Nouã ajeita as longas madeixas negras e abre o melhor sorriso para as lentes da fotógrafa Inês Leote. O cenário é a soalheira Praça Paiva Couceiro, em Arroios, a poucos metros onde vive o brasileiro Fábio Guilherme, aka Nouã, o cabeleireiro que tem feito a cabeça de milhares de jovens para além da tesoura, escova e secador de cabelo.
Há dois anos, em plena pandemia, Fábio adotou Nouã como nick nos perfis das redes sociais, um nome artístico aportuguesado do inglês no one ou “ninguém”. A ironia é justamente que, meses depois, Nouã é tudo menos um desconhecido “ninguém”, contabilizando mais de 130 mil seguidores no TikTok e outros 75 mil no Instagram.

Um universo de fãs repartido entre portugueses e brasileiros, que acompanham na timeline as várias peles de Nouã, um influenciador digital que se assume “artista queer” e aposta na descontraída performance diante da câmara para tratar de assuntos sérios, como xenofobia, homofobia e o racismo.
De entre as personagens que encarna no pequeno ecrã, a mais conhecida é a do brasileiro que ironicamente emula o jeito de falar dos portugueses, enfatizando expressões do quotidiano captadas nas ruas de Lisboa e algumas – ou tantas – idiossincrasias inerentes ao temperamento dos lisboetas.
Um divertido sketch que por soar tão familiar aos portugueses acaba por agradar não só aos brasileiros e tem como bordão uma expressão que Inês, a fotógrafa da Mensagem, e tantas outras Inêses em Portugal ultimamente já devem ter ouvido com bastante frequência:
Ó, Ineissssshhhhh!
Um tipo “tristinho” que faz humor
A aventura de Nouã em Portugal começou em 2016, quando o brasileiro nascido em Santa Catarina deixou para trás a cidade natal, Balneário Camboriú, um destino turístico famoso não só pela beleza das praias, mas por ser point de veraneio de uma certa elite brasileira, composta por uma velha aristocracia e novos ricos, com inclinação pela ostentação e ideais de direita – ou para além deles.
“Estava saturado de lá. A verdade é que nunca me identifiquei com as pessoas e o modo de vida da minha cidade e o plano de partir sempre esteve presente”, afirma Nouã, por entre pequenos goles de um fumegante abatanado, servido numa das mesas do café ao pé do prédio onde vive.
Ainda como adolescente Fábio, Nouã começou a trabalhar no salão de beleza gerido pela mãe em Balneário Camboriú. A experiência valeu-lhe as ferramentas para aceitar o convite de arriscar a vida em Portugal, feito por uma antiga amiga brasileira que já havia migrado e já trabalhava como manicura em Lisboa.

Não pensou duas vezes.
O que também não se costuma pensar duas vezes nem ao menos uma é que o sorridente Nouã, hoje com 30 anos, tenha passado por momentos menos felizes nos seus primeiros anos em Lisboa, culminando com uma forte depressão em 2018 que o levou a desenvolver pensamentos poucos recomendados.
“Sempre tive um temperamento negativo, melancólico”, reconhece Nouã, que na adolescência em Santa Catarina chegou a compor uma banda de música experimental pós-punk com o pressagioso nome The Suicide Season.
“Fui ao fundo do poço, mergulhei de cabeça e me besuntei todo na lama.”
Nouã
“Era um tipo tristinho, mas isso se acentuou após os maus-bocados que vivi nos primeiros anos aqui. Havia dias em que não tinha o que comer e períodos nos quais a minha casa se resumia a um quarto vazio e um colchão de ar”, recorda. “Fui ao fundo do poço, mergulhei de cabeça e me besuntei todo na lama.”
Quando se tornou frequente ponderar que talvez viver não valesse a pena, Nouã decidiu emergir do fundo do poço. O chip começou a mudar com a intervenção de amigos próximos e, mais importante ainda, as sessões de terapia.
“Foi ali que começou a minha jornada”, reconhece o brasileiro, que não se cansa de enaltecer os benefícios do processo terapêutico no reels. A “jornada” incluiu a gravação em 2019 do EP Quimera, já livre de pendões pós-punk e de suicide seasons.
Em 2020, Nouã já era uma outra pessoa, nada “tristinho”, mais leve e engraçado, o que levou o namorado à época a sugerir que se aventurasse com vídeos no TikTok. “Disse-me que devia gravar as minhas palhaçadas e postar, e que o TikTok era a minha cara.”
E era. Logo na primeira tentativa, quando só tinha dois seguidores no seu perfil, o vídeo acabou por viralizar e acabou por ultrapassar as 20 mil visualizações.
Nascia, então, mais um fenómeno das redes.
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Ó, Ineissssshhhhh!
A primeira série do brasileiro no TikTok orientava os interessados em “lidar com clientes arrogantes”. Os conselhos eram fruto da experiência de Nouã nos salões de beleza onde trabalhava. “Para ganhar dinheiro como cabeleireiro é preciso trabalhar em estabelecimentos classe A. E rico, sabe como é, não respeita ninguém”, alfineta.

