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“Quando era rapaz namorei uma rapariga da Penha de França, foi um sururu aqui no Alto do Pina. Os meus pais não gostaram, os dela também não e os vizinhos fartavam-se de comentar. Era uma espécie de Capuletos contra Montéquios, como no Romeu e Julieta, mas com um desfecho bem menos trágico. Cada um foi naturalmente para o seu lado, sem dramas. Não sei o que será feito dela.”
Quem assim desfia as memórias de juventude é Alfredo Matos, 82 anos, alfaiate reformado, nascido e criado no alto do Pina, bairro típico de Lisboa, entre a Alameda Dom Afonso Henriques e as Olaias, onde ainda é bem notório o perfil operário de toda a zona oriental da cidade. “Hoje, as rivalidades estão mais esbatidas, só ‘acordam’ em junho, quando as marchas descem à Avenida”, continua Alfredo. “Mas nem somos dos piores, entre Alfama e Marvila, por exemplo, há muitas provocações e a coisa nem sempre acaba bem.”
Houve outro momento crítico a bulir de forma muito mais importante com as relações entre bairros tão próximos, na geografia como no perfil sociológico: quando a Câmara Municipal de Lisboa alterou os limites das freguesias. Em 1959, o Alto do Pina foi uma das 12 freguesias criadas pela reorganização administrativa da cidade à custa da divisão das freguesias de Beato, Marvila e… Penha de França.
Agora, a situação foi revertida, na reorganização de 2012 (e que entrou em vigor após as eleições autárquicas do ano seguinte), quando se extinguiu a freguesia do Alto do Pina e o seu território ficou quase integralmente sob a jurisdição da nova freguesia do Areeiro, com uma pequena parte anexada à do Beato. “Esta medida criou muita indignação”, diz Alfredo Matos. “Sentimos que nos retiravam importância. O Areeiro, embora esteja aqui ao lado, é outra coisa e outra gente.”
A territorialização da cidade existe e é sociologicamente relevante. Luís Matias, fundador da recém-criada AMOR – Associação Moradores e Comerciantes de São João e Penha de França, cresceu neste bairro, “a ver passar os basquetebolistas norte-americanos que ajudaram a fazer do Estrelas da Avenida (sendo a Avenida em questão a General Roçadas) uma referência da modalidade em Portugal”. Sente que “a rivalidade acontece na altura das marchas”. No entanto, desde 2012 nota também “essa mágoa latente originada pela nova organização administrativa da cidade: “É verdade que existiam juntas a mais, mas o desaparecimento da antiga freguesia de São João (integrada agora na Penha de França) deixou os fregueses muito tristes.”
Bairros para operários
Ilda Amaro, professora do Ensino Secundário, voltou aos 60 anos à Penha de França onde cresceu. Lembra-se dessas rivalidades antigas, com namoros censurados e algumas trocas de insultos, mas diz que tudo se esbateu entretanto: “Há uma realidade inelutável, que é a passagem do tempo. A Penha de França da minha adolescência era um bairro muito vivo, cheio de crianças e pessoas na flor da idade. Hoje perdeu muita população e a que existe está muito envelhecida.”
Penha de França, um bairro com vista sobre a cidade.
Ao sol, no Jardim da Praça Paiva Couceiro.Encontro de vizinhas no Alto do Pina.
Os pais de Ilda, que viveram na Penha até ao fim das suas vidas, trabalhavam numa fábrica em Marvila. O mesmo acontecia com a generalidade da população residente aqui, como no Alto do Pina, despojando esta rivalidade ancestral de qualquer arremedo de luta de classes. Para o verificar, recuemos a 4 de julho de 1937: um atentado falhado contra Salazar lança a polícia política numa busca frenética por culpados. Na precipitação, acusa-se um grupo de homens, com alegadas ligações ao Partido Comunista, a que se dá o nome de grupo do Alto do Pina. São, na sua maioria, operários, como a grande maioria dos habitantes daquele bairro de Lisboa.

