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Nos contos de fadas, o final é sempre o mesmo: “e viveram felizes para sempre”. Mas no Palácio Marquês de Abrantes, em Marvila, não se esperava esse fim. Os anos passavam e a ferrugem substituía o brilho de outros tempos. Pelos corredores, morriam as recordações da realeza que por ali passara. A fachada principal, que sobrevivera ao terramoto de 1755, desgastava. Da Escola Normal, ali inaugurada no século XIX, restava a memória da poeira do giz. Resistia apenas a Sociedade Musical 3 de Agosto 1885.
Mas o destino deste Palácio mudou. No passado dia 6 de maio, o arquiteto porta-voz desta mudança, Tiago Mota Saraiva, abriu as portas do Palácio para convidar os curiosos a conhecerem os seus tesouros escondidos numa das 35 visitas organizadas por 25 cidades europeias pela Cultour no âmbito do Prémio de Arquitetura Contemporânea da União Europeia Mies van der Rohe 2022.
É que de património esquecido, este Palácio chegou à lista de 40 candidatos aos cinco finalistas desse prémio.


Tudo graças ao trabalho de reabilitação participativa promovido pela empresa de arquitetura ateliermob e pela cooperativa Trabalhar com os 99%. “Não há aqui uma obra finalizada de arquitetura, há um projeto em curso e um conjunto de experiências”, explica Tiago Mota Saraiva. Nessa lista, figurava também uma outra obra de reabilitação de Lisboa: a da Ribeira das Portas do Mar e do Campo das Cebolas, de Carrilho da Graça e Victor Beiramar Diniz.
Hoje, dia 12 de maio, o prémio será entregue ao projeto The Town House – Kingston University, em Londres, pela Grafton Architects no Mies van der Rohe Pavilion em Barcelona.
O novo Palácio Marquês de Abrantes
Por estes dias, quem passar as portas do Palácio Marquês de Abrantes, encontra a sua cronologia desenhada num quadro a giz. Pelas paredes, começam a traçar-se histórias e a ser recolhidos vestígios do passado. Logo a seguir, fica a sala que Tiago Mota Saraiva apelida de a “Ágora”, que se enche nas reuniões de moradores, onde se partilham experiências e se debate o futuro do Palácio.
Lá fora, pela hora de almoço, assam-se sardinhas nos antigos tanques onde as mulheres se reuniam para lavar roupa e conviver. Quando a barriga dá horas, os arquitetos saem do atelier que ali instalaram para almoçar no café/restaurante da Sociedade Musical 3 de Agosto.


O ateliermob e a Trabalhar com os 99% chegaram ao Palácio em 2017 graças a um financiamento do programa BIP/ZIP e começaram a desenvolver aquela que foi a sua primeira ideia: criar um centro de acolhimento para refugiados através de um processo participativo.
Nesse mesmo ano, organizou-se uma exposição documental pelo Centro de Investigação Artística – Hangar com a participação de cinco artistas que refletiam sobre a zona oriental de Lisboa e a memória da população operária.
Entretanto, com um financiamento negado e um grande imbróglio burocrático, o ateliermob e a Trabalhar com os 99% tiveram de abandonar o espaço, e só conseguiram voltar em 2021, depois de uma visita do antigo presidente da Câmara Fernando Medina que lhes permitiu assinar um protocolo de um ano.

Com o tempo, a ideia do centro de refugiados foi sendo abandonada. Hoje, aquilo que se planeia para o Palácio é dividir o edifício pelo Estado, pela comunidade de Marvila e por uma entidade que saiba gerir os diferentes usos, surgindo assim um espaço para a habitação (ainda está a ser discutido se temporária ou permanente), um espaço de coworking, um espaço com serviços de Junta de Freguesia e um espaço para associações de desenvolvimento local.
No espaço de habitação, o objetivo será “cruzar as boas práticas de acolhimento”, diz Tiago Mota Saraiva. Afinal, os fregueses de Marvila são bem conhecidos por isso mesmo: vindos sobretudo das Beiras, instalaram-se nos anos 1970 no Bairro Chinês, e estão mais que habituados a acolher.
Mas esta é uma habitação que pode também servir temporariamente para essa população de Marvila que vive com carências enquanto as suas casas estão em obras.
Neste momento, os arquitetos estão a trabalhar com a OpenHeritage, uma associação que acompanha vários casos de estudo de edifícios que são património e que são abertos às comunidades para se ensaiar modelos de gestão. No final de julho, terão de abandonar o Palácio e entregar o projeto final.

