Alice Pinto Coelho caminha lentamente por entre as mesas do Procópio, a cumprir o percurso de um desfile que se repete há cinco décadas, desde que o histórico bar lisboeta ao pé do Jardim das Amoreiras abriu portas em 5 de maio de 1972, então apenas um “sítio para reunir os amigos”, sem esperar que, dois anos depois, transformar-se-ia na “câmara alta” de um Portugal pós 25 de Abril.

“O 25 de Novembro foi costurado aqui”, lembra-se Alice, 84 anos, a memória tão viva como nas noites de 1974, sentando-se à mítica Mesa Dois (de que Seixas da Costa já escreveu para a Mensagem) para ser fotografada, a mesma onde o Grupo dos Nove se reunia para o xadrez político do país, entre copos de uísque e pipocas temperadas a sal e uma pitada de pimenta.

Alice Pinto Coelho sentada na mítica Mesa Dois do Procópio. “O 25 de Novembro foi costurado aqui”. Foto: Rita Ansone

Apimentados também foram os debates que se seguiram anos e anos depois daquele Verão Quente de 74, funcionando o Procópio quase como extensão do púlpito da Assembleia da República, e cada centímetro dos poucos metros quadrados do salão disputado por políticos sedentos pela sua dose de poder e um gole de The Famous Grouse.

“O 25 de Novembro foi costurado aqui”

Alice Pinto Coelho, proprietária do Procópio.

Debates de que Alice era testemunha privilegiada, noites a fio a ouvir em primeira mão o noticiário político do dia seguinte, apurado também por jornalistas à caça de um furo, com o Procópio transformado em sucursal das redações e os repórteres a fazerem fila para a chamada de última hora aos editores, realizadas a partir do telefone na saleta vizinha ao balcão.

Balcão que Alice fez questão de ser da altura que queria, um metro e vinte, ao contrário dos dos outros bares lisboetas com o seu metro e sessenta, “altos de mais, uma parede”. Alice também opinou na cor das paredes do Procópio, em bordeaux, iguais aos do British Bar do Cais do Sodré, onde costumava ir na companhia do pai.

Perfeccionista, não deu tréguas até encontrar o tom desejado, diante de um pintor ignorante do que seria um bordeaux. “É a cor de sangue de boi”, disse-lhe Alice. Restou ao pintor ir ao talho e voltar com um balde e…  sangue de boi. “Pincelou o sangue na parede e perguntou: é isto? Respondi, finalmente, satisfeita: é isso!”, conta divertida.

Sofia, Alice e Maria João, em frente ao Procópio: mães e filhas deixam a marca na história da noite de Lisboa. Foto: Rita Ansone.

Alice sempre foi assim, decidida. “Tinha a mão de ferro”, confirma um antigo barman da casa, de passagem para matar as saudades dos velhos amigos, na mesma tarde em que a Mensagem conversou com Alice e as filhas, Maria João e Sofia, as atuais herdeiras também na missão de gerir a histórica “câmara alta” de Lisboa.

Juvenal: barman, diplomata e favorito a ministro

A “câmara alta” foi uma criação do seu barman mais famoso. “Os bares vizinhos do Procópio até tentavam ser tão importantes, mas não passavam da câmara baixa”, explica Juvenal Santos Coelho, 77 anos, 17 dedicados à casa, a maioria como chefe dos barmans, o grande responsável em manter a “escola de atendimento”, uma das marcas do bar.

Juvenal, “o Disciplinado”, durante vários anos considerado o melhor barman de Lisboa: um “diplomata” a serviço do Procópio. Foto: Rita Ansone

Um barman por vocação, apaixonado pela profissão, iniciada no salão do Hotel Fênix, em 1964, e mantida até mesmo durante a passagem pela tropa no ultramar: destacado para Moçambique, foi barman na messe dos oficiais em África. Desde então, passou a circular entre os poderosos, tendo a discrição como princípio.

A história de Juvenal com o Procópio começou durante as férias de verão do célebre decorador Luís Pinto Coelho, então marido de Alice e fundador do bar. Corria o ano de 1972 e Juvenal, de regresso de África, trabalhava no Hotel D. Sancho, no Algarve, quando uma bebida mal servida por um funcionário do hotel selou-lhe o destino.

“O doutor Pinto Coelho havia pedido uma vodka-tónica e o colega embaralhou-se na preparação. Dei a volta ao erro. Com simpatia, refiz a bebida e ofereci-a como cortesia. O Pinto Coelho ficou sensibilizado com a forma como lidei com a situação e convidou-me para trabalhar no Procópio, em Lisboa. Pouco tempo depois, lá estava”, lembra-se.