O mesmo acontecia na vizinha Penha de França. A urbanização desta zona da cidade está intimamente ligada ao arranque da industrialização do país na segunda metade do século XIX. Como escreve o olisipógrafo Júlio Castilho na sua Lisboa Antiga (volume IX): «O próprio Caracol da Penha (que parece tão calado) se o interrogarmos, dir-nos-á que ainda em 1857 não era mais que uma estreita e pitoresca azinhaga, com foros de caminho de pé posto. Passar aí de noite, só Amadis de Gaula ou Ferrabraz da Alexandria; quaisquer outros mortais eram exterminados.”
Em 1845, o primeiro-ministro Costa Cabral ordenara que fossem delineados os novos limites de Lisboa, através de uma Estrada de Circunvalação e respetivo muro, que colocava as zonas de Arroios e Penha de França precisamente na fronteira do território urbano, dele formando os seus “limites naturais”.
Nas décadas seguintes foram surgindo as vilas operárias, capazes de acolher a população que acorria à capital para trabalhar na indústria, num movimento que duraria até à década de 1940 e à abertura da Alameda Dom Afonso Henriques, com a consequente construção da Fonte Luminosa e a remodelação do edifício do Instituto Superior Técnico por iniciativa do todo-poderoso ministro das Obras Públicas de Salazar, Duarte Pacheco.
Assim surgiram as vilas Cândida (Av General Roçadas, nº 24), Celeste (Rua Castelo Branco Saraiva, nº 46), Gadanho (Rua Castelo Branco Saraiva, nº 136) e Gomes (Rua Marques da Silva, 45 a 47), entre outras. A este esforço do governo e município, juntar-se-iam os de alguns particulares, industriais ou não, como um certo magnata, mal conhecido, mas de apelido Pina, que teria mandado edificar vários quarteirões de habitação económica no alto que lhe perpetuou o nome.

O crescimento da população trouxe à zona uma agitação quotidiana que esta não conhecia. As manhãs encheram-se de pregões, como os das varinas, os da mulher da fava rica ou os do leiteiro com as vasilhas metálicas: “Quem quer figos, quem quer almoçar”, “Ó viva da Costa!”. Com os habitantes, chegaram também os equipamentos de lazer e o associativismo. A 11 de novembro de 1911 era fundado o Ginásio do Alto do Pina, destinado a incentivar o gosto pela cultura e pelo desporto entre os moradores… operários.
Dessa época é a biblioteca, ainda hoje existente, com livros que remontam aos tempos da implantação da República, e na qual existem algumas obras raras tais como o Jornal dos Teatros e a História de Portugal, de Pinheiro Chagas. Na Penha de França, surgia, em 1953, o Sporting Clube da Penha, onde se iniciou na atividade desportiva um rapaz destas bandas, o atual selecionador nacional, Fernando Santos.
Na Rua Barão Sabrosa, no mesmo edifício onde hoje está a Igreja de São João Evangelista (com arquitetura de Jacinto Bettencourt e Deolindo Vieira) funcionou, entre 1931 e 1968, o Max-Cine, mais tarde Cine-Oriente, também conhecido por “piolho do Alto do Pina”. Com capacidade para 700 pessoas, o facto de ser um cinema de reprise (por oposição aos de estreia) não lhe retirava alguma sofisticação, como notava em 1931 a revista Cinéfilo: “O Max-Cine, a elegante sala da Rua Barão de Sabrosa, ao Alto do Pina, que recentemente inaugurou os seus espetáculos sonoros com vivo e justificado êxito, resolveu, num gesto de simpatia e apreço que muito nos desvanece, dedicar a todos os leitores e compradores do Cinéfilo as noites das quartas-feiras, concedendo-lhes o importante desconto de cinquenta por cento em todos os lugares”.
Mas nem tudo era idílico. As condições de habitabilidade da população deixavam frequentemente muito a desejar, sobretudo se, como aconteceu até aproximadamente 1960, a Lisboa e às suas fábricas não paravam de chegar milhares de pessoas, fugidas à escassez e dureza da vida nos campos.
