Receba a nossa newsletter com as histórias de Lisboa 🙂
Não faço ideia quantas foram as vezes que o ritual se repetiu, nem mesmo se elas foram suficientes para que aquilo pudesse ser considerado um ritual. O ambiente, no Procópio, tinha de estar propício, o que significava somar três condições nem sempre fáceis de reunir: haver um quorum mínimo de parceiros na Mesa Dois, não andarem estranhos pelo bar, isto é, gente que pudesse achar bizarro o breve espetáculo que se seguiria, e, finalmente, que o Nuno e a Alice estivessem para ali virados.
Cumpridos os requisitos, o Nuno Brederode Santos, sem aviso prévio, com a permissão explícita da Alice Pinto Coelho, sob o olhar curioso de todos nós e a expectativa risonha do Juvenal ou do Luís, dispensados estes, por uns minutos, dos seus deveres laborais, passava para o lado de dentro do balcão do Procópio. A regra era que “não olhássemos”, que não pudéssemos controlar o manejo das garrafas escolhidas das estantes para a feitura do famigerado “Nightmare”.
O que era aquilo? Era um cocktail cuja receita tinha um grau de secretismo idêntico ao da poção mágica preparada pelo druida Panoramix, nas aventuras de Asterix. Provei a mistela em duas ocasiões, sempre em doses homeopáticas, porque tinha a certeza de que bastava um golo generoso para que, de facto, a noite seguinte viesse dar razão ao nome pelo qual, talvez não por acaso, o cocktail gerou fama. O gosto da coisa era variável; constante era o facto de ser sempre assim-assim.
Acho que o Nuno também não arriscava emborcar muito do produto da sua inspiração. A verdadeira graça estava toda na consumação da “noite do Nightmare”, menos na aferição das qualidades enológicas do Nuno, que sempre vi mais concentradas noutros “blended” menos heterodoxos.

Era assim o bar Procópio desses outros tempos. Toda a Lisboa o conhece de nome, muitos o visitaram, outros continuam a fazê-lo, embora a machadada comercial que a pandemia a todos causou tenha anulado o muito feliz renascimento, e rejuvenescimento etário de clientela, que o surto de turismo parecia prenunciar. Mas se o Procópio, neste seu meio século, a tudo resistiu, não será, com certeza, a “gripezinha” dos negacionistas que vai interromper a sua história.
O Procópio nasceu, como outros bares famosos na Lisboa dos anos 1970, pelas mãos geniais da decoração de Luís Pinto Coelho. Passou depois para a Alice, que foi sua mulher e que, nos dias de hoje, é a “mulher-coragem” que continua a capitanear a nau. Não vou aqui cair num “name-dropping”, mil vezes recordado, acerca do país, político e outro, que atravessou aquela sala, desde antes do 25 de Abril. Há um belo livro, onde também meti a minha colherada de memória, em que a história surge contada, e que, no local, ainda se pode adquirir.
Vi-me sempre a deixar que se espalhasse, com culpa própria assumida, a ideia de que fui um regular cliente do Procópio, o que, no entanto, está algo longe de corresponder à realidade. Fui andando por ali, a partir dos anos 1980, pela sua famosa Mesa Dois, uma espécie de sede (no duplo sentido e fonética da palavra) dos amigos do Nuno Brederode Santos, quando a ocasião se proporcionava. A vida no estrangeiro obrigava-me a imensas faltas, por muitos e seguidos meses, sem, contudo, nunca ter sentido que corria o risco de ser expulso.
Redimia-me, todos os anos, e por exatas dez vezes, ao ser o organizador dos “jantares da Dois”, em diversos locais de Lisboa, onde chegámos a juntar 80 amigos, tudo à pala da fama de uma mesa onde oito pessoas já ficam muito apertadas. Mas sinto a Dois como tendo sido uma minha segunda casa, onde alimentei longas conversas, algumas discussões, onde coloquei água (ou whisky) na fervura de alguns dissídios. Onde, vá lá!, também fui feliz.

O Nuno saiu de cena há uns anos, já depois de, tempos antes, ter deixado a “chefia física” da Dois, por imperativos pessoais. Mas, com ele ou sem ele por ali, a Mesa Dois foi sempre ele – o seu espírito, a sua inteligência, a sua graça, a sua amizade. Perdemo-lo como já tínhamos perdido ou viemos a perder o José Cardoso Pires, o Raul Solnado, o Kiko Castro Neves, o Jorge Fagundes, o José Medeiros Ferreira, o António Russo Dias, o José Fonseca e Costa, o José Carlos Serras Gago.
Aquele mundo foi desaparecendo, hoje já não existe. Quando se entra no Procópio, raramente se reconhecem as caras que ocupam as mesas, separadas agora pelos acrílicos (que se espera precários) do tempo da peste pouco mansa que nos ronda os dias.
Olho, como é natural, para a Mesa Dois e fico sempre curioso, interrogativo, sobre se quem, por mero acaso, agora ali se senta, terá alguma ideia sobre o que aquele lugar concreto significou, por algumas décadas. Mas, no segundo seguinte, logo desisto. Isso agora não interessa nada, como diz uma voz de showbizz televisivo. O mundo não para e o que realmente conta é quem agora lá está.
Nós, os que por ali passámos, fomos tendo o destino do império que, entretanto, se esfumou. No nosso caso, um benévolo império que naquela mesa se erigiu sem sequer sair do sítio, o império dos sentados.