Além de aprender a lidar com clientes arrogantes, Nouã começou a anotar no telemóvel algumas expressões e trejeitos da clientela. O material serviu de base para o próximo sketch do brasileiro e que acabou por catapultá-lo à casa das dezenas de milhares de seguidores: o hit Ó, Ineish!
A rubrica em vídeo começa sempre com a deixa “Eu vivo em Portugal há seis anos e essa é a minha imitação de português”, seguida pela interpretação de frases que é costume ouvir-se no dia a dia de Lisboa, entoadas com a dicção de um brasileiro a imitar o sotaque português.
Entre uma e outra situação, surge em cena um histriónico Nouã a gritar o fatídico “Ó, Ineish!”, assim mesmo, com um demorado sibilar no fim da palavra. “Acho delicioso pronunciar dessa forma. Parece o som de algo que está a ser esmagado”, diverte-se.
“Acho delicioso pronunciar o Inês dessa forma. Parece o som de algo que está a ser esmagado.”
Nouã
A ideia surgiu durante um passeio pelo Cais do Sodré. “Estava a andar tranquilamente quando de repente apanhei um susto ao ouvir alguém gritar, do nada: ó, Inês! Achei que tinha imensa piada e fiquei a rir sozinho”, recorda.
O bordão serve para marcar a mudança entre as situações que se desenrolam no vídeo, mas a verdade é que a “Ineish” ganhou vida própria e se tornou uma espécie de personagem, com direito a mais aparições e falas maiores. O resultado acabou por se traduzir no reconhecimento público.
“Agora, ando pela rua e quando gritam ó, Inês!, viro o rosto pois sei que é comigo”, conta Nouã. “Houve um português a comentar que no trabalho dele havia três Inês e que elas estavam a penar com ele”, continua o brasileiro. “Outro, disse-me que a mulher se chamava Inês e a forma como ele a chamava agora era diferente.”
O surgimento de Ineish rendeu o aumento vertiginoso dos seguidores no Instagram, ao passo de cinco mil por semana. Um desempenho que ainda não se traduziu em ganhos financeiros. “Se fosse no Brasil, certamente seria diferente. Mas em Portugal, as marcas ainda não atinaram para o potencial desse tipo de produto”, avalia.
Para continuar a pagar as contas, Nouã continua a dividir a rotina de cabeleiro com a de produtor de conteúdos. Uma tarefa difícil, pois cada vídeo de um minuto de duração requer pelo menos três horas de produção, entre gravação e edição.
O set de filmagem é o quarto do brasileiro, com vista para a Paiva Couceiro, e os horários de gravação são limitados por uma frondosa árvore em frente à janela. “Quando a árvore faz muita sombra, fica escuro para gravar. No meu caso, o trabalho literalmente obedece o ritmo da natureza”, diz.
Apesar de famoso – ao ponto de frequentemente ser abordado na rua para uma selfie – ainda há clientes no salão que não sabem da vida-dupla do brasileiro que corta, tinge e alisa os cabelos delas. “Noutro dia, uma me abordou, surpresa. Disse que só descobriu que fazia coisas no Insta porque uma amiga partilhou o vídeo.”
O plano maléfico de Nouã
As coisas que Nouã faz no Insta, porém, não se resumem a provocar o riso, mas também a reflexão. O humor contrabandeia uma crítica social direcionada especialmente aos portugueses, sobre a forma como costumam lidar com os estrangeiros, sobretudo com os brasileiros.

Num dos vídeos, Nouã imita um típico senhorio português a narrar o extenso rol de exigências a fim de arrendar o apartamento a um brasileiro.
Entre as obrigações estão o pagamento de “sete rendas e três calções”, a presença de “quatro fiadores”, além das certidões de “nascimento, de casamento e de falecimento”, acompanhados das declarações de IRS, de independência do Brasil e até uma declaração de amor, “escrita à mão”.
Noutra, a Ineish inadivertidamente comenta com amigos que numa festa estavam “quatro pessoas e um brasileiro”.
“São situações levadas ao extremo, mas que ilustram comportamentos recorrentes dos portugueses.”
Nouã
“São situações levadas ao extremo, mas que ilustram comportamentos recorrentes e os portugueses que assistem acabam por concordar que às vezes fazem comentários do género, mesmo que não seja por mal”, diz Nouã.
Recentemente, Nouã estreou uma série onde dois alienígenas comentam, curiosos, o que se passa na Terra. Entre espantos, estranham o fato de os terráqueos divergirem pela cor da pele ou da necessidade de que cada pessoa escolha um género.
Houve ainda outro vídeo protagonizados pelos alienígenas onde Nouã alerta para o “absurdo” de, no nosso planeta, os humanos comerem outros animais.
Vegetariano e não-binário, as críticas de Nouã sobre a obrigação de que as pessoas escolham um género e os hábitos carnívoros da maioria dos outros terráqueos saíram de forma natural nos vídeos, mas não evitaram uma onda de protestos na caixa de comentários nas redes sociais.
O brasileiro, então, conheceu o outro lado da popularidade digital: os haters.
“Não são muitos, é verdade. Para cada duzentos elogios, surge um comentário desagradável. O problema é que eu, como sou, acabo por focar justamente no hater”, explica Nouã, que revela sempre ponderar os limites do seu humor. “Não tenho nenhum interesse em que a caixa de comentários vire um campo de batalha.”
A batalha de Nouã agora é fazer com que sua atuação virtual consiga pagar as contas do mundo real. Os vídeos protagonizados por Ineish fazem parte da estratégia de conquista não só do público português, mas do mercado publicitário local. “Pelo jeito já está a funcionar ou não estaria aqui a dar entrevista”, diverte-se.
Admirador do trabalho do mítico cantor (e barbeiro) António Variações, Nouã revela que o próximo passo traçado no planeamento estratégico é o fortalecimento do lado como cantor, garantindo a abordagem a diferentes públicos. “Sou obrigado a confessar que o meu plano maléfico é fazer todas as pessoas se apaixonarem por mim”, confessa.
Apaixonados pela Ineish todos nós já estamos, Nouã.

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Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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