A história de Marvila
Era uma vez Marvila. Um território que remonta a tempos pré-históricos, viajando pelo período romano e passando pela presença visigoda. E era uma vez um Palácio, edificado no século XVII, nos terrenos dos condes de Figueiró, e por onde passaram figuras ilustres como D. Catarina de Bragança.
Mas um Palácio onde também se alojou parte da população que trabalhava nas fábricas do século XX, e que portanto assistiu às transformações de Marvila: de terra aristocrática a lugar de industrialização, hoje tantas vezes esquecido e marginalizado.
O ateliermob só ouviu falar deste Palácio em 2016, 2017 quando já surgira o projeto Trabalhar com os 99%. Nessa altura, empresa e cooperativa trabalhavam para melhorar as condições de espaço público dos bairros PRODAC Norte e Sul, cujas casas tinham sido recentemente regularizadas.
Entretanto, com o trabalho desenvolvido para o Parque Intergeracional de Marvila, os habitantes da freguesia começaram a falar deste Palácio expectante, do outro lado da rua de Marvila. Era um Palácio que lhes dizia muito. Afinal, foi para aqui que algumas famílias vieram morar em 1919, quando a Escola Normal Portuguesa que se instalara no Palácio em 1862 foi desativada.
Mais tarde, nos anos 1950, na antiga Quinta do Marquês de Abrantes, construía-se o Bairro Chinês, que se tornaria o maior bairro de barracas da zona oriental de Lisboa, com cerca de dez mil habitantes.


Há sobreviventes desses tempos, claro. Como Fernando de Jesus Vieira, conhecido por estas bandas por “senhor Vieira”. Nasceu e cresceu no Bairro Chinês com os pais e os cinco irmãos. “Era uma província autêntica, mas fui lá feliz”, conta, com saudades. “Era tudo gente humilde, trabalhadora e honesta”.
Com quatro anos, Fernando atravessava a linha do comboio para jogar à bola no pátio do Palácio, onde viviam muitas famílias. No verão, com o calor, os corredores do edifício enchiam-se de colchões. “Era o salve-se quem puder!”, recorda numa gargalhada. Por ali, vivia até uma família com 12 filhos que chegou a ser premiada por Salazar por ser numerosa.

Esta realidade começou a transformar-se. Em 1965, perante a problemática da escassez de habitação e o crescimento dos bairros de barracas, surgia o Plano de Urbanização de Chelas, um investimento em habitação social.
Seguia-se a criação da Associação de Produtividade na Autoconstrução (PRODAC) por iniciativa da União Católica dos Industriais (UCIDT) e da Caritas, com o objetivo de realojar as populações carenciadas através da participação coletiva.
A demolição do Bairro Chinês e o realojamento dos seus habitantes começou em 1970 – o ano em que a Câmara Municipal adquiriu o Palácio Marquês de Abrantes. O bairro da PRODAC (Norte e Sul) construiu-se na antiga Quinta do Vale do Fundão, entre Chelas e Marvila, na zona oriental de Lisboa. As famílias construíram as suas próprias casas durante os fins-de-semana. Casas que foram sendo preservadas ao longo dos anos.

