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Amantes do samba em Lisboa, uni-vos. Há cerca de um ano, a Voz do Operário tem sido o quartel general do estilo musical que está para os brasileiros como o fado para os portugueses.

A iniciativa de trazer aos lisboetas não apenas os acordes, mas a atmosfera das rodas de samba do Rio de Janeiro, o berço do ritmo, está a cargo do projeto gastro-músico-cultural Samambaia, que aos poucos vem convertendo a mítica escola de cariz comunista, também, numa escola de samba.

Oficialmente, o Samambaia é um espaço aberto à música lusófona – já recebeu artistas portugueses, cabo-verdianos e angolanos, e chega a dedicar as noites de quinta-feira ao jazz – mas não há como negar que o carro abre-alas da casa são os sábados de samba, que reúnem brasileiros, lisboetas e turistas, dedos no ar, no reger imaginário das notas, a mãozinha a calibrar o rebolado do quadril e os pés a pegarem fogo. Uma mistura que abana as severas estruturas da Voz do Operário, provando que um bom samba também é capaz de fazer tudo que é sólido dissolver-se no ar.

“Faltava um sítio semelhante aos sambas do Rio no espaço, na qualidade do som e das bandas.”

Andrea Zamorano.
A casa abriu em setembro de 2020, entre a primeira e a ainda inesperada segunda vaga da pandemia. Foto: Rita Ansone

No comando do Samambaia – nome que duplamente contém as letras e um certo batuque do “samba” – estão a escritora e empresária Andrea Zamorano e a produtora musical Amanda Menezes.

Quase três décadas separam a mudança das duas cariocas para Lisboa (a primeira, em 1991 e a segunda, em 2019), mas independentemente do tempo de residência cá, ambas chegaram à mesma conclusão. “Faltava um sítio semelhante aos sambas do Rio no espaço, na qualidade do som e das bandas”, resume Andrea.

Amanda Menezes e Andrea Zamorano, as cariocas que abriram um bar para poderem matar as saudades do legítimo samba do Rio de Janeiro.

O match deu-se em 2020, em plena pandemia. Apresentadas por um amigo em comum, o escritor João Paulo Cuenca, as duas logo resolveram tirar do papel os planos de sociedade num espaço dedicado às artes e ao samba.

A partir daí, Andrea guiava a sua mota por Lisboa com Amanda presa à boleia, em busca de um espaço para acolher o futuro Samambaia, mas sem gostarem muito do que viam. Até que a peregrinação terminou na Voz do Operário.

“De imediato, pensamos as duas: é esse o lugar! Havia um edital para ocupar o bar da escola e que exigia algo para além do serviço de restauração. Como já tínhamos um projeto a unir gastronomia, música e cultura, fomos aprovados”, relembra Amanda.

Desconfinando o samba

A casa abriu em setembro de 2020, entre a primeira e a ainda inesperada segunda vaga da pandemia. Fechou temporariamente poucos meses depois, quando o confinamento recrudesceu, e voltou a abrir no início do verão. Desta vez, a todo gás. Desde então, os fins de tarde de sábado na Graça têm-se imbuído de um espírito carioca.

Depois do abrir e fechar de portas pela pandemia, o Samambaia retomou as atividades com toda a força. Foto: Rita Ansone

“Estamos a desconfinar o samba em Lisboa”, comemora Andrea, que divide a gestão do Samambaia com a do Café do Rio, o restaurante que abriu há 12 anos na Baixa lisboeta, o primeiro em Portugal a ousar pôr as palavras hambúrguer e gourmet na mesma frase.

“Fomos também os pioneiros a cunhar o termo hamburgueria em Portugal”, orgulha-se a escritora, autora do livro A Casa das Rosas, sobre a sua contribuição também para o léxico luso-alimentar.

O Jerónimo [de Sousa] já veio tomar um café aqui e também aquele bonitão, o João Ferreira.”

Andrea Zamorano

É a experiência dela em lidar com o exigente setor da restauração que dá sustentação à vertente bar do Samambaia, que abre religiosamente às 8h e, para além das noites musicais de quinta a sábado, funciona como uma “cafetaria normal” para o público em geral, funcionários e habitués da Voz do Operário. “O Jerónimo [de Sousa] já veio tomar um café aqui e também aquele bonitão, o João Ferreira”, conta Andrea, vaidosa pela preferência da cúpula do Partido Comunista Português.

