraguem. O composto é posto dentro de enormes sacos de plástico que evitam o contacto com as paredes dos tanques das antigas salinas romanas, diferente do que faziam os inventores da técnica, há mais de dois mil anos.
A partir daí, entretanto, é como na época dos romanos: depende das condições climatéricas e do tempo de cura. A expetativa é que o ciclo do Garum esteja finalizado em setembro e só aí será possível perceber o sabor mais aproximado da versão original.
Para se conhecer mais sobre o complexo processo de produção do Garum basta visitar o sítio – não arqueológico, mas o virtual – do projeto, em: https://www.canthecan.net/garum-em-troia/.
Em Lisboa, como os romanos
A palestra seguida da degustação do Garum esgotou os lugares nas ruínas do Teatro Romano. Lídia Fernandes diz que cerca de 40 a 50 por cento da assistência é composta pelas mesmas pessoas, um público fiel que “gosta da cultura romana” e que vem para travar longas conversas com ela, como se reencontrasse um velho amigo.
A expetativa da coordenadora é que a outra metade dos presentes tome gosto pelo tema e passe também a frequentar o espaço. “Poucos lisboetas se aproveitam do facto de que, além obviamente de Roma, a única capital europeia que tem um teatro romano é justamente Lisboa”, lembra.
Iniciativas como a de À Mesa no Teatro Romano somam-se a outras realizadas pela administração do teatro para tentar que a frequência faça jus a esse facto. Em 2019, antes da pandemia, o Teatro Romano foi visitado por cerca de 70 mil pessoas. Assim como os demais museus, os confinamentos de 2020 reduziram o número para 22 mil.
Além de comer, é possível também aos interessados na cultura dos césares divertirem-se como os romanos. As mesmas ruínas que abrigam a série de palestras recebem uma vez por ano a encenação de peças clássicas. Em julho, esteve em cena Antígona, de Sófocles, antecedida por Rei Édipo, também de Sófocles, e Medeia, de Eurípedes.
Os figurinos utilizados tanto em Rei Édipo como em Medeia podem ser vistos numa exposição na belíssima sede do Teatro Romano, em frente às ruínas, com direito a uma privilegiadíssima vista do Tejo, no terraço.
Um presente para os olhos antes ou depois da palestra sobre a gastronomia romana na antiga Lusitânia, que regressa em setembro.
A oportunidade de perceber que quem tem boca também vai a Lisboa.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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