Em 1950, o médico especialista em Saúde Pública, Manuel Vicente Moreira, denunciava a situação no relatório publicado em livro, Problemas da Habitação: “Quanto ao município apelo para que o seu ilustre Presidente, a fim de serem não só apressados os trabalhos de urbanização da Penha de França e do Vale Escuro, mas para que o plano de urbanização seja completado na parte oriental da região (…) Trata-se de uma zona de Lisboa pobre, é certo, mas pouco afastada do centro da cidade. Não foi, porém, visitada como deveria ter sido (…).”

Diga-se, a título de curiosidade histórica, que a vida desta zona de Lisboa não se inicia, todavia, com a urbanização oitocentista e com as rivalidades entre bairros. A elevação onde hoje está a Igreja da Nossa Senhora da Penha de França (classificada como imóvel de interesse público) já aparece referida nas descrições medievais da cidade, sendo designada por cabeço do Alperche, fértil em hortas e vinhedos.
No princípio do século XVII adquire, no entanto, alguma monumentalidade quando António Simões, soldado do exército de Dom Sebastião, regressa ao reino e decide erguer, neste local, uma ermida a Nossa Senhora da Penha, que, sua opinião, o teria salvo de destino idêntico ao do rei e de tantos que o acompanhavam. Da ermida passar-se-ia, décadas depois, à Igreja que foi sendo objeto de várias obras de melhoria e restauro ao longo dos tempos, nomeadamente após o terramoto de 1755.

A aura lendária deste local não parece esgotar-se, todavia, com a salvação de António Simões, já que, conforme é evocado no mural de Leonor Bilha, também aqui se recorda o dito milagre da Penha de França, segundo o qual um peregrino, adormecido de exaustão entre as silvas, foi salvo da mordidela fatal de uma cobra por um lagarto gigante, que mais não seria do que um aviso enviado pela Nossa Senhora invocada na vizinha Igreja.
“Há uma rivalidade saudável porque todos queremos ser os melhores no que fazemos e apresentamos ao público, mas, talvez porque conhecemos todos as mesmas dificuldades, sabemos unir-nos se algum está em aflição. E isso é bonito.”
Artur Gomes
Ao lado deste monumento pode ainda visitar-se outra relíquia de outras eras, um reservatório de água, propriedade da EPAL, construído entre 1929 e 1932, cuja forma lhe valeu a popular alcunha de “fogareiro”. Daqui pode divisar-se uma vista privilegiada de Lisboa, que vai do Castelo de São Jorge à Ponte Vasco da Gama.
Rivalidades que não excluem a solidariedade
O Alto do Pina foi o último vencedor das Marchas de Lisboa, interrompidas em 2020 por causa da pandemia. Organizada desde 1932 (quando o concurso ainda levava o nome de ranchos em vez de marchas) pelo Ginásio do Alto do Pina, esta marcha apresenta já um invejável palmarés: quatro vitórias (2011,2012,2015 e 2019), vários lugares no pódio e uma marcha cantada por Amália (originalmente pela fadista Helena Tavares), justamente intitulada “Marcha do Alto do Pina”.
Bem recentemente, porém, o Ginásio, com sede na Rua Barão Sabrosa, 93 (curiosamente, em território já da Penha de França), foi alvo de um processo de despejo depois dos técnicos da Câmara Municipal de Lisboa terem considerado que o edifício não tinha condições de segurança para o funcionamento. “Continuamos a aguardar que a Junta de Freguesia nos providencie o espaço que nos foi prometido, na Rua Luís Monteiro”, diz Artur Gomes da direção do clube. “Por ora, vamo-nos mantendo aqui.”