Embora Andrea também dê as suas contribuições, a logística da programação musical ficou a cargo de Amanda, apoiada em mais de duas décadas como produtora no Rio. A relação com vários dos artistas brasileiros que escolheram Lisboa para viver – vários deles refugiados do governo Bolsonaro, como a própria Amanda – permitiu-lhe organizar o set de apresentação da casa.

“Há muitos músicos de excelente qualidade que moram aqui e também sentiam falta de um palco para se apresentarem”, conta Amanda. “Juntamos a fome com a vontade de cantar”, resume Andrea.

Rimando sambista com comunista

Apesar de desconversarem sobre o Samambaia ser uma “roda de samba comunista” e de jurarem que a escolha pela Voz do Operário se deu por outros fatores, como a localização e as condições do espaço, há na filosofia da gestão uma certa simpatia com a luta pelo bem comum e a defesa da igualdade de classes. 

“Um dos nossos diferenciais é o respeito pelo artista”, explica Amanda. “Durante a minha trajetória na produção, aprendi que o músico pode viver sem produtor, mas o produtor não vale nada sem ele.”

Há cerca de um ano, o Samambaia tem transformado as tardes de sábado na Voz do Operário. Foto: Rita Ansone

A dialética na relação entre produtor e artista levou o Samambaia a investir no valor pago para quem lá se apresenta e os 10 euros cobrados como couvert revertem totalmente para os músicos, que numa boa noite podem receber até 500 euros de caché.

“Há quem nos diga que acha caro, mas gasta o mesmo ou até mais num drink. E aí, eu pergunto: será mesmo caro pagar isso a quem preparou um concerto especialmente para aquela noite, que estudou anos e passa horas por dia a praticar? Parece-me que não”, diz Amanda.

“Fazemos questão de subir ao palco e apresentar os artistas, para que fique claro que se trata de um espetáculo.”

Amanda Menezes

A valorização de quem rima sambista com comunista vai além da não-exploração dos patrões sobre os proletários da canção e estendem-se à acolhida respeitosa do Samambaia.

“Fazemos questão de subir ao palco e apresentar os artistas, para que fique claro que se trata de um espetáculo, que não é música de fundo para a conversa, pois a postura da casa influencia na da audiência”, continua Amanda. “Desde julho, quando reabrimos, já tivemos 60 concertos e não houve uma única vez que não tenha recebido uma mensagem de reconhecimento em relação ao nosso tratamento.”

O espírito guitarra, pandeiro, percussão, foice e martelo segue na camaradagem entre os músicos e os donos do Samambaia, despreocupados com o conceito pequeno-burguês de propriedade privada. “Até recentemente, os microfones, a mesa de som e as colunas do palco eram emprestados pelo casal Mallu Magalhães e Marcelo Camelo”, confidencia Andrea.

Uma fama que já chegou ao Brasil

Até o início da última fase de desconfinamento, em outubro, as noites de samba estavam mais comportadas, afinal, as pessoas não podiam levantar-se e dançar, para não desafinar nos cuidados sanitários. “Eu sou uma psicopata das normas, cumpro tudo direitinho”, justifica Andrea.

Para se ter uma ideia, mesmo estando os clientes livres para balançar o esqueleto, a “psicopata das normas” decidiu manter a lotação dos tempos da pandemia, no melhor estilo nem tudo na vida é lucro. “Continuamos com os 40 lugares no interior e os 20 no exterior”, assinala Amanda.

“Há amigos músicos no Rio que me perguntaram como fazer para se apresentarem aqui.”

Amanda Menezes
Apesar do relaxamento das medidas, por precaução o bar continua a funcionar com a lotação dos tempos de pandemia. Foto: Rita Ansone

A libertação do salão fez a diferença na missão de reproduzir em Lisboa o tal espírito do carioca, o que deve fazer aumentar a fama do Samambaia. Reputação que já atravessou o mar em direção ao outro hemisfério.

“Há amigos músicos no Rio que me perguntaram como fazer para se apresentarem aqui”, conta Amanda que, com a pandemia a dar sinais de trégua, arrisca a planear o próximo passo da importação da cultura sambística para Portugal: “Já estamos a pensar em organizar um bloco do Samambaia para o Carnaval”, revela.

Enquanto fevereiro não chega, as tardes de sábado no Samambaia são uma excelente oportunidade de se reencontrar com o samba carioca, ou de conhecê-lo, se for o caso, e acertar o passo e soltar a voz, sendo a voz de um operário ou não. Contraria também quem pensava que meter Marx no samba não valia à pena, “mais-valia”.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt

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