De duas em duas semanas, às quartas-feiras, a centenária Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul, hoje sediada na antiga Casa dos Mundos, na rua Nova da Piedade nº66, em São Bento, conhecida pela sua atividade no mundo das artes, espera leitores. 18h59 é a hora marcada porque às 19h os microfones têm de estar a postos e as vozes afinadas para se começar a gravar o programa de rádio OTL da Voz – Ocupação Textos Livres.
Este é um programa da Rádio Voz Online Cossoul em que o público é convidado a ler. Sim, a ler. Poesia, textos dramáticos… o que for. E todas as sessões recebe um convidado. Por aqui, já passaram nomes como os das atrizes Carla Madeira, Lígia Soares, Patrícia Paixão.
Hoje, é a vez de Luís Palma Gomes, poeta, dramaturgo e engenheiro, que se senta em frente ao microfone, numa sala com escuridão intimista.


“Letras, ciências ou artes?”. “Verde, azul ou vermelho?”. “Beatles ou Stones?”.
Filipe Fictício, um dos criadores do programa, quebra o gelo com perguntas de escolha múltipla para o convidado. Estão abertas as hostilidades. Que se dê início ao espetáculo!
Mas calma, isto não é uma peça de teatro, como a equipa do OTL esclarece. O objetivo não é criar uma “performance” mas sim lançar os leitores numa “procura pelo texto” ao longo de vários jogos de leitura. Este é, sim, um programa de rádio aberto ao público.
Uma rádio na Cossoul
Convidar o público a ler: esta foi uma ideia que surgiu a propósito de um workshop de Miguel Castro Caldas e Lígia Soares em torno da peça de teatro “Se eu vivesse tu morrias” de Miguel Castro Caldas.
Alguns dos participantes juntaram-se e o conceito foi nascendo: “Começámos a pensar fazer alguns eventos na área da leitura”, explica Filipe Fictício. Essas leituras viajaram até aos festivais de teatro, e foi nessas andanças que Filipe Fictício se cruzou com Teresa Rouxinol, uma velha amiga da Cossoul, prestes a fundar uma rádio nesta sociedade – a Rádio Voz Online Cossoul.
“As artes sempre foram uma paixão”, confessa Teresa com um sorriso. Foi por isso mesmo que quando aterrou na capital em 1994 correu as portas da cidade à procura da Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul, o lugar onde começaram grandes nomes do teatro como Raul Solnado. “Sempre gostei muito dessa malta velha”, diz.

O primeiro grande contacto com esta associação deu-se quando a companhia de teatro amador da qual fazia parte fez um pedido para apresentar um espetáculo de Woody Allen no espaço da Cossoul, nessa altura ainda na Avenida D. Carlos I, próximo da rua da Esperança. Foi um sucesso.
Entretanto, os anos foram passando, mas, para Teresa, havia uma valência que faltava à sociedade: a rádio. Por isso, em 2019, Teresa e o seu amigo Carlos Cerqueira propuseram à Cossoul isso mesmo. Um pouco ao mesmo tempo, conheceu Filipe Fictício e a sua trupe. Um dos programas da rádio Voz Online Cossoul estava então escolhido.
Mas tudo coincidiu com a chegada da pandemia. As portas da Cossoul fecharam-se. Os espetáculos de teatro e os concertos foram adiados indefinidamente. Que arte vive da distância? A resposta estava ali mesmo: a rádio. Foi montado um estúdio no piso de cima do espaço, onde uma velha placa com a inscrição “On Air” marca aquele território como o de gravação. Mesmo com as portas fechadas, a Cossoul não parou.
A longa história da Cossoul
O espaço que acolhe a rádio Voz Online e o OTL tem muitas histórias para contar. Não o espaço físico, que é recente, mas a Cossoul enquanto sociedade, que este ano celebra 137 anos. Essas histórias são contadas pelas fotografias que se espalham pelas paredes, pela memorabilia deixada nos corredores, pelo pó que se acumula nos livros da livraria.
Virgínia Barbosa é hoje a presidente desta associação e, apesar de jovem, conhece bem a história da Cossoul. Engenheira informática, mas cineasta nos tempos livres, assumiu a função de presidente da sociedade e traça o seu passado como se o tivesse vivido na pele.


A Cossoul foi fundada em 1885 por 47 músicos amadores, admiradores do violoncelista e também fundador dos Bombeiros Voluntários de Lisboa Guilherme Cossoul, e instalou-se na Avenida D. Carlos I, no bairro da Madragoa.
A ideia principal, que explica o porquê de esta ser uma Sociedade de Instrução, seria ensinar música às crianças mais carenciadas do bairro da Madragoa. Porém, a Cossoul não ficou apenas por aqui: foram muitas as crianças que ali aprenderam a ler e a escrever, e muitos os pescadores que, no final de um dia de trabalho, passaram a dominar um instrumento musical.
Com o tempo, aquela que começara por ser uma associação ligada à música, o “Conservatório da Esperança”, abriu caminho para o teatro. “Foi na Cossoul que o teatro moderno ganhou força”, conta Virgínia.




Foi no antigo espaço que se estreou a primeira peça de Harold Pinter em Portugal, onde Luís Sttau Monteiro apresentou o seu primeiro espetáculo e onde Amélia Rey Colaço fazia castings secretos para as suas produções.
Do teatro, passou-se a todas as outras artes: hoje, a Cossoul tem uma editora de livros de poesia, teatro e ficção curta, a Artefacto, que dispõe da sua própria livraria, e a sua companhia de teatro residente, o Coletivo Prisma.
Para além disso, organiza sessões de cinema de curtas-metragens (o Shortcutz Lisboa), tem uma galeria dedicada às artes visuais e, antes da pandemia, era promotora do evento Reverso, um encontro entre autores, artistas e editoras independentes.
Em 2016, iniciou o projeto Banda Juvenil Guilherme Cossoul, uma banda filarmónica para as crianças da freguesia da Estrela que não têm a possibilidade de estudar música. Hoje, já muitas das crianças que aqui começaram estão a estudar no Conservatório. “É muito interessante ver a evolução das crianças”, diz Virgínia.
Em 2018, depois da sede na rua da Esperança ter sido vendida, chegaram a este novo espaço. “Temos tirado o maior partido possível deste lugar, tem um cariz mais intimista”, conta. “Os músicos de jazz têm dado um feedback positivo, gostam da acústica, sentem que as pessoas estão mais atentas”.



Neste momento, a Cossoul vive de alguns dos seus projetos internos, mas também muito de parcerias com a Escola Artística de Música do Conservatório Nacional, a Universidade Lusíada e a Escola Superior de Música de Lisboa, instituições que aqui apresentam concertos com os seus alunos.
A procura por um novo espaço continua, mas enquanto se mantêm aqui, as suas portas estão abertas, e a sua programação inclui um programa de rádio que tem muito de inovador. “Os outros programas de rádio são feitos em estúdio e são limitados, o OTL permite que qualquer pessoa possa participar”, resume Filipe Fictício.
Montam-se os microfones, preparam-se os textos, Filipe Fictício bate uma palma e chega a hora de os participantes virarem leitores de rádio.

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Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
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