“Para dizer a verdade, fui um barman assim-assim. O que eu era, mesmo, era um grande diplomata.”

Juvenal Santos Coelho, barman

A experiência na tropa – entre os oficiais, era chamado de “Juvenal, o Disciplinado” – aliada à natural capacidade em “saber estar” entre os poderosos, rendeu-lhe à época a fama de maior barman de Lisboa. Uma deferência que Juvenal modestamente atribui mais às suas habilidades políticas do que com a misturadora.

O barman Juvenal em ação no histórico bar Procópio: sandes para Mário Soares, uísque para Sá Carneiro e pimenta na pipoca. Foto: Arquivo Pessoal

“Para dizer a verdade, fui um barman assim-assim. O que eu era, mesmo, era um grande diplomata”, reconhece, sem falsas-modéstias, o funcionário do Procópio que nunca se esquecia da preferência dos clientes da casa, da Super Bock com sandes de presunto de Mário Soares ou do número exato de pedras de gelo no uísque de Sá Carneiro.

A forma como se movimentava entre os poderosos mereceu o reconhecimento de um dos famosos habitués do Procópio, o jornalista Miguel Sousa Tavares. “Uma vez, disse-me que se um dia chegasse a primeiro-ministro, eu seria o seu ministro das relações exteriores”, conta, sem esconder uma certa vaidade.

O então preferido a ministro das relações exteriores de Miguel Sousa Tavares recorda-se do desespero do então primeiro-ministro Mário Soares ao constatar o fim dos pães para fazer as sandes de presunto. Era tarde da noite e a sessão parlamentar continuava na câmara alta do Procópio. “A esta hora, sôtor, só há bolachas”, informou.

Mário Soares teve de se render às bolachas e também às pipocas, desde sempre uma das tradições do Procópio, cuja receita (quase) secreta administrava junto ao recorrente sal, uma discreta pitada de pimenta negra, revela Juvenal. “Ideal para aumentar a sede dos clientes”, explica o também bom vendedor.

O melhor bar da parvónia

Convidado para trabalhar no Procópio por Pinto Coelho, foi com Alice que na verdade Juvenal lidou durante todos os anos que lá serviu. “Aprendi muito com ela. Era uma mulher decidida”, lembra, confirmando a fama de “dama de ferro” da antiga patroa. “Olhava para mim e dizia: Juvenal, fale comigo como se fôssemos dois homens”, recorda-se.

A sinceridade entre ambos era uma carta-branca para Juvenal lidar com raros excessos de uma clientela de pedigree, composta por políticos, empresários, jornalistas, artistas, escritores, futebolistas, vedetas da televisão, diplomatas e, suspeita-se, até espiões, o que levou o bar a ser chamado de o Rick’s Café de Lisboa.  

Juvenal e Alice, uma dupla afinada, responsável por fazer do bar ao pé do Jardim das Amoreiras uma referência na noite de Lisboa. Foto: Arquivo Pessoal

Uma frequência selecionada, o que não excluía alguns constrangimentos. “Se começavam a falar mais alto, aproximava-se e perguntava se estava tudo bem”, diz Juvenal.  Na maioria das vezes, o approach era o suficiente. Aos que insistiam, a alternativa era a porta da rua. “Voltava e dizia: já é a hora de ir, senhor, não acha?”.

“No início dos anos 1970, Lisboa era a parvónia. Havia dois, ou sendo muito bondosa, no máximo três bares decentes na cidade.”

Alice Pinto Coelho

Tudo muito discreto, embora a fleuma do barman tivesse limites, principalmente aos que insistiam em “esquecer-se” de pagar a conta. O cliente esquecido podia até sair sem pagá-la, mas era a última vez que pisava no Procópio. “Fazia imediatamente a radiografia da pessoa e, a partir de então, essa tinha a entrada cortada no bar”, diz.

À época, o acesso vetado ao bar era sinónimo de ostracismo. “No início dos anos 1970, Lisboa era a parvónia”, recorda-se Alice. “Quando o Procópio abriu, havia dois, ou sendo muito bondosa, no máximo três bares decentes na cidade. Os demais, eram locais para os homens irem ter com aquelas mulheres.”

Em relação às mulheres, de uma forma geral, Juvenal lembra ainda que o 25 de Abril marcou o paulatino início da emancipação feminina na antiga parvónia. “O Procópio era o sítio onde podiam sair à noite sem serem importunadas”, reforça o barman. “Até o 25, Portugal vivia na escuridão. De repente, surgiu a luz”, resume.

Uma luz cujo farol era o Procópio.

