A primeira tatuagem de Luísa foi gravada em 2013, um prémio pelo primeiro lugar no concurso Miss PinUp do Lisbon Tattoo Rock Fest. Foi a primeira de não faz ideia quantas, “mas certamente mais de vinte” que hoje adornam o esguio corpo da bailarina, performer e figurinista Luísa Correia, 32 anos, psicóloga “doida por dança”, que há cerca de uma década trocou o divã pela ribalta.
Saía então de cena a “doutora Luísa”, estreava-se Louise L’Amour, o nom de plume da miúda que aos quatro anos já fazia os primeiros pliés nas aulas da madame Laure, numa modesta escola de dança de bairro, em Mirandela, e que após tirar o diploma em Coimbra chegaria a Lisboa disposta a cuidar da cabeça dos outros, mas – que Freud não nos ouça – deu alta a si mesma e uma pirueta na própria carreira.
Uma artista com alma empreendedora, diretora da companhia artística Cabaret Lisboa, responsável por trazer para a cidade a quarta edição do The Spectacular Cabaret Fest, um evento que nos dias 17 e 18 de junho vai transformar o clássico salão principal da Voz do Operário em cabaret, recebendo as performances de artistas portugueses e internacionais da arte do burlesco – e não só.
Um cabaret na Voz do Operário
Apesar do vestido colorido, do batom vermelho e dos óculos de sol com as lentes em forma de um par de corações, é a versão business woman de Louise L’Amour quem, sentada à mesa de uma pastelaria no bairro da Graça, mexe o café na chávena, entre pequenos goles de Água das Pedras. “Nem acredito que voltamos a ter uma versão presencial do evento”, confessa, aliviada.

Das três edições anteriores, as duas últimas – como quase tudo na vida durante os anos mais severos de pandemia – foram realizadas no formato virtual. “Precisávamos manter os artistas em atividade, até para continuarem a trabalhar e pagarem as contas”, explica Louise. Assim, eram cobrados bilhetes para assistir às performances via live streaming, uma alternativa que, apesar de praticamente a única, não agradou a todos.

“Alguns artistas sentiam a falta da presença do público e ligavam-me a dizer que não iam conseguir apresentar-se diante de uma câmara”, recorda Louise. “Dizia-lhes para respirarem, beberem um copo de vinho e seguirem em frente.”
É assim, imbuído no melhor espírito “o espetáculo não pode parar”, que o The Spectacular Cabaret Fest chega à quarta edição, novamente presencial, numa versão mais alargada.
A programação, explica Louise, contempla dois dias oficiais, o primeiro deles, com vinte performances, “dez em open stage” e outras dez em concurso pela cobiçada Spetacular Crown.
O segundo dia está reservado aos convidados especiais e cabeças de cartaz, entre eles, Louise L’amour, numa atuação a solo e também em dupla com a sua amiga e sócia na companhia Cabaret Lisboa, Veronique Divine.
Para garantir o ambiente de cabaret dos anos 20 do século passado, o salão da Voz do Operário será decorado como tal e terá mesas diante do palco. Nos intervalos, o público pode circular por um mercado vintage e compor um look compatível com a atmosfera da noite. A expetativa é proporcional à euforia pelo regresso da festa. “Esperamos um público de cerca de 500 pessoas por dia”, torce Louise.
A programação não-oficial começa um dia antes, 16 de junho, numa festa no RCA Club, já com a presença dos trinta participantes do festival, artistas de França, Suíça, Áustria, Finlândia, Reino Unido, Espanha, Países Baixos, Brasil e Bolívia. A ideia é restituir o saudoso calor humano ausente nas frias apresentações via Zoom e garantir aos fãs uma selfie ao lado das estrelas da festa.
Do ultimato ao reconhecimento internacional
Quando não está a organizar festivais internacionais, Louise L’amour está em cena, em espetáculos regulares às sextas no bar Avenew, ao pé do Marquês de Pombal, e também a animar eventos privados variados, como festivais de música e encontros literários.

A carreira performativa foi a reconciliação da aspirante a bailarina Luísa Correia com a dança, interrompida após uma lesão no psoas, músculo de nome curioso, que une a coluna à perna. Uma contusão que, aos 20 anos, de certa forma expõe uma certa crueldade no universo da dança. “Levei um ano a recuperar e quando isso aconteceu já estava velha para pensar em tornar-me bailarina profissional”, conta.

“Velha” já aos 20 anos, à medida que as tatuagens coloriam o corpo da “doutora Luísa”, a psicóloga trocava de pele. Da estreia performativa amadora que lhe rendeu o título de Miss PinUp ao profissionalismo como estrela lisboeta do burlesco, Louise passou por um verdadeiro teste psicológico antes de abraçar em definitivo a vida de artista em tempo integral.
“Trabalhava como psicóloga numa ordem profissional e certo dia mostrei umas fotografias minhas no palco aos colegas de trabalho. Foi quando um dos patrões, ao me ver produzida em cena, disse claramente que deveria escolher entre uma coisa ou outra, pois não era permitido conciliá-las”, conta Louise.
“Foi uma decisão difícil, mas não tive dúvidas. Decidi ser artista. Entreguei a minha carteira na Ordem dos Psicólogos, passei uma noite a chorar e a beber ginjas num bar por trás do Dona Maria II, mas no outro dia já estava pronta para o desafio.”
E estava, mesmo.
Ainda com o sabor agridoce na boca, entre o amargo do ultimato do patrão e o doce da ginja, Luísa fez as primeiras apresentações como Louise L’Amour em bares na Rua Cor de Rosa e no Bar da Velha Senhora, no Cais do Sodré, paragens obrigatórias para os profissionais dos espetáculos de variedade.
Foi o início de uma trajetória que rapidamente extrapolou os limites da cidade e de Portugal, culminando com o título do World Burlesque Crown, em Londres, em 2018.

Em 2017, Louise decidiu abrir a própria companhia, o Cabaret Lisboa, em sociedade com outra artista portuguesa coroada na prestigiada competição londrina, Veronique Divine. Para ambas, era a oportunidade de gerir melhor a carreira e ainda dar um tom mais profissional a um mercado conhecido mais pela criatividade e liberdade de movimentos do que pelos rigores da gestão.
Até então, as amarras limitavam-se apenas aos espartilhos do figurino.
Foi essa versão CEO da Louise L’amour que se despediu após a entrevista com a Mensagem, entre telefonemas com patrocinadores, negociação com fornecedores, um olho nos próximos compromissos na agenda e outro no relógio do telemóvel.

Antes, porém, houve tempo para a artista-gestora fechar a agenda e abrir o sorriso, na breve sessão de fotografias para a matéria, no palco da Voz do Operário, onde ela e os outros artistas estarão em ação por estes dias, quando a psicóloga promete sarar os traumas da pandemia dos fãs do burlesco e de outros géneros do teatro de variedades, transformando Lisboa num colorido e divertido cabaret.

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Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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