Nesse difícil ano de 2017, em que a marcha do Alto do Pina esteve para não sair por causa do processo de despejo, as rivalidades de sempre transformaram-se em ações de solidariedade. Artur Gomes recorda com emoção as manifestações de apoio da Sociedade Filarmónica Alunos da Esperança (responsável pela marcha de Alcântara), da Marcha de Alfama e do rival de sempre, o Sporting da Penha de França: “Há uma rivalidade saudável porque todos queremos ser os melhores no que fazemos e apresentamos ao público, mas, talvez porque conhecemos todos as mesmas dificuldades, sabemos unir-nos se algum está em aflição. E isso é bonito.”
Rafael Pinto, marchante pelo Alto do Pina há mais de 15 anos, acrescenta, no entanto, que, a 12 de junho, na Avenida, a conversa é outra: “Há muita troca de picardias e até de insultos. Aí o amor à camisola fala mais alto, é natural. Cada um quer que o seu bairro seja o campeão.” Mas salienta: “Não é só entre o Alto do Pina e a Penha de França. Entre Alfama e Marvila, que são crónicos vencedores, todos os anos há despiques.”
Talvez as mentalidades não tenham mudado assim tanto desde que, a 13 de Junho de 1897, o Diário de Notícias comentava assim os festejos de Santo António: “Dançou-se com animação, houve descantes ao desafio e toda aquela gente que se divertia sentia-se feliz, percorrendo todos os grupos para apreciar os cantores. Facto notável: tanto na praça como no Rocio ou Avenida, a ordem foi absoluta no tocante a pancadaria (…) Houve, é certo, o seu sopapo…”
Na Penha de França, a esperança em dias melhores. A Avenida General Roçadas já não acolhe o mítico clube Estrelas da Avenida mas serve de palco a outros desportos. Os negócios locais a desconfinar devagarinho.
O crítico literário João Pedro Vala gosta deste espírito a que chama “aldeia gaulesa à Astérix”: “Os meus avós são de Monção, junto à fronteira com a Galiza, e têm muito enraízada uma velha rivalidade com os galegos, mas é curioso que esse tipo de despiques possa acontecer dentro da mesma cidade, em bairros que não são muito diferentes uns dos outros, nem pela vivência do espaço, nem pelo perfil da população. Na verdade, se pensarmos bem, o que distingue realmente o Alto do Pina da Penha de França?”.
E, no entanto, esse espírito existe e é frequentemente utilizado pelos autarcas. João Pedro dá o exemplo de Marvila, vizinha tanto de Alto do Pina como da Penha de França: “O atual presidente da junta prometeu aos seus fregueses que não deixará a EMEL entrar na freguesia, como se esta fosse um espaço à parte dentro de Lisboa. A tal aldeia gaulesa onde os invasores não entrarão.”
Loja de alfaiate na Avenida General Roçadas Prédio de habitação da década de 1930, típico da área do Alto do Pina e Penha de França. Na Rua da Penha de França Vista para a Igreja da Nossa Senhora da Penha de França
Se conhecer mais histórias desta e de outras rivalidades na cidade, faça-as chegar até nós:

Maria João Martins
Nasceu em Vila Franca de Xira há 53 anos mas cresceu na Baixa de Lisboa, entre lojas históricas e pregões tradicionais. A meio da licenciatura em História, foi trabalhar para um vespertino chamado Diário de Lisboa e tomou o gosto à escrita sobre a cidade, que nunca mais largou seja em jornais, livros ou programas de rádio.
Parabéns Maria João Martins
Adorei…adorei…
e viva a Penha e a general roçadas…e o Alto do Pina.
Gostei muito, Maria João, bonito passeio pelas minhas bandas…
Gostei bastante, lembrou-me a Travessa dos Baldraques (se não erro). Faltou falar sobre a Picheleira, agora com nome fino, as Olaias e o Vitória clube da zona
Mais histórias sobre o Vitória que valha a pena contar?
Excelente trabalho de investigação que resultou num bonito texto. Obrigado pelas lembranças da minha juventude, e onde agora resido, da Nuno e da Patrício, do Cine Oriente, do Vale Escuro onde tantas vezes joguei à bola …