Francisco Seixas da Costa
Nasceu em Vila Real, em 1948. Aos sete anos, veio a Lisboa, de Foguete. Viu a seleção perder no Jamor contra a Suécia. Em 1968, mudou-se para cá. Depois, por quatro décadas, flanou diplomaticamente entre oito países. Em 2013, aposentou-se. Mais ou menos.
FranciSco que beleza de texto, que importante é o testemunho, que missão fundamental é a memória. Obrigada por tudo. E pelo prazer da leitura
Leonor Xavier
A minha mesa é logo à entrada, a da lareira. Reservada na primeira 6a f do mês durante muitos anos para o grupo dos publicitários. Cliente há 40 anos. O 1o bar em Lisboa em que uma mulher podia entrar sozinha. Nesses dias ficava sentada junto ao balcão. O Juvenal atento às abordagens.
Belíssimo texto! Obrigada por dar a conhecer mais esta “memória”. Flor
Como eu me deleito com esta forma de expressar.
OhFrancisco, um comovido obrigada. Beijo.
Maria Emília Brederode Santos
‘Perdemos’ também a São Antunes.
Que bom ter o Francisco a escrever sobre a mesa 2!!!! É tudo verdade e que saudades tenho desse tempo com o Nuno Brederode Santos a gerir a mesa como ninguém!
Porque carga de água é que ainda não se inventou uma tecnologia para fazer o download da memória de certas pessoas.
Para além do “nosso” Embaixador eu teria mais alguns nomes a propor.
Bem haja e viva a memória do Nuno
Obrigada, Francisco, por nos proporcionar tantas e boas recordações. Saudade dos que partiram e de muitos que a vida desencontrou.
Tens toda a razão, Ana Coucello. Falta a Conceição Antunes, como faltam o Jójó Galamba, o António Silva, o Simão Santiago, o Rosa Dias, o Álvaro Neves da Silva. A memória apressada tem destas coisas.
Frequentei e ainda frequento o Procópio desde 1975. O meu contacto nesse bar era o Juvenal e o amigo o Aventino Teixeira. A minha mulher, Catarina, sempre me acompanhou. Habituei-me a ver a mesa dois do Brederode e seus amigos. Não nos dávamos mas conhecíamo-nos de cumprimento formal. Por intermédio do Aventino, Ex-libris do Procópio, conheci muita gente interessante, inclusive Edite Estrela e outros. Quando o Juvenal abriu o Pedro V passei a ir menos ao Procópio, mas ali também conheci gente também com muito interesse com quem conversava, inclusive José Cardoso Pires. Realmente a frequência do Procópio hoje é completamente diferente, há mais rapaziada jovem, mas o bar continua a ser um local agradável de se tomar uma bebida e comer alguma coisa. É sempre bom encontrar e falar com a Alice.
Que saudades desses bons tempos. Fui muito feliz no Procópio.
Juvenal
Caro Juvenal. É um gosto “ouvir” por aqui a sua voz. Ela é um eco mais da sua imensa simpatia, atenção aos outros e de uma vida de exemplar profissionalismo, que deixou amigos em muitos que consigo se cruzaram. Com é o caso deste que aqui lhe manda um abraço.
Também frequentei o Procópio, habitualmente com um Amigo, José Manuel Pinto dos Santos, inseridos num grupo sem mesa fixa.
O Zé Manel Pinto dos Santos tinha um humor espantoso!
O Juvenal conheceu-o bem, assim como outro senhor dos bares de Lisboa, o sr. Albino, que foi posteriormente para a « Paródia ».
O sr. Albino, uma noite pediu ao Zé Manel P.dos S., um pequeno texto para colocar nas bases de copos da « Paródia ».
Dez minutos depois entregou o seguinte:
Se vindes com sede
Sede bem vindos!
Belos tempos estes, do Monte Carlo, Procópio, Paródia, Bolero,…….
Senhor Embaixador Seixas da Costa-,permita-me que o trate assim ,só o conheço do comentário televisivo- ao ler o que escreveu sobre essa rua de lisboa, fez-me recuar uns já largos anos com saudade do tempo que aí vivi na Capital e nessa rua trabalhei, fui Carteiro 13 anos e nesse “giro “vários ,que era composto pelas Ruas : lapa, S.Domingos ´a lapa Garcia de Orta,remédios, S . João da mata, e Rua das Praças.Ainda recordo outra referencia sua : morei na rua da Bica de Duarte Belo e trabalhei numa das casas de pasto dessa rua nomeadamente na ultima á direita ao cimo do elevador!Retirei-me para a Província em 1993.Obrigado pelo que escreveu….