Mas o sonho de uma habitação condigna não ficou concretizado. Com a falência da PRODAC, estas casas não ficaram regularizadas. Uma luta que se estendeu ao longo dos anos.
Foi graças ao trabalho em colaboração com a Associação de Moradores e o município que em 2016 se pôs fim a uma batalha com 40 anos: foi aprovada a Alteração ao Projecto de Loteamento do bairro da PRODAC Sul e Norte e os critérios de alienação dos bairros.
Com esta aprovação, mais de 2500 pessoas viram reconhecido o direito à propriedade de sua casa pela compra do terreno municipal. Uma vez que muitos dos moradores não tinham capacidade financeira para tal, permitiu-se a compra através de um instrumento de renda resolúvel a dez anos sem terem de recorrer a crédito bancário nem serem penalizados com a aplicação de juros.
Preservar a memória (e a História) de um Palácio
Quando os arquitetos chegaram ao Palácio em 2017, havia uma certa desconfiança da população de Marvila. Mais do que desconfiança, descrença em relação ao futuro da sua freguesia e aos territórios expectantes que nela sobreviviam.
Mas muito começou a ser feito: discussões com moradores, sessões de cinema (a escolha mais famosa foi O Pátio das Cantigas), conversas e partilha de experiências entre todos. “A questão do trabalho aqui está muito presente”, conta Tiago Mota Saraiva. “Um senhor que trabalhou na contabilidade da Fábrica Nacional de Sabões veio cá falar da sua experiência e disse ‘se a sociedade ainda existisse, eu ainda lá estava’”.

Um trabalho que foi muito cimentado também pela criação da Biblioteca de Marvila, inaugurada em 2016, que permitiu o “cruzamento das comunidades”, explica o arquiteto. “As pessoas agora conhecem-se umas às outras”, diz. “Criam-se dinâmicas de familiaridade entre todos”. E é essa familiaridade que combate a insegurança, um dos temas de discussão na hoje “Ágora” do Palácio.
Já muito ali se discutiu: desde a questão do estacionamento à presença dos tanques, uma imagem que os arquitetos querem preservar, mas que os moradores abominam. “As pessoas associam-nos a tempos de pobreza”, explica Catarina Dente, arquiteta da Trabalhar com os 99%.
A próxima discussão será sobre o destino do pátio do Palácio, hoje entregue à Sociedade Musical 3 de Agosto.“Vai ser difícil”, desabafa Tiago Mota Saraiva. “Há quem diga que o pátio está demasiado dependente da 3 de Agosto, há quem diga que tem de estar de portas abertas, outros dizem que se devia fechar”.

Mas o trabalho não fica por aqui. Com o regresso em 2021, começou a fazer-se um registo histórico de tudo o que se viveu neste Palácio. Quando o arquiteto João Vieira Caldas visitou o edifício, disse uma frase curiosa, que hoje Tiago Mota Saraiva partilha com os alunos nas aulas: “Os arquitetos, quando veem a história de um edifício, olham para cima e os arqueólogos olham para baixo”.
Era preciso alguém que procurasse a História no chão, e não no teto, e por isso mesmo hoje o atelier trabalha em colaboração com uma arqueóloga, que lhes tem permitido fazer descobertas. Na sala da “Ágora”, há azulejos que hoje se sabe serem anteriores ao palácio. E há peças de madeira que poderão ter sido o telhado de um edifício pré-existente: uma capela, especula-se.
Por Marvila correm também histórias sobre túneis subterrâneos que passam por esta zona. Nem tudo será descoberto até julho, claro, mas os arquitetos têm-se divertido com as histórias que o edifício e os seus vestígios contam.


“Como se reabilita um edifício público como parte de um processo que não faz a gentrificação, mas que sedimenta o território?” foi a pergunta lançada em 2017 e que hoje encontra as suas respostas.
O senhor Vieira continua a frequentar o café da Sociedade Musical 3 de Agosto, e conhece bem os arquitetos que se instalaram no Palácio: “Se é um edifício da Câmara, é normal que estas reabilitações aconteçam para se resolver os problemas da cidade”, diz.
“Isto é muito experimental”, comenta Tiago Saraiva Mota. “Temos esta ideia de que os projetos podem depender do processo, percebendo o que as pessoas querem e não querem”. Numa Marvila de “vazios urbanos”, o Palácio Marquês de Abrantes parece bem encaminhado para finalmente encontrar o seu final feliz junto da sua comunidade.

Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt
Tem sido muito interessante descobrir “esta Lisboa” pelas vossas mãos, olhos e corações!.
Que nunca vos falte ânimo e empenho.
Muitíssimo obrigada