Grandes desafios, pequenas mudanças

Da Lisboa dos tempos da parvónia até maio de 2022, muita coisa mudou na cidade e no país, e também no Procópio. Se os primeiros 20 anos de existência foram de hegemonia, celebração e glamour, a convergência do eixo festivo das noites lisboetas para o Bairro Alto, na viragem do século, marcou o primeiro grande desafio.

É neste período que as filhas de Alice, Maria João e Sofia, passam a ter participação mais ativa no Procópio. Profissionais da área da comunicação, ambas diagnosticaram a necessidade de o bar ter o próprio site e de aderir às redes sociais. “Era o Procópio 2.0”, resume Maria João, experiente no ramo das relações empresariais com os media.

“O desafio não era mudar algo na casa, que tinha e ainda tem um ambiente fantástico, mas fazer com que as pessoas conhecessem e continuassem a vir ao Procópio”, complementa Sofia, uma fotógrafa profissional atenta ao poder das imagens que valem mil palavras, segura de que a decoração sui generis continua a ser a joia da coroa do bar.

Decoração pensada e executada pelo ex-marido de Alice e pai de Maria João e Sofia, o decorador Luís Pinto Coelho, famoso pelos bares que abriu e mais célebre ainda pelo bom gosto das decorações que imprimia aos mesmos, como a de outros ícones da noite de Lisboa com a sua assinatura, o Pavilhão Chinês e A Paródia.

“Até o 25 de Abril, Portugal vivia na escuridão. De repente, fez-se a luz.”

Juvenal Santos Coelho

Pouco foi alterado – e nem deveria ser – da decoração original do Procópio, que aos poucos ganhou as caricaturas dos clientes mais fiéis na parede, assinadas por um dos mais constantes dos seus clientes, o ilustrador António Antunes, além de uma estatueta com a efígie de Alice e um ou outro quadro agraciado como presente. E nada mais.

A famosa Mesa Dois é a mesma dos tempos conspiratórios do Grupo dos Nove e das animadíssimas tertúlias comandadas por Nuno Brederode Santos, já narradas pelo ex-diplomata Francisco Seixas da Costa.

O coquetel servido no balcão do Procópio. Foto: Rita Ansone

Porém, se a decoração se mantém praticamente intacta, foram recentemente adicionados à ementa alguns pratos para o jantar, um efeito-colateral da pandemia. “Quebrar a tradição foi uma polémica, mas era isso ou fechar, pois a lei permitia o funcionamento apenas de estabelecimentos com uso de garfo e faca”, explica Maria João.

A quebra na exclusividade das tostas e pipocas acabou por ter um lado positivo, com a chegada de um novo tipo de público no Procópio: o dos que comem mais do que bebem. “Agora, temos uma boa frequência de pessoas também a jantar”, conta Maria João, embora os petiscos, como a Tosta Mística, continue entre os favoritos.

Jovens e antigos clientes, na “Esplanada António Costa”

As pequenas alterações de entre as grandes mudanças que Lisboa sofreu nas últimas décadas garantem a frequência na casa. “É comum termos filas de espera”, conta Maria João, que celebra ainda a renovação da clientela. “De uns anos para cá, o perfil mudou e é bem comum vermos jovens, na casa dos trinta, quarenta anos.”

A esplanada do Procópio foi uma sugestão do atual primeiro-ministro, António Costa, ainda nos tempos de presidente da Câmara. Foto: Rita Ansone

Os políticos de todas as idades ainda costumam frequentar o Procópio, como a ministra Ana Catarina Mendes e o primeiro-ministro, António Costa, esse desde os tempos de presidente da Câmara de Lisboa. Foi nesta época que Costa se investiu da influência do cargo para fazer um pedido especial a Alice: a instalação de uma esplanada.

Alice Pinto Coelho. Foto: Rita Ansone

Desde então, quando o verão bate à porta, as mesas e cadeiras podem ser vistas em frente ao bar, dividindo o espaço com o chafariz.

Quem for ao local no próximo dia 5 de maio para a celebração dos 50 anos poderá comprovar que o Procópio continua a ser uma das referências da noite de Lisboa, mantendo a mística, o charme e a qualidade no atendimento. Poderá ainda ajudar a soprar a meia-centena de velas no bolo, ao som de boa música, na companhia dos novos e dos antigos clientes.

E se o tempo ajudar, tudo isso confortavelmente instalado na “Esplanada António Costa”.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt

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2 Comentários

  1. Penso que há aqui uma falha na história do procópio que considero injusta: o espaço temporal que se inicia com a saída, direi, talvez, intempestiva, do Juvenal e o aparecimento do Luís e a sua colaboração no aguentar e desenvolver o Procópio nos anos seguintes.

  2. Esqueceram-se do assíduo Coronel Aventino Teixeira?
    Como nos lembramos da sua presença diária no Procópio!

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